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Fotografia: Nuno Ramos
Publicado a: 01/10/2025

Um Quarto na Rua Cor de Rosa marca uma transição na história da banda.

Cais Sodré Funk Connection: “O facto de agora cantarmos em português torna as músicas mais acessíveis e talvez um pouco mais pop”

Fotografia: Nuno Ramos
Publicado a: 01/10/2025

Ao quarto álbum, os Cais Sodré Funk Connection enfrentam um ponto de viragem. Após a saída do magnético vocalista Silk Nobre, NBC juntou-se ao grupo e as canções passaram a ter letras em português. Um Quarto na Rua Cor de Rosa, editado a 25 de Setembro, tem por isso temas mais acessíveis, que trouxeram um apelo mais pop e moderno.

Por outro lado, o imaginário simbólico desta banda onde militam Francisco Rebelo, João Gomes, Tamin, David Pessoa, Rui Alves e João Cabrita também foi profundamente abalado com as transformações recentes do Cais do Sodré e da movida lisboeta, do fecho da casa que serviu como incubadora ao projecto, o Musicbox.

Um Quarto na Rua Cor de Rosa é, portanto, um disco sobrevoado por todas estas nuances, mas que mantém a linha identitária da banda — música calorosa e ritmada, que navega pelo vasto universo da música negra norte-americana. Em entrevista, Francisco Rebelo e João Gomes reflectem sobre estas mudanças e abordam o novo trabalho, que será apresentado na Casa Capitão a 22 de Outubro.



Este é um disco que marca um certo ponto de viragem na banda. Quando é que começaram a trabalhar neste disco e como é que foi abordá-lo tendo em conta estas mudanças? 

[Francisco Rebelo] Começámos a pensar neste disco basicamente no momento em que o NBC entrou para a banda. Portanto, talvez no final de 2023. Sendo o NBC um cantor que normalmente canta em português, naturalmente, com a sua entrada na banda, despoletou algo que já tinha sido pensado. Com um perfil diferente do Silk, tendo facilidade na escrita e na interpretação do português, começámos a pensar em fazer um álbum todo em português. Essa foi a primeira grande viragem na banda, foi um desafio difícil. Sobretudo para a Tamin, que estava mais habituada ao inglês. Inclusive, até tínhamos já uma ou duas canções compostas com letras da Tamin em inglês, e depois tivemos que as adaptar. Foi difícil, mas acho que conseguimos o objectivo de fazer uma boa transição para a nossa língua. 

É mais difícil criar este tipo de canções em português?

[FB] Sim, mas também sentimos essa necessidade, até porque neste momento não há muitas bandas a produzir este tipo de repertório em Portugal. Viemos colmatar um bocado essa… Não queria dizer lacuna, mas o desejo de ter as as nossas canções materializadas em português. 

[João Gomes] Já tínhamos pensado muitas vezes nisso, e o NBC mostrou mais disponibilidade para o fazer. Mas, na realidade, na minha carreira e na do Chico, já tínhamos executado a maior parte dos projectos em português, portanto, não foi de forma alguma uma novidade para nós. Acho que, ainda assim, quem depois colocou mais entraves no início foi a Tamin, porque já estava muito habituada a este formato. Mas bastou lembrar-lhe que ela começou a sua carreira a cantar refrões e músicas de R&B em português, mais no contexto do hip hop tuga, e que soavam muito bem. 

[FB] E até a ligação ao fado que ela também teve desde miúda, não é? 

[JG] E então, a partir do momento em que ela desbloqueou isso, as coisas começaram a sair naturalmente, não foi muito difícil. 

Além do português e da voz do NBC, como é que descrevem este disco, em termos sonoros, em comparação com os anteriores?

[JG] O facto de cantarmos em português torna as músicas um pouco mais acessíveis e próximas — de certa forma, talvez um pouco mais pop. Mas também os próprios arranjos e a nossa abordagem estão um bocado mais versáteis, um bocado menos cingida a um estilo retro-funk mais datado, e procurámos trazer uma sonoridade um bocado mais difícil de datar e, nalguns aspectos, mais moderna. Acho que são essas as principais diferenças, à parte das óbvias que já falámos. 

No texto do Pedro Tenreiro que acompanha o lançamento do disco, é sublinhado que o Cais do Sodré da vossa origem mudou completamente. Aliás, o Musicbox acaba de fechar portas.

[JG] E nós vamos com eles. Vamos apresentar o nosso disco na Casa Capitão, o que tem algum simbolismo.

[FB] E até a própria capa do disco, embora não tenha sido premeditado, acaba por fazer uma homenagem ao espaço que nos acolheu desde o início. Um Quarto na Rua Cor de Rosa tem um bocado a ver com isso, com aquilo que foi a nossa origem no Cais do Sodré, com a vivência que tivemos ali, no Musicbox, durante três anos, em que estivemos lá a tocar todos os meses. A capa não tinha sido pensada nesse sentido, mas acaba também por fazer uma homenagem ao Musicbox, que agora fecha. E, como o João já disse, depois iremos apresentar o disco na Casa Capitão, que é um bocado a continuação da família, agora num espaço ampliado. 

[JG] Acho que a capa pode fazer uma homenagem, mas também pode fazer uma crítica, uma vez que representa uma senhora a varrer a Rua Cor de Rosa depois de mais uma noite de esplanadas e copos na rua, botellón e aquela confusão em que aquilo se transformou e que, de certa forma, fez com que nos afastássemos um pouco do Cais do Sodré por se ter tornado numa zona super turística, e por já não ser um centro cultural e nocturno como era na altura em que começámos. Não tendo sido muito premeditado, acho que aquela fotografia que serve de capa também mostra um pouco isso, um lado meio decadente, desiludido, sujo, no mau sentido, do Cais do Sodré, que é o que nós vivemos hoje em dia. 

[FB] A capa também tinha a ver com outras ideias que estavam subjacentes, naturalmente cada pessoa poderá interpretar da maneira que sentir, mas quando pensámos nesta ideia, era um bocado a perspectiva de quem passa na rua e olha para uma janela e imagina o que é que se passa lá dentro e o inverso, quem está na janela e olha para a rua e vê as coisas que se foram mudando. Pegando aqui também nas palavras do João, de facto, o tipo de bairros de ruas mais estreitas onde antigamente as pessoas quase que falavam de janela à janela… Isso agora acabou, não é? Com estes problemas todos da habitação e das mudanças que a cidade tem levado do excesso turístico, todo esse lado mais tradicional e lisboeta também se perde e a capa também reflecte um bocado esse espírito. 

Os sítios mudam, mas o show must go on e, como disseram, vocês também fazem essa ponte ao apresentar o álbum na Casa Capitão, sem precisarem de mudar o nome da banda para Beato Funk Connection. Mas sentem que estas transformações que estão a descrever no Cais do Sodré, mas que também acontecem noutros sítios da cidade e que provavelmente no futuro vão atingir ainda outros, são fenómenos que vão impactar muito a música que se faz na cidade? Pergunto porque, no caso desta banda, é um grupo que surge da movida do Cais do Sodré, da actividade do Musicbox. Estas transformações na cidade vão mudar o tipo de som que se vai fazer em Lisboa?

[FB] Acho que sim. Naturalmente, quem vive nesta cidade sente a própria vida que acontece e aquilo que se está a passar, e o nosso trabalho enquanto artistas é sempre uma consequência do ambiente em que estamos envolvidos. Portanto, será natural que surjam projectos com visões distantes das nossas, mas, por um lado, acho saudável que isso aconteça. As manifestações artísticas que surgem agora podem reflectir aquilo que se passa na cidade, naturalmente. Depois, há o outro lado, mais nefasto, as consequências de não termos espaços para tocar, não haver espaços culturais na cidade com capacidade para abrigar determinada quantidade de pessoas, e isso não é um problema de agora, já é um problema de há muitos anos que já muitas vezes falámos em entrevistas. De facto, em Lisboa neste momento não temos… E mesmo nas outras cidades do país, quando falamos com os nossos colegas que vivem no Porto e no Algarve e noutras cidades, há de facto um desinvestimento na área cultural ligada à performance musical e isso é um problema que temos que continuar a lutar para ultrapassar. É notório que em Portugal há um desinvestimento grande na área da cultura e nomeadamente na criação de espaços de música alternativa onde se possam lançar projectos novos e que não sejam só espaços que apareçam ligados ao mainstream, porque Lisboa tem muitos projetos emergentes desde sempre e precisamos desses espaços para divulgar o nosso trabalho.

[JG] O problema principal no futuro e presente é este desinvestimento e esta aposta quase exclusiva e total no turismo e o tipo de turismo em que se investe, que não é um turismo que esteja virado para a cultura local, alternativa ou independente, e acho que isso vai-se reflectir um pouco na música que vamos começar a ver mais a ser feita, que são aqueles músicos de rua de covers e que são os mesmos de toda a Europa, que rodam as mesmas cidades e que fazem música internacional cada vez menos identificada com a cultura local. Sendo que as pessoas locais também estão cada vez mais afastadas da cidade e cada vez mais dispersas, portanto essa cultura perde cada vez mais identidade ou torna-se um postal como o fado, para turistas tirarem uma fotografia como ao eléctrico amarelo. Acho que esse é o principal perigo do presente e do futuro.

Outra coisa que o Pedro Tenreiro também nota no texto que escreveu é que a voz do NBC, tendo em conta as suas características, arrasta o som da banda para uma estética mais soul. Também sentiram isso?

[FB] O NBC e o Silk têm características muito diferentes, tanto vocais como até de performance. O Silk é um performer muito na escola do James Brown, com aquele estilo vocal. O NBC também tem algumas dessas características, mas é um cantor assumido e tem outra postura, o que nos levou a experimentar outros caminhos. Como o João disse há pouco, acabou por tornar as canções um pouco mais acessíveis, tanto por serem em português como por terem uma componente mais melódica e menos performática. Isso, naturalmente, muda bastante a forma como agora compusemos o disco e como as músicas se apresentam.

E até deve mudar a própria performance de músicas que vocês já tinham antes.

[FB] Sim, o NBC adaptou-se a algumas músicas que já tínhamos no repertório, mas também tivemos algum cuidado na entrada do NBC, de não o forçar a transformar-se num Silk, porque isso não fazia sentido, portanto algum do repertório foi posto de lado e aquilo que achávamos que tinha mais a ver com ele foi adaptado de forma a que ele se sentisse na sua pele e estivesse confortável em interpretá-las. E também foi uma maneira, enquanto não tivemos o disco, de apresentar um novo cantor, sem querer colar a uma imagem muito vincada que o Silk deixou nos outros discos e que naturalmente, agora com a entrada do NBC, teríamos de mudar.

E como é que o NBC entra na banda? A partir do momento em que o Silk saiu, começaram logo a pensar noutras hipóteses? 

[FB] Nós já somos amigos do NBC há muitos anos, já trabalhámos juntos em vários projectos, e o NBC tinha trabalhado connosco no projecto de Natal que fizemos há poucos anos, no final da pandemia. Fizemos uma tournée de Natal com a banda dos Cais Sodré Funk Connection e com dois cantores convidados, o NBC e a Aurea, e essa relação aprofundou-se um pouco mais e nessa fase o Silk já estava a pensar sair da banda. Portanto, passado uns meses falámos com ele para ver se gostaria de repetir a experiência, mas desta vez assumindo o repertório da banda e não os clássicos de Natal dessa tour específica. Ele aceitou de bom grado e, pronto, começámos a trabalhar.

Como estou a falar especificamente com vocês os dois, que partilham muita história e muitas bandas — além de quando tocam para outros músicos, mas falando aqui dos vossos próprios projectos —, é aí que reside o estímulo para um músico? Poder manter vários projectos para onde se vai canalizando a criatividade e energia e poder ir fazendo momentos de repouso de cada projecto para depois se pegar noutro, e ir fazendo esse zigue-zague orgânico?

[FB] Isso é uma pergunta engraçada, especialmente para mim e para o João, que já trabalhamos juntos há 30 anos e em quase todos os projectos estamos sempre juntos. Eu falo por mim: no tempo dos Cool Hipnoise, éramos uma banda em que a imprensa para pôr um rótulo tinha que fazer assim uma lista entre parênteses funk, soul, rap, hip hop, afro e não sei o quê mais e a partir de determinada altura começámos a tocar com outras pessoas e a partir dessa fase, no fundo, cada projecto em que estive envolvido marca um dos meus lados que nos Cool Hipnoise estava tudo somado. E agora está tudo mais arrumado. Quando começámos a tocar com o Sam The Kid e depois fizemos Orelha Negra, ficámos ali na fatia do hip hop; com os Cais Sodré Funk Connection ficámos com a nossa cena soul funk. No meu caso particular, com os Micro Audio Waves, fiquei com o lado mais electrónico e pop rock psicadélico. E, depois, com os Fogo Fogo, o lado mais afro assumido, também psicadélico, e hoje em dia na minha vida as coisas estão assim nestas prateleiras — enquanto, no passado, estava tudo somado numa única banda. É assim que vejo as coisas, não sei se o João também partilha desta ideia.

[JG] Partilho, por um lado, mas por outro também acho importante referir que isso também é um reflexo da vida precária de um músico e que nem sempre é uma escolha. Várias vezes pensei, e no início da minha carreira era assim que pensava, que gostava de me poder dedicar exclusivamente a um projecto e fazê-lo crescer e mesmo dentro desse projecto poder experimentar várias nuances, se eu quisesse. Mas o facto de termos fundado vários projectos muitas vezes teve a ver com a necessidade, com o facto de os projectos onde estávamos quando paravam não nos permitirem sobreviver, não termos subsídios, não termos royalties, não termos volume de income suficiente para ficar a viver desses projectos como acontece nos países que têm um mercado musical verdadeiramente como um mercado, em que há muitos artistas que optam por ficar três, quatro, cinco ou seis anos sem lançar nada de novo e isso não quer dizer que eles tenham que morrer à fome porque o repertório está feito, há direitos de autor, há discos a serem vendidos e tudo isso a partir de um certo escalão, de um certo nível de sucesso e de trabalho mostrado… Para não haver músicos com 30 ou 40 anos de carreira a terem que sobreviver do próximo concerto e terem a certeza absoluta de que nunca vão ter uma reforma de jeito ou algo assim. Nós é que vemos sempre as coisas pelo lado positivo e procuramos encontrar coisas fixes, que há, no facto de estarmos a trabalhar com outros músicos e podermos ter outros projectos em que fazemos outras experiências e exploramos outras facetas.


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