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Texto: Vera Brito
Fotografia: Cátia Rodrigues
Publicado a: 03/11/2021

Amizade e canções boas.

Cafetra: “Ter um grupo de amigos que te levam a sério e que te querem ajudar faz toda a diferença”

Texto: Vera Brito
Fotografia: Cátia Rodrigues
Publicado a: 03/11/2021

Ninguém sabe ao certo precisar o momento em que tudo começou, mas é fácil perceber a consistência, algo rara nos dias que correm, de que é feita a Cafetra, repleta de lançamentos, concertos e eventos que nos foram oferecendo nos últimos 10 anos, e que foram fruto de muita vontade individual, mas sobretudo de um espírito colectivo inabalável.

As Noites Fetra, organizadas pela editora desde 2011, em Lisboa, seguem agora viagem pelo resto do país numa digressão especial que começa a Norte e, para além de levar a própria editora a outros sítios, abre também palco a vários artistas e colectivos locais, trazendo uma energia que vimos ausente da conversa nos últimos dois anos: a alegria de viver a música ao vivo.

Falámos com a Francisca Salema (Sallim) e o Lourenço Crespo sobre esta década de Cafetra e esta tour que, para já, segue para o seu segundo ciclo com paragens em Vila Nova de Famalicão, Póvoa de Varzim, Ovar e Coimbra, ficando a promessa de chegar a mais locais no próximo ano.



Pelo que percebi a vossa editora, a Cafetra, começou com um grupo de amigos algures em 2008. Querem contar-nos melhor como tudo aconteceu? Quais eram as vossas motivações?

[Lourenço] Já foi há algum tempo, sim. Não há bem uma data certa, 2008 foi quando começou mais ou menos a ideia e em 2011 foi a primeira edição física em CD. A ideia era isso, era um grupo de amigos, nós tínhamos duas bandas no total nessa altura e a partir daí formaram-se outras bandas entre si, a partir dessas duas. Os Passos em Volta e os Kimo Ameba, que foram os primeiros lançamentos que nós tivemos. A ideia partia de sermos nós próprios a gravar e nós próprios a lançar a música independentemente no Bandcamp, que era assim o espaço mais democrático onde podias lançar a música e ficava registada como tua e, quando compravam, faziam-no sempre directamente a ti, com uma pequena percentagem para o Bandcamp, que até agora ainda continua a ser espaço para poderes render a tua música. Entretanto já passou esse tempo todo e a ideia mantém-se, obviamente há muitas novas bandas, umas que não continuaram…

[Francisca] … sim, mas o grupo inicial da Cafetra manteve-se mais ou menos, aliás, eu só me juntei em 2015/2016, mas a maior parte dos membros iniciais do colectivo são os mesmos até agora, e acho que é importante também dizer que esta Noite Fetra, que agora vamos levar em tour, a primeira foi feita mesmo em 2011 para financiar essa tal edição que o Lourenço ‘tava a falar, que foi o primeiro CD d’Os Passos em Volta.

Já agora, curiosidade minha, de onde é que surgiu este nome? Cafetra é, bem…, original…

[Lourenço] Não tenho bem a certeza, acho que foi uma ideia do Pedro Saraiva, que tinha a ver com a nossa obsessão por café na altura. [Risos] Cafetra era uma variação de cafeteira. Neste momento ninguém se lembra muito bem, mas eu acho que esta é a [explicação] mais segura.

[Francisca] Sim, tem qualquer coisa a ver com café. 

Entretanto, já passou mais de uma década, muita coisa mudou, como vocês estavam a contar, algumas bandas terminaram, outras pessoas entraram. Que momentos é que vocês destacavam no vosso percurso ao longo desta década? 

[Lourenço] Hum… não sei, eu continuo sempre a achar que um novo disco é sempre um ponto alto do ano e nós conseguimos sempre lançar coisas todos os anos até agora, e é uma coisa que me entusiasma bastante. No último ano, ou quase dois anos, os concertos têm sido uma coisa complicada, e mesmo fazer uma Noite Cafetra, em especial fazer um concerto com muitas bandas, ou com muitas coisas, é sempre uma coisa complicada, por isso as últimas coisas a destacar têm sido mesmo essas, conseguir lançar os álbuns. O meu saiu o ano passado, tivemos o da Maria [Reis] este ano e os nossos colegas da editora ‘tão todos a gravar ou a misturar neste momento discos para sair este ano. 

[Francisca] Sim, eu acho que essa consistência é importante e enquanto existir vontade de continuar a fazer música e a lançar música a Cafetra continua a fazer sentido, porque é uma estrutura também que nos permite continuar a fazer isso, e a cumprir esse… não queria dizer propósito, que se calhar é muito forte, mas essa vontade de continuar a produzir música de forma consistente ao longo dos anos.

Aliás, vocês os dois já lançaram discos em nome próprio, quão importante tem sido a editora neste processo? Acham que se não existisse a Cafetra vocês neste momento estariam no ponto em que estão das vossas carreiras?

[Francisca] Eu acho que não…

[Lourenço] É assim, eu acho que sim, claro, mas é muito diferente quando fazes uma coisa, um projecto artístico, uma música, um filme, ou um quadro, e podes directamente mostrar a alguém e esse alguém não só tem uma opinião, como te pode apoiar e ajudar a melhorar, e tem todo o interesse. Portanto, ter um grupo de amigos em que podes, e não é confiar que te puxem para cima, mas confiar que vão levar aquilo a sério e que te querem ajudar a desenvolver faz toda a diferença. E isso nota-se em todas as pessoas, em todas as áreas, nota-se que é muito diferente quando te apoiam e te dizem para continuar, e são críticos seriamente. É uma coisa rara e faz toda a diferença. Eu acho que sim, que ia continuar a fazer o que faço porque tenho uma necessidade, e a maior parte tem essa necessidade, por isso é que se continua ao longo de 10 anos, não é? É isso que se continua a fazer, porque é uma vontade que é inevitável.

[Francisca] E eu quando ‘tava a dizer que achava que não, quer dizer, se calhar sim, mas eu acho que seria mesmo muito diferente, porque não só como o Lourenço diz, a Cafetra, ou seja, nós somos pessoas que trabalham juntas mas também somos muito amigos, e essas duas coisas são indissociáveis. Tu tanto tens a parte da estrutura, de teres um colectivo, quando há uma edição nova para sair, nós tratamos de tudo, basicamente, da promoção, da comunicação, muitas vezes somos nós que fazemos os vídeos, há uma espécie de um mecanismo independente que trata também dessas partes mesmo logísticas do que é continuar a produzir música e a lançar música. E depois tudo o que o Lourenço diz eu subscrevo, acho que ter esse apoio moral e crítico é super importante como artista. Para mim também o é.

Já percebi então que vocês são então um colectivo com uma amizade muito forte. O que é que vocês diriam que distingue a Cafetra em relação a outras editoras por cá?

[Lourenço] É assim, eu acho que a maior parte, não sei se todas, mas a maior parte começam sempre da mesma maneira que é esta.

[Francisca] Sim, e nós não fomos os primeiros.

[Lourenço] Pois, nós copiámos o formato à FlorCaveira. Na altura, a FlorCaveira foi a editora que nos mostrou que era possível, nós íamos aos concertos deles e víamos os CDs, e eram CD-Rs que eles próprios tinham feito, e nós com 14/15/16 anos… foi uma coisa que nos entusiasmou muito. E eu espero, e acho que sim, que o que nós temos feito também tenha influenciado outras editoras a fazer, e acho que todas começam dessa maneira. Depois, à medida que vão crescendo ou desaparecendo é que pode-se ir sempre associando, podes associar-te a outra editora, ou a uma outra empresa, e aí já fica diferente, não é?

[Francisca] O que é mais raro na Cafetra é a durabilidade de de um tipo de intenção que se manteve ao longo dos anos, acho eu.

[Lourenço] Sim, e o constante lançamento de discos. 

Agora pegando no objectivo principal desta entrevista — a vossa tour [Noite Fetra & Amigos], vocês contaram com o apoio da DGArtes. Começava por vos perguntar como é que surgiu essa oportunidade?

[Francisca] Então, no ano passado, como também ‘tavamos a falar, nós ficámos todos numa situação assim um pouco complicada, não é? Acho que como quase todos os músicos e pessoas que trabalham na área dos espectáculos e assim. Então, decidimos propor uma candidatura à DGArtes, que fosse mesmo em direcção a essa coisa que nos ‘tava a faltar. E a Noite Fetra é uma iniciativa que a Cafetra já faz desde os seus primórdios e a ideia com este projecto era no fundo descentralizar a Noite Fetra, que é um evento que se realizou até agora sempre em Lisboa – nós somos de Lisboa – e também tirar partido das redes que já tínhamos e que fomos criando ao longo dos anos com promotores e músicos de outras cidades, e levar então essa noite a mais sítios, sempre com convidados das próprias cidades por onde vamos passar e recuperando aquilo que nos ‘tava a fazer de facto mais falta, que era tocar ao vivo. E acho que o principal da candidatura foi isso, a nossa ideia era descentralizar, tocar ao vivo e fomentar estas redes que eu acho que são super importantes.



Ia dizer que este último ano, mas já estamos em pandemia há quase dois anos, têm sido tempos complicados para além do normal. Quais diriam que são as principais dificuldades que uma editora independente como a vossa enfrenta em Portugal?

[Francisca] No início, ou melhor, em primeiro lugar, o financiamento é uma coisa com a qual nós temos sempre de lutar um bocado. Aliás, nós já nos tínhamos candidatado a apoios para edições, mas individualmente, portanto esta é assim a primeira candidatura que fazemos como colectivo e acho que é uma coisa que é difícil, a parte do dinheiro e do financiamento e de continuar a trabalhar sustentavelmente, mas não sei se esse será o principal…

[Lourenço] Para mim, a dificuldade principal é marcar concertos como pessoa individual, é conseguir que te levem a sério, tu tendo a propor só “eu sou uma pessoa que toca e quero tocar aqui”, sem nenhuma agência atrás, sem nenhuma entidade atrás. Com a Filho Único temos essa facilidade às vezes, de eles conseguirem propor, mas quando somos só nós ainda é uma coisa que às vezes não é levada tão a sério, mesmo com estes 10 anos em cima, e somos todos músicos profissionais neste momento. Acho que isso é uma dificuldade que eu ainda tenho.

[Francisca] Sim, apesar de eu ‘tar a dizer ainda há bocado que nós fazemos praticamente tudo, de facto a parte do agenciamento é uma coisa que nós até há pouco tempo fizemos muito em parceria com a Filho Único, e que acho que agora ‘tamos assim um bocado mais, como é que eu hei-de dizer… desamparados. Os discos continuaram a sair e nós temos imensa vontade os tocar e acho que um apoio como este [da DGArtes] é muito fixe, porque nos permite fazer isso, porque não foram só os músicos que sofreram com isto, as salas também. Se antes já era difícil, agora ainda mais, portanto é muito bom estas coisas existirem para poder fazer estes projectos assim.    

Felizmente, aos poucos, voltamos a ver concertos e salas a encher, ainda dentro daquilo que é possível. Regressando então a esta tour, vocês vão passar por várias localidades, e com convidados locais, o que é que podemos esperar destas noites que se avizinham? O que é que vocês têm preparado que nos possam dizer?

[Francisca] Na segunda metade da tour vamos passar em Vila Nova de Famalicão, com um projecto que é o LAWLESS. Na Póvoa de Varzim com um projecto que se chama Outro. Em Ovar vamos tocar dentro do contexto do NOVO, que é uma espécie de um festival que eles realizam na Casa do Povo de mostra de nova música portuguesa, com o The Real Happy Boy, o Pedro Petiz, que é um amigo nosso, e os The TreeHouse Experience. E depois fechamos em Coimbra, no Salão Brazil, que é sempre um prazer para nós, gostamos muito de tocar lá. Convidámos o Miguel Cordeiro para fazer a abertura e o СIGA239, que é um colectivo de Coimbra, para fazer um set final. E depois o alinhamento da Cafetra mantém-se constante ao longo destas datas.

[Lourenço] Sim, vai ser em cada sítio um espetáculo contínuo que inclui Éme e Moxila, eu e a Sallim, e Putas Bêbadas. Como já disse, vai ser um espetáculo contínuo, em que vamos contar com entradas e saídas de cada um.

[Francisca] Sim, vamos ter momentos de transição, porque nós tivemos também uma experiência muito fixe ao vivo várias vezes, que é a Banda Fetra, que é um concerto colectivo em que tocamos repertório um dos outros, todos juntos, e acho que esta tour também tenta fazer um formato híbrido entre essa ideia da Banda Fetra, permitindo a cada projecto e artista individual tocar o seu repertório. O Éme e a Moxila estão a preparar um disco para sair este ano, portanto vão tar a tocar canções desse álbum. Nós [Sallim e Lourenço Crespo] vamos ‘tar a tocar essencialmente dos últimos dois álbuns, nos quais também colaborámos um com o outro, e Putas Bêbadas também vão ‘tar a divulgar canções do terceiro álbum que estão a preparar, portanto ’tá tudo assim mais ou menos fresco, mas também retomando alguns clássicos.

Imensa coisa nova para mostrar, muita gente e eu já tinha espreitado, obviamente, o alinhamento da tour, e reparado nos muitos convidados. Quanto trabalho dá organizar uma tour assim? Para além de vocês, todos estes convidados, todas estas cidades… há quanto tempo estão a trabalhar nisto?

[Francisca] Olha, já estamos a trabalhar há um bom tempo e, sim, dá muito trabalho, mas ao mesmo tempo também nos dá prazer, senão também não fazíamos. Eu diria que foi mais ou menos… quando é que nós fizemos a candidatura? Já não sei bem, foi no início do ano passado e quando começámos mesmo a programar foi no início do Verão deste ano. Portanto sim, são alguns mesitos e a maior parte de nós também tem outras coisas, outros trabalhos, mas ’tá a ser uma grande aprendizagem.

Esta tour é também uma celebração de todos estes anos da vossa editora, perguntava-vos onde é que vocês imaginam ou gostariam de ver a Cafetra Records daqui a outros 10 anos?

[Lourenço] Essa é difícil… [risos] Eu gostava que continuasse e que pudesse crescer da maneira como tem vindo a crescer. Gostava que crescesse mais rápido ainda, mas isso nunca se pode saber, não é? Gostava que fossem ainda mais canções e melhores, e mais concertos, gostava só de aumentar essas duas. Era bom que isso crescesse dessa maneira. De resto… acho que é isso, é continuar, e continuar sempre a fazer mais e melhor, é básico, mas acho que é isso.

[Francisca] Concertos e discos. [Risos]

Para terminarmos, o que é que vocês diriam a alguém que nunca tenha ido a uma Noite Fetra — olhem, como eu ,por exemplo –para convencê-los a ir?

[Lourenço] É um espectáculo que, para já, é bom porque vai ter nesta tour sempre um convidado local, que eu acho que motiva sempre alguém a ir ver. E depois é único, no sentido em que vai ser um concerto contínuo com todos, em que nas transições vamos  sempre tocar músicas uns dos outros, ou seja, para quem já conhece vão ser novos arranjos para as músicas, e para quem não conhece fica a conhecer logo imensas coisas de seguida. Pá, e é um espectáculo que eu acho apropriado para todas as idades, é uma coisa que se pode ir tanto em família, como com um grupo de amigos. Acho que é um espectáculo bastante inclusivo.

Como vai ser a lotação das salas?

[Francisca] Vai depender um pouco mas são tudo salas de pequena e média dimensão, nós também acho que gostamos de manter as coisas assim caseiras… Por exemplo, o auditório de Esposende é para 50 pessoas, mas depois o Luz e Vida é para 180, acho, mas será sempre no máximo 200 pessoas na maior parte dos sítios. Outra coisa que eu também acho fixe, e que nós quisemos fazer, foi que estes concertos fossem acessíveis. São alinhamentos com vários concertos, mas que nós quisemos que fossem monetariamente acessíveis, percebes? Temos alguns com entrada grátis, temos outros com donativos de três euros, depois temos de cinco euros, mas para nós isso era importante também, que fosse inclusivo nessa parte.

[Lourenço] E é também uma maneira boa de se ver que boas canções não têm bem um género, que são três projectos que são muito diferentes entre si, mas ali dá para ver que a distinção nunca é pelo género, é pela boa canção [risos].


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