Há histórias que nascem da escuta, da partilha comunitária e de uma certa urgência coletiva. A dos Cacique’97 tem todos esses ingredientes e começa em Lisboa, envolta em cassetes e discos de Fela Kuti e Tony Allen, alimentada por encontros entre músicos que procuravam um som que ainda não se escutava nos palcos portugueses. Esse som tinha origem na Nigéria e chamava-se afrobeat, mas rapidamente se misturou, nas mãos deste coletivo, com outras coordenadas da África Ocidental e Austral, do Brasil e da Jamaica, num gesto criativo para onde foram confluindo diversas tradições musicais e expressivas do Atlântico Negro.
Portugal mudou muito entre 2005, ano da fundação da banda, e 2025, ano em que celebram duas décadas de existência. Mudou o país, o mundo, o mercado, a cidade onde nasceram. Mas há algo que parece não ter mudado: a crença na banda como espaço de partilha e afetos, de construção coletiva e força criativa. Afinal, como aqui nos diz Marisa Gulli — e com toda a razão — nada se compara à “energia, ao som e à comunidade” de uma banda a tocar ao vivo.
Ao longo desta entrevista, revisitamos o percurso do grupo, os seus desafios, conquistas e transformações estéticas. Partimos do gesto inaugural de tocar afrobeat em Portugal, da intenção política e reivindicativa que sempre quiseram abraçar, dos álbuns editados e das muitas colaborações. Passamos, também, pela cena que os viu nascer e pelos espaços que desapareceram, por uma Lisboa que talvez já não exista, e pela urgência de repensar o papel da música — e dos músicos — num tempo em que os discursos de ódio se tornam cada vez mais presentes e insuportáveis. E falámos, claro, da Palestina, a quem dedicaram o seu mais recente single, reafirmando aquilo que os Cacique’97 sempre foram: uma banda que acredita que não se dança de forma neutra, e que a música pode — e deve — manter vivos todos os sonhos de um mundo livre.
Para celebrar essa aposta — e os 20 anos de resistência da banda — a festa está marcada para o Lux Frágil, em Lisboa, no próximo dia 4 de setembro, prometendo-nos mais de duas horas de ritmo, suor, amor e luta. Como resistir?
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Os Cacique’97 celebram 20 anos de existência e, quando surgiram, o afrobeat não era um género particularmente presente em Portugal. Recuando a 2005, que urgência sentiram em trazer o afrobeat para o centro da vossa criação? O que vos motivou naquele momento e como é que olham hoje para esse gesto inaugural?
[Milton Gulli] Não foi algo muito planeado. Começou quase como uma brincadeira. Eu e o Gonçalo Oliveira andávamos a ouvir afrobeat, especialmente as versões mais eletrónicas do Tony Allen e do Femi Kuti, e na altura tinham saído umas compilações nesse registo, como a Red Hot + Riot. Nós temos esse lado de “investigadores”, começámos a experimentar coisas mais eletrónicas nesse registo e percebemos que havia ali algo interessante. Mandámos para várias pessoas e a maquete começou a gerar algum buzz. A partir daí pensámos em formar uma banda a sério, com uma orquestra com sopros, percussão, coros — e foi assim que tudo começou a ganhar forma.
[Tiago Romão] Eu conheci o afrobeat através do Milton e da Marisa. Conhecia alguma música dos PALOP, mas afrobeat não. Quando o Milton nos mostrou a música e aquela maquete, o que me chamou logo a atenção foi o trabalho rítmico, especialmente o do Tony Allen.
As influências nesse período eram sobretudo do Fela Kuti e do Tony Allen?
[Milton Gulli] Sim, sobretudo no início. Eu e a Marisa conhecíamos o Fela desde adolescentes — o meu pai tinha umas cassetes lá por casa. Um dia pusemos uma a tocar, sem sabermos bem quem era, e ficámos fascinados. Achámos tudo muito original.
[Tiago Romão] Já na fase final dos Philharmonic Weed tentámos fazer algo próximo do afrobeat…
[Milton Gulli] Exato. Na altura havia algumas bandas a brincar com isso — os Cool Hipnoise, os Terrakota, os próprios Philharmonic Weed — mas não havia nenhuma dedicada exclusivamente ao afrobeat.
A vossa sonoridade é claramente de homenagem, mas não só: há uma apropriação criativa, uma renovação do género com outras influências vindas também do highlife, de música dos PALOP, ou do Brasil. Isso foi um gesto deliberado ou surgiu naturalmente?
[Milton Gulli] Foi algo natural e no primeiro álbum não houve uma direção muito definida. Começámos a compor e foi o que saiu. No segundo já houve mais intenção de puxar para o lado lusófono, com referências a Moçambique, Cabo Verde, Angola, Brasil. Mas no início só queríamos tocar afrobeat “à nigeriana”. Essa tal coletânea, a Red Hot + Riot, tinha artistas americanos e latino-americanos a recriar músicas tanto do Fela como de D’Angelo, The Roots, Jorge Ben Jor, Common, Madlib, e foi uma grande influência.
Virá daí o vosso gosto de juntar muita gente ao projeto? É que além de serem uma banda grande, ainda têm uma família alargada, digamos assim, de músicos que foram sendo convidados para colaborar com vocês.
[Marisa Gulli] As bandas de afrobeat por norma são numerosas. Têm secção de sopros, às vezes mais de dois percussionistas, coros, bateria, baixo… Começámos com poucos, mas fomos crescendo. Agora voltámos um pouco à base.
Têm também um histórico de colaborações com rappers. No primeiro disco, por exemplo, participaram nomes como Sir Scratch, Bob da Rage Sense, Sagas ou o Ikonoklasta. O hip hop era já uma linguagem próxima para vocês?
[Marisa Gulli] Sim, essa ligação já vinha dos Philharmonic Weed, em que tocámos muitas vezes com rappers.
[Milton Gulli] Havia uma comunidade. Cool Hipnoise, Philharmonic Weed… Dávamo-nos muito com rappers. Quando fizemos o primeiro álbum, queríamos ter um rapper de cada PALOP. Não conseguimos, mas reunimos o Ikonoklasta, Sir Scratch, Sagas e o Bob. No segundo tivemos o Jorge Du Peixe, de Nação Zumbi, o Nástio Mosquito, o Azagaia e a Nneka, que foi uma ligação via Sara Tavares. Sempre procurámos colaborações fora do afrobeat, e isso enriqueceu muito o nosso som. Nessa altura havia mais permeabilidade entre artistas. Agora eu acho que as coisas estão mais compartimentalizadas.
[Tiago Romão] Não existiam redes sociais e havia uma comunidade aqui em Lisboa que estava ligada à música africana, à música urbana ou ao hip hop que era algo mais underground. Toda a gente se identificava com essas ideias, com essa forma de estar, de tentar fazer. A malta percebia que estávamos todos a lutar pelo mesmo e havia um maior sentido de comunidade.
E na altura, como é que imaginavam o futuro de uma banda de afrobeat em Portugal? Tinham alguma projeção ou visão a longo prazo para o grupo? Havia planos concretos ou estavam simplesmente a seguir o impulso do momento?
[Milton Gulli] [risos] Sinceramente acho que não projetávamos nada. Na altura estávamos concentrados em fazer músicas e arranjar concertos. Não havia grandes planos. Éramos miúdos, com vinte e poucos anos.
[Tiago Romão] [risos] Não havia planos. Queríamos fazer música com a qual nos identificávamos, e que não víamos ninguém a fazer cá. A cena sempre foi a música. E continua a ser. Se não fosse por isso, já tínhamos arrumado as botas [risos].
[Marisa Gulli] A música mas também a mensagem, que sempre foi algo muito importante para nós.
A mensagem está mesmo muito presente no vosso repertório e nos concertos ao vivo. Esta semana, por exemplo, lia uma reportagem ao vosso concerto em Ovar, onde se destacava precisamente isso: o facto de a dança que vocês geram no público não ser passível de ser despolitizada. É uma dança consciente.
[Milton Gulli] Isso vem também da própria tradição do afrobeat, que sempre foi música de intervenção e nós não queríamos fugir disso. A banda foi um meio para partilharmos as nossas frustrações com o mundo, com o país, com o que estava a acontecer. E muitas dessas coisas, infelizmente, continuam a acontecer.
Olhando agora para trás, conseguem identificar os principais desafios que enfrentaram enquanto grupo, e também as conquistas mais marcantes que tiveram nestas duas décadas?
[Marisa Gulli] Os principais desafios vêm do facto de sermos uma banda grande. É difícil conciliar tudo — desde os ensaios até convencer alguém a pôr-nos a tocar, porque somos muitos em palco. É uma logística complicada. E mesmo entre nós, gerir ensaios, gravações… Tudo isso é um desafio constante.
[Milton Gulli] E a banda também foi mudando muito. Houve uma fase em que entrou o João Gomes e o Francisco Rebelo, dos Cool Hipnoise, e sentimos que a coisa começou a ficar mais séria. Depois entrou o João Cabrita e houve outra mudança de nível. Mas, entretanto, eu fui viver para Moçambique e estive lá quase dez anos. Isso também foi um desafio grande.
E em termos de conquistas?
[Tiago Romão] Acho que o início foi logo uma grande surpresa. Juntámo-nos para fazer música, sem pensar se ia ser fácil ou difícil, se havia mercado ou não. Quando apresentámos o primeiro disco na ZDB — éramos completamente independentes, sem estrutura nenhuma — ficámos muito surpreendidos com a recetividade. As entrevistas que saíram, as pessoas que foram, os textos que se escreveram…
Não havia agência de comunicação e assessoria? [risos]
[Tiago Romão] Nada, zero! [risos] Ficámos mesmo surpreendidos. E depois conseguimos tocar em palcos grandes e percebemos que havia interesse, inclusive comercial. A seguir as coisas tornaram-se mais difíceis. O Milton foi para fora e decidimos que não íamos fazer Cacique sem ele. Ele pôs-nos sempre à vontade, mas para nós não fazia sentido. Mesmo assim, com o Milton fora, superámos algumas dificuldades e o segundo disco foi gravado com ele em Moçambique.
[Milton Gulli] O primeiro disco entrou em todas as listas de melhores do ano e em 2010 tocámos em quase todos os festivais. Depois, quando fui para Moçambique, o mercado mudou — começaram a surgir outras vertentes da música africana, mais modernas, e a logística começou a ser mais complicada. Mas nunca desistimos e continuámos sempre a insistir.
Ao longo dos anos, deram muitos concertos. Há momentos que vos tenham ficado especialmente na memória — situações curiosas, inusitadas ou particularmente marcantes em palco?
[Marisa Gulli] O Festival de Músicas do Mundo de Sines foi dos mais impactantes. Íamos lá todos os anos ver concertos, e sempre foi um objetivo tocar lá. Lembro-me de chegar ao palco e me esquecer da letra da música [risos]. Foi mesmo muita emoção.
[Tiago Romão] Tocámos por volta das sete da tarde, com a praia cheia de gente. A recetividade foi incrível, mesmo de pessoas que não nos conheciam. Esse concerto marcou-me muito.
[Marisa Gulli] E, mais recentemente, o concerto em Ovar também nos surpreendeu. Era de entrada livre, e fomos super bem recebidos.
[Milton Gulli] Momentos inusitados também não faltam. Já tivemos carrinhas a avariar a meio do caminho para o concerto [risos].
[Tiago Romão] Ou perder músicos pelo caminho [risos].
[Marisa Gulli] Ou mesmo durante o concerto! [risos]
Quando olham hoje para o vosso primeiro disco, mais de quinze anos depois da sua edição, que relação mantêm com esse trabalho? Ainda vos ressoa — estética ou emocionalmente — ou sentem que pertence a uma fase mais distante da vossa história?
[Milton Gulli] Ressoa completamente. Ainda hoje tocamos muitas músicas desse álbum, se calhar até mais do que do segundo. O segundo disco talvez tenha uma complexidade diferente.
[Marisa Gulli] O público responde muito bem aos temas desse disco. É um som mais nosso, mais genuíno, mais Cacique — talvez até mais do que o do segundo álbum.
[Tiago Romão] O processo foi muito diferente. O primeiro disco nasceu dos ensaios, de jams, até de check sounds nos próprios concertos. O segundo foi gravado com cada um em locais diferentes.
[Milton Gulli] No segundo álbum, alguns elementos da banda compuseram temas e depois trabalhámos sobre essas ideias. Não houve aquele processo de tocarmos as músicas repetidamente antes de gravar. No primeiro, tínhamos tocado as músicas muitas vezes antes da gravação. No segundo, praticamente todas foram gravadas primeiro e só depois começámos a tocar ao vivo.
Os dois discos têm mensagens claras e assumidas, mas no segundo há uma abordagem mais específica — até pelo título, We Used to Be Africans — em torno da ancestralidade africana e de uma reflexão identitária que atravessa várias músicas. Essa dimensão veio da tua estadia em Moçambique, Milton? Sentes que o álbum reflete esse momento?
[Milton Gulli] Sim. As letras do segundo disco foram muito influenciadas por esse tempo em Moçambique. Sinto que é um álbum mais virado para África, que aponta para problemas africanos. A “Black Gold”, por exemplo, fala sobre a exploração de recursos; a “Mahala” aborda questões específicas de Moçambique. O segundo álbum tem mais esse peso político e social ligado ao continente africano. Na verdade, não sinto que o álbum seja sobre identidade negra ou afrodescendente em Portugal. É mais sobre os problemas que existem em África e sobre como muitos desses problemas têm origem em países que não são africanos. Essa era a principal mensagem. O título We Used to Be Africans — que é também uma música — remete para essa ideia de que todos nós viemos de África. É, talvez, o continente mais rico do mundo e, ao mesmo tempo, o mais pobre. A intenção era falar dessa realidade. Não tanto da identidade afro-lusa ou afrodescendente. Talvez agora tenhamos de nos debruçar mais sobre isso, porque tentamos sempre refletir o tempo em que vivemos. E agora há muitas questões urgentes: o crescimento da extrema-direita, o neonazismo, mas também a afirmação das identidades afrodescendentes aqui. Vamos ter de nos focar nisso.
Apesar de que no vosso último single — “Letter to the Martyrs” — a direção foi dirigida para o Médio Oriente e para a Palestina. Está tudo ligado?
[Milton Gulli] Sim. Essa música começou com o Marcos, o nosso baterista, e quando comecei a pensar na letra veio imediatamente a Palestina. Acho que isso aconteceu porque não vejo os artistas aqui em Portugal, como fora, a falarem muito sobre este assunto. Agora já se vê mais, mas há muita gente que tem poder, que podia falar e não fala. Achei que era muito importante falarmos sobre isso e pensar como fazê-lo sem ser de uma forma panfletária. Achámos que era urgente. E continua a ser, porque o genocídio está em andamento.
E como é que sentem que evoluiu a receção à vossa música ao longo destes 20 anos — tanto por parte do público como da própria indústria, do setor da música ao vivo, da programação?
[Tiago Romão] Acho que agora é mais difícil. Embora pareça que tens mais ferramentas, houve um certo afunilamento. Ouves muito mais música feita em Portugal, tens as redes sociais, e parece que consegues chegar a todo o lado. Mas, na verdade, parece que só há espaço para o mainstream — para coisas que têm muita projeção nas redes. E isso depois traduz-se em concertos e oportunidades. Há exceções, mas a figura do curador, do programador cultural, praticamente desapareceu, dando origem a agentes puramente comerciais.
Ainda recentemente ouvi um diretor de um grande festival dizer, como algo positivo, que a curadoria era feita com inteligência artificial, a partir de visualizações, estatísticas de cliques e do rasto digital do público.
[Tiago Romão] Pois. Os promotores privados têm todo o direito de escolher quem quiserem. Podemos criticar ou não, mas é compreensível. O que me incomoda mais é ver o mesmo acontecer com autarquias e instituições que usam fundos públicos — municipais, culturais ou europeus — para oferecer cultura às pessoas. Esses fundos têm um impacto enorme na sustentabilidade dos artistas e o que vemos é que esses mesmos municípios contratam os mesmos artistas mainstream, em vez de promoverem uma programação variada e diversa.
[Milton Gulli] É claro que há exceções. O festival de Ovar, onde estivemos agora, é um bom exemplo. Ainda há programadores com esse interesse.
[Tiago Romão] Sines também se tem mantido fiel à sua linha. Mas há outros que já começam a ceder à pressão.
[Marisa Gulli] Um dos problemas é que apesar de haver muitos festivais, vão todos buscar os mesmos artistas. Há artistas que tocam todos os fins de semana, às vezes com 30 ou 40 km de distância entre concertos, enquanto outros quase não tocam.
[Tiago Romão] E, por outro lado, muitos espaços que apoiavam o circuito independente não resistiram à pandemia. Se por um lado temos artistas portugueses a esgotar o Altice Arena, o que é ótimo, por outro lado os espaços pequenos desapareceram. Isso afunila muito o circuito. Agora, a recetividade do público é exatamente igual, desde crianças até pessoas com mais idade que adoram os nossos concertos. Continua a ser assim, mas precisamos de mais palcos.
Num mercado nacional limitado, a internacionalização foi — ou continua a ser — uma ambição para garantir a sustentabilidade da banda?
[Milton Gulli] Sim. Nós temos bastante público fora de Portugal. No Brasil, por exemplo, descobrimos que temos um following enorme. Começámos a descobrir bandas que tocavam músicas nossas e bandas que começaram os seus projetos a ouvir Cacique’97, como o Bixiga 70. Fomos descobrindo que temos um público no Brasil, e também nos Estados Unidos, em França, na Alemanha, na Holanda. Como banda, a logística por vezes é complicada, mas temos de continuar a insistir.
[Tiago Romão] Mesmo em Portugal, a logística já era difícil — e agora está ainda tudo mais caro. Como nós somos muitos, isso pesa tudo. Além disso, agora já somos quase todos pais e mães e isso torna cada vez mais difícil estarmos juntos e ensaiarmos. A única coisa que continua a ser muito fácil para nós é fazer música.
Que é o mais importante. E sobre este aspeto, qual acham que é hoje o lugar das bandas? Nos últimos anos, surgiram muitos artistas em nome individual — mesmo ao vivo, muitos atuam com instrumentais de fundo, ou com músicos escondidos atrás do palco. Mas vocês insistem em ser uma banda, e ainda por cima uma banda grande, com muitos instrumentos ao vivo. Para vocês, a banda continua a fazer sentido enquanto dispositivo criativo e performativo?
[Marisa Gulli] Completamente. É a energia, o som, a comunidade… Tudo isso conta para a nossa presença em palco, para a nossa criatividade. Há sempre alguém que traz uma ideia, um som novo para ouvirmos. Isso não funciona se for só uma pessoa com as máquinas.
[Milton Gulli] E para alguém que nos está a ver pela primeira vez, é uma experiência muito diferente ver dez pessoas em palco a tocar ao vivo, ou ver dois ou três com máquinas.
[Tiago Romão] E acho que isso é cíclico. Mais cedo ou mais tarde vai haver um regresso das bandas.
[Milton Gulli] Em Inglaterra têm surgido novas bandas com formações grandes. Aqui em Portugal sinto que não tanto. Os artistas habituaram-se a fazer música sozinhos, ou com um produtor, e depois vão para o palco sozinhos ou levam dançarinos. Se calhar também tem a ver com o próprio mercado — os cachês já não são tão altos para projetos novos, e o pessoal prefere reduzir o formato porque é mais fácil conseguir concertos. Mas claro que há exceções e há bandas de malta nova a aparecer.
Por exemplo?
[Milton Gulli] Esse novo jazz português que está a aparecer — os YAKUZA, os Mazarin, a LANA GASPARØTTI — são alguns exemplos. Em Inglaterra também há muitas bandas com formações grandes a surgir como os Kokoroko, os Ezra Collective… Em Inglaterra houve um trabalho sério de levar o ensino do jazz para os bairros. É algo que aqui ainda não aconteceu, ou está a acontecer muito devagar. Mas isso democratizou essa ideia da banda, de tocar jazz, de criar grupos.
Na vossa biografia, Lisboa aparece como o lugar onde a vossa música nasceu — uma cidade de encontros entre gente diferentes origens, migrantes, pessoas em circulação, diferentes diásporas. A vossa música nasceu também dessa convivência e dessa diversidade que Lisboa sempre representou. Como é que olham para a cidade hoje? Sentem que a cidade ainda permite os encontros que naquela altura fizeram surgir uma banda como os Cacique’97? Ainda existe essa Lisboa?
[Milton Gulli] Acho que não. A cidade mudou bastante. Muitos dos espaços independentes que havia em Lisboa fecharam. Hoje há poucos sítios alternativos, independentes. Há muita coisa virada para o turismo — que, de certa forma, também dá trabalho a muita gente — mas já não se proporciona tanto esse encontro. As coisas agora parecem sair muito mais dos bairros, das periferias, do que do centro de Lisboa.
[Tiago Romão] Acho que há mais oferta, mas menos diversidade. As pessoas estão mais formatadas para o negócio, para o que resulta, para o que funciona — fruto deste turismo massivo. Toda a gente quer faturar. E acho que o que vai aparecer no futuro é uma nova malta da periferia, uma malta underground outra vez, que é contra essa cultura do centro urbano, que se tornou tudo um bocadinho mais do mesmo. E aqueles que lutam para continuar a resistir — falo de casas de espetáculos, de eventos — têm sérias dificuldades em sobreviver.
[Milton Gulli] Há mais oferta — há noites em que estão a acontecer dezenas de concertos — mas muito do público são turistas, e muitos dos artistas que estão nesses circuitos também não são de Lisboa. É quase um circuito paralelo. Claro que ainda há sítios com público lisboeta, mas cada vez menos. Muitos dos sítios onde tocávamos ou que frequentávamos já não existem, como o Club Mercado, Arte&Manha, o Ondajazz, o Bacalhoeiro, a Crew Hassan… Havia vários espaços e os músicos circulavam todos nesses sítios.
Sendo vocês uma banda muito interventiva, como é que vêem o momento político atual? Já falámos da Palestina, mencionaram que muitos dos problemas que abordaram no primeiro disco continuam presentes, mas estamos a viver um momento particularmente complexo em Portugal: mais de 50 deputados de extrema-direita no Parlamento, ataques na rua a imigrantes, uma retórica de ódio nas redes sociais que se tornou brutal. Como é que olham para o papel da cultura e dos músicos neste momento? Sentem que os músicos estão a cumprir o seu papel?
[Milton Gulli] Eu acho que há poucos músicos a falar sobre isto.
[Marisa Gulli] Também acho.
[Milton Gulli] Se formos ver as bandas que estão aí, talvez possamos apontar a A garota não, o Luca Argel, a Capicua… Mesmo o hip hop, que sempre teve essa tradição, tornou-se tão mainstream que acabou por se afastar dessas temáticas de intervenção. Claro que há muita coisa underground, mas sinto que os artistas, no geral, não estão muito engajados. E isso também tem a ver com política, com o medo de perder oportunidades, de perderem o seu espaço. Eu dou muito valor a artistas como a Capicua ou a A garota não, que têm a coragem de falar sobre o que está a acontecer.
[Marisa Gulli] Ou, mais recentemente, os Cara de Espelho.
[Milton Gulli] Sim. Eu acho que no momento que vivemos devia haver muito mais vozes. Os artistas deviam estar muito mais envolvidos. Estamos numa fase perigosa e não sabemos bem para onde isto vai. Pode ser uma fase passageira — esperemos que sim — mas também pode levar-nos por um caminho muito perigoso. E a arte tem de estar na linha da frente nessa luta.
[Marisa Gulli] Quando os músicos deixam de abordar estas temáticas, também estão a deixar um espaço vazio. Quando deixamos de transmitir mensagens, quando estamos apenas a existir, perde-se sentido na arte. Não é preciso ser tão interventivo como Cacique, mas acho que todos os artistas, não só da música, têm um papel a cumprir. E neste momento, acho que esse papel é mesmo crucial.
[Tiago Romão] É muito importante e acho que muitos também o podem fazer de forma mais poética. A situação política aqui em Portugal parece muito diferente do que era, mas não mudou assim tanto. O que acontece é que aquelas pessoas de extrema-direita, racistas, que sempre existiram, antes estavam na sombra. Agora mostram-se, identificam-se. E, nesse sentido, até é bom — porque ficamos a saber quem são. Eles sempre cá estiveram, não apareceram do nada.
[Milton Gulli] É verdade, não apareceram do nada. Mas o que me preocupa mais é ver políticos que estavam mais ao centro a caminharem para a extrema-direita, porque perceberam que é isso que dá votos. Começamos a ver que já não temos proteção nas elites políticas. O problema é que os assuntos políticos ficam todos monopolizados por essa retórica. O que os portugueses ouvem é: “Vamos acabar com a imigração”; “Vamos acabar com a disciplina de cidadania”… Em vez de se focarem nos verdadeiros problemas — a habitação, a saúde, a educação — estão a desviar a atenção para questões que nem são problemas reais. Estão a criar bodes expiatórios, como sempre fizeram ao longo da história.
O que é que podem antecipar do concerto no Lux, onde vão celebrar os 20 anos da banda? Que tipo de viagem estão a preparar para o público nesta noite especial?
[Tiago Romão] Gostaríamos de ter uma casa cheia. Queremos celebrar no palco aquilo que conseguimos fazer e o facto de conseguirmos ter estado juntos este tempo todo.
[Marisa Gulli] E com os muitos amigos que sempre se juntaram, com os fãs de Cacique. Queremos celebrar com todas essas pessoas.
[Milton Gulli] Vamos ter alguns convidados especiais também — que ainda não podemos anunciar. Mas serão artistas com quem nos identificamos, que estiveram connosco ao longo destes anos. Queremos fazer uma celebração destes 20 anos de resistência. Uma viagem pela nossa história.
[Tiago Romão] O que podemos dizer também é que vai ser um concerto bastante grande. Temos a sala por nossa conta — por isso vamos mesmo levar muita música
[Marisa Gulli] Preparem-se para duas horas, no mínimo! [risos]
Não querendo desvendar o alinhamento, se tivessem de escolher apenas uma música da banda — uma que de alguma forma represente esta vossa história ou que vos marque particularmente — qual escolheriam? Posso começar eu, enquanto público: escolho a “13”.
[Marisa Gulli] Também estava a pensar nessa [risos].
[Milton Gulli] Para mim, talvez seja a “Jorge de Capadócia”. A “Quero Tudo” foi o nosso primeiro single, mas se pensar na história toda, escolho essa. É uma versão do Jorge Ben Jor, mas fizemos um arranjo completamente diferente. Mudámos tudo. Para mim representa bem o espírito dos Cacique.
[Tiago Romão] Eu escolheria uma música que representa bem quem somos: a “Quero Tudo”. Apesar de sermos todos muito diferentes, é uma música com a qual todos nos identificamos. É um lugar onde todos nos encontramos. Queremos tudo para toda a gente, e lutamos por isso.
[Marisa Gulli] Eu escolhia mesmo a “13”, apesar de já ter sido escolhida [risos]. É um dos temas mais antigos, e fazemos sempre questão de o tocar. Mas se não pudesse escolher a “13”, escolhia a “Dragão”, que também é das mais antigas. A secção de sopros luta um bocado com aquela melodia [risos], mas é um tema que dá mesmo prazer de tocar — desde a primeira vez até hoje.