Quando um artista europeu ou americano começa a despertar as atenções globais, nunca nos é apresentado como sendo uma das revelações da Europa, ou como um fenómeno da América do Norte ou Sul. A associação é sempre feita ao seu país de origem, por vezes à cidade até, sendo que, nos grandes centros urbanos como Londres ou Nova Iorque, é possível destacar zonas e bairros específicos, sem que isso tire verdadeira dimensão ao universo do qual se pretende destacá-lo. Porém, sempre que se olha para qualquer artista de origem africana parece ser inevitável explicá-lo, sem que imediatamente o cataloguemos dentro desse enorme conglomerado chamado África — como se um continente inteiro pudesse agrupar sem grande critério a identidade de 54 países, onde muitos se dividem ainda em culturas complemente distintas por entre os seus vários povos, porque raramente no curso da história lhes foi dada a escolha de demarcar as linhas que traçam as fronteiras entre si. Este nosso profundo desconhecimento não pode continuar a ser indefinidamente justificado por décadas de uma educação ocidental, que esqueceu o berço da civilização, recusando olhar com verdadeira atenção para o resto do mundo e a responsabilidade de criar esse equilíbrio é muito mais nossa do que desses artistas.
Se o nome Burna Boy vos for desconhecido e fizerem uma rápida pesquisa pela Internet irão invariavelmente perceber que a maior parte dos artigos o destacam como o mais recente fenómeno musical africano e, só depois, vos será dado a conhecer que Damini Ogulu é, de facto, nigeriano. É possível argumentar que isto se deve ao título escolhido para o seu recente disco: African Giant, editado este Verão que, mais do que uma certa ironia ao termo “the Giant of Africa“, pelo qual a Nigéria é conhecida, carrega a ambição de um artista que reclama a si o lugar de representar uma nação que, por sua vez, aspira representar todo um continente. Sem falsas modéstias, Burna Boy imprimiu até a sua cara numa nova moeda que dá a capa ao disco. Se este texto começou com uma reflexão sobre o quão fácil e preguiçosamente generalizamos injustamente a cultura africana é, sobretudo, porque para perceber esta ambição grandiosa de Burna Boy não basta olhar para África, é preciso antes de mais colocarmos os nossos olhos e compreensão sobre a Nigéria. É obrigatório, nem que seja pela superfície, perceber quais são as principais coisas separam e unem os nigerianos, quais os conflitos e tensões que abrem fissuras na fachada desse colosso africano, que nos últimos anos tem liderado, por várias ocasiões, a tabela dos países com maior índice de pobreza mundial, enquanto ao mesmo tempo tem entre os seus habitantes o homem mais rico de África (e um dos mais ricos do mundo): Aliko Dangote, a quem Burna Boy reservou no seu disco a quarta faixa.
Pobreza extrema. Uma classe política corrupta até à medula. A febre do petróleo que se tornou num presente envenenado ao contribuir apenas para o enriquecimento de uma minoria, enquanto agravou ainda mais as condições já miseráveis das classes baixas. Atritos culturais e religiosos com a organização terrorista Boko Haram a espalhar medo e violência há cerca de uma década (são responsáveis pelo maior número de raptos de crianças até aos dias de hoje). Tudo isto acontece no país com a maior densidade populacional de África — o gigante africano –, tudo isto acaba por inevitavelmente permear a música de qualquer artista nigeriano, até a daqueles que cresceram no seio de uma família privilegiada, como é o caso de Burna Boy, como foi também o do activista Fela Kuti.
Sem ser absolutamente político — é possível encontrar na sua discografia momentos de pura dança e festa sem qualquer outra intenção de maior — Burna Boy não esconde a herança de carácter interventivo deixada por Fela Kuti, com quem teve aliás pontes estreitas de ligação: a sua mãe foi bailarina e o seu padrinho manager do legendário músico que nos deixou em 1997, era Damini Ogulu uma criança de 6 anos. Pelas suas letras repetem-se aos dias de hoje ideias da década de 70, quando Fela Kuti se debatia com uma ditadura militar, numa apropriação de ideias que nem todos parecem ver com bons olhos, defendendo que a luta de ambos para além de contextos diferentes, foi e é travada com intuitos também diferentes — há quem refira que o que sobra em pretensão a Burna Boy, falta-lhe em verdadeira empatia pelo povo nigeriano. “Dangote”, a faixa anteriormente mencionada, é um exemplo curioso desta diferente abordagem interventiva do jovem músico. Dificilmente conseguiríamos imaginar Fela Kuti enaltecer um homem como Aliko Dangote, no entanto é exactamente isso que Burna Boy aqui faz, partindo da ideia de que se o um dos homens mais ricos do mundo se levanta todas as manhãs para mais um dia de trabalho, então é ele o exemplo a que todos os nigerianos deveriam aspirar. Uma ideia válida mas que iliba Dangote de qualquer responsabilidade sobre a actual situação do povo nigeriano — entende-se o porquê das mensagens de Burna Boy não serem recebidas com unanimidade.
Visões políticas à parte, um mérito que ninguém pode tirar a Burna Boy foi o de ter trazido à música pop esse cariz activista com tamanha escala e plasticidade. Parece que afinal não existe mal nenhum em lançar gritos de protesto enquanto se abanam as ancas. Consciente da enorme massa de público que move, sobretudo nas camadas mais jovens, o músico nascido na cidade de Port Harcourt, que começou a fazer os seus primeiros beats com apenas 10 anos, quer impulsionar públicos muito para lá das fronteiras nigerianas ou africanas. Os anos que viveu em Londres terão-lhe certamente ampliado a ambição e em boa verdade já o conseguiu. Outside, de 2018, abriu-lhe as portas dos palcos norte-americanos — Coachella, um dos palcos mais brilhantes, ajudou a crescer ainda mais o hype em seu redor, sobretudo pela pequena polémica de se ter queixado do pouco destaque dado ao seu nome no cartaz. E agora, African Giant, ainda com poucos meses de rotação, é a confirmação sem margem para dúvidas do seu estatuto de estrela internacional com quem todos querem colaborar. A crítica e o público renderam-se à refrescante mistura de sonoridades, onde afrobeats se cruzam sem qualquer atrito com rap, r&b, reggae ou dancehall, num estilo que o próprio músico apadrinhou de afrofusion, antes que os jornalistas dessem voltas à cabeça para encontrar um denominador comum que não fosse a recorrente gaveta da world music. Um disco em que nem as colaborações luxuriantes lhe roubam estrelato – aceitamos, quanto muito, um empate técnico em “Gum Body” com a encantadora Jorja Smith.
Com um futuro auspicioso, que nada nem ninguém parecem ser capazes de travar, a única dificuldade que antevemos ao gigante africano Burna Boy é a de: quando conquistar por completo o mundo, que objectivos ficarão por cumprir que sejam capazes de lhe alimentar a ambição? Será que o homem que já concretizou todos os sonhos de uma vida é também capaz de se levantar todos os dias em busca de um novo?