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Publicado a: 07/11/2017

Burial: o peso da cidade transformado em som

Publicado a: 07/11/2017

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [ILUSTRAÇÃO] Riça

Em 1995, uma década antes da estreia de Burial, o arquitecto Robert Adam assinava um texto em que reflectia sobre a cidade moderna, o seu declínio e a noção de insegurança em que parece estar mergulhada: “Quando percebemos o quanto as nossas cidades mudaram nos últimos 50 anos, não podemos evitar a conclusão de que o que nos rodeia fisicamente desempenhou um papel neste declínio”, argumentava em Tradition and The Modern City (in City Journal). Os edifícios e a planificação do pós-guerra são o resultado de um ideal modernista falhado que transformou boa parte dos aspectos da vida no século XX, da política à pintura – o culto do racionalismo abstracto e da mudança pela mudança – e que nos deu esterilidade e desumanidade em vez de um prometido progresso e da liberdade. Ambições utópicas e arrogância profissional deixaram as nossas cidades decadentes e ao abandono, o ambiente perfeito para a alienação e a brutalidade que quase eliminaram a vida em comunidade”.

Tradicionalista convicto, Robert Adam não disfarça a visão ideológica que ergueu em torno da cidade moderna, que vê essencialmente como uma entidade maligna, mas não deixa de tocar na realidade quando identifica na urbe da segunda metade do século XX um terreno fértil para a alienação e a brutalidade. Claro que não é possível subtrair à moderna equação urbana as décadas de problemas derivados de políticas sociais falhadas e até, como acontece nas sociedades contemporâneas que foram forçadas a lidar com a história – como é o caso do Reino Unido ou de Portugal… – a incapacidade de gerir o “lastro” humano largado nas cidades pelo declínio de impérios passados. Seja como for, a cidade do presente, o grande labirinto urbano que define as modernas capitais, parece ter sido forçado nas últimas décadas a enfrentar o paradoxo de se ter tornado um espaço senão vazio de pessoas, pelo menos esvaziado de comunidades, deserto de interacções humanas, em que todos parecem estar sozinhos no meio da multidão.

Essa parece ser a ideia central da música de Burial, sobretudo de Untrue, o segundo álbum que o artista lançou na Hyperdub de Kode9 e que agora assinala 10 anos de espectral existência. Simon Reynolds, num extenso artigo para a Pitchfork com o título Why Burial’s Untrue Is The Most Important Electronic Album of the Century So Far, analisa de forma minuciosa o álbum originalmente lançado a 5 de Novembro de 2007 e coloca-o na encruzilhada do que Mark Fisher descreveu como o “hardcore continuum”, atribuindo-lhe a paternidade de uma série de derivações que a música electrónica consagrou nos últimos anos, incluindo as propostas personalizadas de artistas como James Blake ou Andy Stott, a estética seguida por editoras como a Blackest Ever Black, algumas das coordenadas em que se baseia o fenómeno cloud rap ou até ideias que animam a produção de estetas pop como Drake, The Weeknd, Future ou Kanye West. Simon Reynolds, um dos mais destacados pensadores desta área, está, obviamente, coberto de razão e não há muito por onde escapar às conclusões que ergue em torno da reflexão exercida sobre Untrue.

As primeiras palavras que se escutam no segundo trabalho de Burial (mantendo a simetria para a estrutura do primeiro álbum) foram repescadas dos diálogos do filme Inland Empire: “I show you a light now. It burns bright forever”. É certamente significativo que no seu edit do sample, Burial tenha deixado cair a palavra “bright”, como se não quisesse contaminar a ideia de escuridão que atravessa todo o álbum e que marca títulos como “Near Dark” ou até “Shell of Light”. A luz que Burial nos mostra é a da distante ideia de um sonho do qual ele já só conhece os ecos, os relatos ténues de memórias que não são as suas. E a noite é o que envolve tudo isso, o que recorta a luz que Burial nos quer mostrar.

De facto, se algum drama se desenrola ao longo das 13 faixas do alinhamento de Untrue, a noite é decerto não o seu cenário, mas o protagonista principal. Burial parece ter uma enorme capacidade de transformar a noite em música, os seus ruídos, os ecos distantes de indústria, de transporte, dos edifícios de escritórios que respiram como organismos quando o vazio da madrugada lhes permite recarregarem as suas energias. Esta ideia da cidade como um enorme vácuo cheio de nada, onde o eco parece existir como uma medida da sua grandeza e um testemunho da sua desertificação, um espaço de memórias e fantasmas, é central na estética de Burial. A sua música, erguida a partir de um estudo atento do tal hardcore continuum que se desenvolveu com a cultura rave britânica, com as sucessivas mutações de que o house foi alvo desde que aterrou nos clubes no final dos anos 80, parece ela mesmo ser uma entidade espectral, concebida tanto em torno de memórias como de programações e samples e sequências. Memórias, sublinha Reynolds, implantadas, já que Burial não viveu directamente esse período formativo da cultura rave original.

A ideia de memória não resulta apenas do criativo uso de acapellas fragmentados através do sampler – em que surgem frases como “holding you” ou “tell me I belong” que sugerem um desejo de humanidade profundo, de entrega e de pertença, ideias que são negadas pelo peso da cidade – mas também na utilização dos efeitos que rodeiam alguns drones que atravessam os temas. O reverb tanto pode servir para nos dar uma noção do espaço ocupado por um som – um grande hall, um túnel, uma sala de concertos… – como do vazio que esse espaço carrega. E Burial é um mestre na gestão do reverb para efeitos dramáticos. Todos os sons em Untrue parecem existir suspensos, presos na cúpula dessa enorme concha vazia de vida que é a grande cidade nocturna.

Os títulos de algumas faixas de Untrue apontam para essa cidade. “Ghost Hardware”, “In McDonalds” ou “Homeless” parecem descrever circunstâncias muito particulares dessa cidade: o detrito tecnológico que se pode encontrar abandonado ao lado de um caixote do lixo no beco que ladeia um complexo de escritórios, o abrigo possível no deserto pós horário laboral ou o derradeiro fantasma urbano que vislumbramos de dentro do táxi enquanto abandonamos o centro da cidade, possivelmente em busca de alguma coisa no tal caixote de detritos tecnológicos ou a olhar para dentro da desolada casa de comida rápida entendendo as luzes brancas e a asséptica decoração como uma última promessa de um conforto impossível de alcançar.

Mas esta é também uma cidade de espíritos (essas entidades que habitam a dimensão do reverb, precisamente) e de anjos, não apenas o que é nomeado logo na segunda faixa do alinhamento – “Archangel” – mas os que emprestam as ultra-processadas vozes a cada uma das músicas, vozes suspensas entre a realidade e o sonho, vozes que já não são nem podiam ser reais, vozes que parecem ser feitas da mesma matéria da luz que se espelha no pavimento molhado: distorcida, efémera, fugidia.

Untrue é de facto uma superior obra-prima, como Simon Reynolds tão claramente expõe. O disco perfeito para se explorar num bom par de auscultadores, sobretudo numa viagem tardia entre o centro e a periferia de uma qualquer grande cidade, a partir da elevada posição de um lugar num autocarro, com a velocidade e as vias rápidas por onde se viaja a eliminarem as pessoas da equação urbana, deixando apenas luzes, reflexos e anúncios que quase sempre prometem o que não se pode ter. Este é um disco que transforma o peso opressivo da cidade em som, em frequências, sobretudo graves, de uma beleza solene e profunda. Burial nunca o disse – pouco disse aliás, tendo-se mantido quase sempre distante dos media – , mas Untrue parece ser um requiem. Para o quê? Talvez para o sonho utópico momentaneamente prometido no centro da pista de dança onde a rave em tempos se desenrolou. O Verão do amor de 1988 transformado em ruínas, numa memória impossível. Numa não-verdade que a grande cidade só torna ainda mais dolorosa.

 


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