Os festivais musicais estão cada vez menos focados em música. Aqueles que os vivenciam por causa do elemento principal, concordam que as diferentes opções de entretenimento e ativações comerciais têm tirado o foco. Porém, felizmente, alguns (pequenos e médios) estão fugindo desse padrão “roda gigante”. Um bom exemplo é o C6 Fest, organizado em São Paulo pelo banco que o nomeia. A diferenciação começa pela curadoria apurada que equilibra o jazz com as mais diversas vertentes alternativas, trazendo ao Brasil atrações que estão fora do circuito pop e dificilmente aportariam para algum concerto solo. Nos 2 primeiros dias — 22 e 23 de Maio — o jazz esteve no centro, tendo com protagonistas Amaro Freitas, Joe Lovano Quintet, Arooj Aftab, Brian Blade & The Fellowship Band, Kassa Overal e Meshell Ndegeocello.
Pelo alto nível curatorial, os bilhetes para essas noites se esgotaram rapidamente, não sendo possível acompanhá-los devido ao limite de capacidade do moderno Auditório do Ibirapuera, arquitetado por Oscar Niemeyer. Quem teve a oportunidade foi agraciado por ver de perto ícones jazzísticos modernos e clássicos. Isso não quer dizer que esse cuidado não se estendeu para os dias subsequentes (24 e 25), um deles também sold out.
No Parque Ibirapuera, “quintal” do auditório e uma espécie de Central Park de São Paulo, em meio da natureza, montou-se um espaço para a apreciação de artistas do indie, rock, psicodelia, alt-pop, rap, soul e da música brasileira. O filtro permaneceu com o mesmo nível de alinhamento. O público, também exigente, formado majoritariamente por pessoas brancas com mais de 30 anos e de classe média-alta, foi sabendo o que queria ouvir.
[Dia 1: Mulheres no domínio]
Tão pontual como qualquer relógio londrino, Agnes Nunes abriu o C6 às 14h de um sábado frio com bilhetes esgotados. Considerando as devidas proporções e eliminando qualquer tipo de comparação, ela tem a aura de Elza Soares. Não somente pelas caras e bocas que faz ao interpretar, mas principalmente pela entonação aguda, inclusive dando algumas puxadas vocais — uma das características de Elza. De vestido branco de crochê com vários brilhos, a cantora entra no palco dançando no ritmo da introdução: calma, serena, tranquila. Diz que preparou algo especial. Se solta conforme o tempo passa. Mas não se limita a ficar na região central do tablado. Começou com suas músicas autorais. Foi do R&B ao forró. Mas o ponto alto se deu quanto enveredou por clássicos da Música Popular Brasileira. Teve “Bem-te-vi”, de Gonzaguinha, a comovente “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo Carlos, e “Esperar pra ver”, da Evinha. Não só fez interpretações. Honrou seus ídolos do jeito que deveria ser. Depois de emocionar, convidou Xamã, com quem fez parceria no início de carreira, para reavivar canções de tempos atrás. Esse momento deu uma amornada, que só voltou a ficar quente no encerramento com “Mama África” de Chico César.
Quase uma hora depois, com a mesma precisão horária, a banda indiana Peter Cat Recording Co. chega de forma sorrateira. Até parece que o quesito principal para fazer parte dela é dominar mais de um instrumento. O vocalista e guitarrista Suryakant Sawhney começa tocando uma espécie de acordeão de mesa. O interlúdio é dramático, denso e emotivo. Uma trovoada inicia “Flowers R. Blooming”. Quase 8 minutos depois, a psicodelia toma conta da Tenda (o segundo palco), fazendo com que os corpos se mexam. A voz aveludada de Sawhney, com um sotaque carregado complementado por uma rouquidão de quem fuma alguns cigarros por dia, ajuda nas músicas mais densas, como “Suddely” e “Foomuse”, a ficarem mais sensuais. Tanto sensualidade quanto cigarro não faltam. Para relaxar, o músico acende um cigarro, traga, canta, dança, quase como se estivesse entrando em transe, numa viagem na qual levou todos quando tocaram “Memory Box”.
Mais intimista que Sawhney, Karan Singh, Dhruv Bhola, Rohit Gupta e Kartik Sundareshan, Perfume Genius trouxe uma brisa densa. O que prende a atenção é a performance com que o artista se foi contorcendo, ajoelhando, subindo em cadeiras e se embrenhando nos cabos. É um tipo de rock triste, sujo e confessional que dá uma baixada na adrenalina. Na arena, próxima dali, Stephen Sanchez conquista quem não o conhecia com seu rock oitentista, dançante e divertido. Carismático, ele interage com o público, fala várias vezes “obrigado” com um português arrastado, quase sempre ovacionado por se esforçar a falar na língua-mãe do país, e até ganha uma bandeira do Brasil com o seu rosto no lugar do círculo azul.
O sarrafo até a esta altura estava médio, mas estava prestes a aumentar. A maioria esperava The Pretenders, mas quem decidiu ver Gossip (praticamente no mesmo horário) imergiu na selvageria roqueira de Beth Ditto. Vestida com animal print de onça, ela dominou e ditou regras da noite. Como uma grande performer que é, a cantora chega chegando, se movimentando de um lado para o outro e interagindo com a plateia. Aliás, faz isso o tempo todo. Também se impressiona quando tem o carinho retribuído e observa que geral sabe cantar suas músicas. Enérgica, Beth possui um magnetismo que não te deixa sair do lugar para fazer outra coisa. Mesmo as árvores dentro da Tenda, que tapavam a visão no fundo, não impediram que todos curtissem sem restrições. Impactante, foi o concerto mais comentado. Após este, AIR trouxe a nostalgia e a serenidade aguardada, sem muitas surpresas, com a reprodução do clássico Moon Safari, de 1998.
[DIA 2: O rap, o experimental e aqueles que fazem o baile]
Assim que os portões se abriram, por volta das 13h de domingo, alguns fãs dos Wilco já tomaram a grade para estarem próximos aos ídolos que tocariam às 18h30. Para o bem ou para o mal, esse tempo dedicado à espera serviu para que ouvissem artistas que provavelmente não estariam no radar. Esse é o caso de Maria Esmeralda, projeto autoral de Thalin, Cravinhos, VCR Slim, Pirlo e Langelo. Assim como a deles, que conversei minutos antes da apresentação, a expectativa foi lá em cima depois de mais de uma pessoa me recomendar e dizer que não poderia deixar de ver. Às 14h, os 5 saíram da coxia com a vontade de quem está na disposição de ir para o tudo ou nada. Na companhia deles tinha um naipe de cordas (viola, violino e cello) formado por 3 mulheres, que foi o ingrediente secreto para temperar os beats carregados. Um vídeo com Marília Medalha declamando a poesia introdutória do álbum, “Lúdica”, abre a sessão. Depois que ela termina, o frenesi começa. Eles se sentem à vontade. Estão na sala de casa, um ambiente representado pela cenografia composta por um sofá e poltrona. Em poucos momentos esses móveis são utilizados porque Thalin, Cravinhos e Langelo vão de um canto ao outro, pulam, se empolgam, dão o seu melhor, como aqueles jogadores que jogam na raça. VCR Slim e Pirlo ficam na retaguarda. Conforme o show andava, as pessoas iam se achegando para saber quem eram os responsáveis por aquele som. De repente, o espaço estava quase tomado e todos atentos com as cabeças balançando conforme as batidas. As participações de Doncesão, Servo, RUBI, Quiriku, Matheus Coringa e Zudizilla só agregaram para o momento. Com a sintonia muito bem ajustada, entregaram o concerto da vida. Fizeram um show de rap, de verdade. Ao final, emocionaram, fazendo lágrimas caírem dos olhos de mais de uma pessoa. Se fosse para definir em apenas uma palavra seria: impecável.
Do explosivo à ternura, o C6 agradou gregos e troianos que conviveram dentro da mesma estrutura por algumas horas. Na Tenda foi onde mais aconteceu esse tipo de experiência, sendo possível uma maior proximidade com aqueles que estavam no palco. English Teacher foi uma grata surpresa. O grave impressionante da voz de Lily Fontaine casa perfeitamente com os ruídos da sonoridade que a banda propõe. É rock, mas é também muitas outras coisas que não têm uma certa definição. Douglas Frost (bateria), Nicholas Eden (baixo) e Lewis Whiting (guitarra e sintetizadores) seguram a onda, enquanto Fontaine troca a guitarra pelo sintetizador. A calmaria do início é apenas uma capa que é julgada antes de se ler o conteúdo do livro. Não por acaso, ganharam destaque rapidamente. Também colocaram “fogo” no parquinho quando chamaram uma fã brasileira, Aline, para tocar guitarra na vertiginosa “R&B”. Próximo do fim, Lily pegou sua meia-lua e foi para a grade cantar bem próxima do público. Uma das maravilhas dos festivais pequenos e médios.
Depois de alguns minutos de caminhada, saindo da Tenda, vou em direção da Arena onde o coletivo ganês Super Jazz Club inicia os trabalhos. No meio da tarde, o sol está quente, mas o vento gelado começa a dar seus sinais. A fusão de rap, R&B, neo-soul, afrobeats e jazz fez os curiosos se aproximarem. BiQo, Øbed, Seyyoh, Tano Jackson, Joey Turks e Ansah Live são muito bem entrosados, mas o destaque é da vocalista Seyyoh pela suavidade vocal e domínio na guitarra. Sem pirotecnias, fazem um trabalho consistente. Quem segue essa mesma premissa com elegância e sensibilidade na voz, e na forma de se vestir, é Cat Burns. Ficando entre a discrição e o entusiasmo, ela — acompanhada de uma banda formada apenas por mulheres — não tem sobressaltos. Possui a confiança de uma estrela que está começando a brilhar cada vez mais forte.
No início da noite, o bastão foi passado dos mais novos para os experientes. Seu Jorge fez seu Baile à La Baiana, reafirmando os motivos de ser um dos cantores brasileiros mais respeitados no mundo. Na companhia de Peu Meurray e Magary Lord, ele não deixou que o frio tomasse conta do ambiente. Fez todos dançarem. Um verdadeiro showman, Jorge fica à vontade no seu espaço de trabalho que mais parece um playground. Ele canta, toca, dança, pula, balança, sorri, baila. No setlist estão as músicas do recente álbum, que nomeia o show e possui uma variedade sonora (funk, samba, soul, chula e semba), mas também sucessos, como “Burguesinha”, e ainda uma parceria com Luedji Luna cantando “Banho de Folhas”. De tão quente e divertido, até Nile Rodgers apareceu na coxia para curtir o suingue da música brasileira. Hitmaker, Nile sabe muito bem o que os ouvidos desejam. Não por acaso até hoje as músicas do Chic — e a de outros artistas, assinadas por ele — são cantadas por diferentes gerações. Em São Paulo, ele sentiu-se acolhido e ambientado pela cidade ter uma atmosfera, arquitetura e comida aproximada da sua, Nova Iorque. Por quase duas horas, ele passa pelos clássicos da Chic (“Le Freak”, “Everybody Dance” e “Dance Dance Dance”) e de hits pop dele interpretados por Madonna, Beyoncé e Daft Punk. Como sempre, empolga e inspira com sua simplicidade. É um gentleman, professor, mestre. Para fechar, a escolha não poderia ser outra: “Good Times”. Ninguém melhor para amarrar tudo sem deixar pontas soltas. É desse tipo de festival que os amantes da boa música precisam.
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