Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[ZelooperZ] Dali Aint Dead
Encontramos na criatividade de ZelooperZ uma infinitude parecida à da expansão incessante dos limites do universo. É uma afirmação ousada mas assumimo-la orgulhosamente. Chamemos a Dali Aint Dead o segundo volume da coleção de álbuns do detroitiano inspirados em artistas, depois de Van Gogh’s Left Ear, de 2021, nos ter apresentado à faceta mais pictórica do rapper. A auto-comparação ao surrealista não é, de todo, descabida, e a sua experimentação empurra as fronteiras do que é possível da mesma maneira que o espanhol o fez, apesar do instrumento usado para o fazer ter sido diferente. O sample usado na reta final do disco, onde o próprio Dali declama “The only difference between one crazy man and Dali is very simple: Dali is not crazy. At all!” põe um ponto final nesta experiência sónica que resume bem as intenções de ambos os artistas. Falar de beats ou de lírica aqui seria redutor e descrever as histórias contadas ou os sentimentos exprimidos minimizaria o que é suposto ser este disco. Que acabem as restrições, que as vedações sejam abaladas, que o sentido seja desfigurado até ter de ser reconstruído, que a arte seja um método de revelação não só do artista mas como do espetador. A fluidez e a liberdade como inspiração, não só para criar, mas também para ouvir e receber. O hip hop é lindo.
[Tony Shhnow] Self Portrait
Tony Shhnow assume diretamente em “Die 4 Me” que não quer saber para onde vai porque está exatamente onde merece estar. É nesse sentimento que Self Portrait se encontra — uma auto-definição de um rapper que se conhece e que consegue pintar um retrato de si próprio com todos os detalhes intangíveis que a sua vida contém. O georgiano tem demarcado um caminho peculiar, sendo reconhecido como um fundador do plugg, encontrando para si próprio uma faixa numa estrada cada vez mais transitada e com o seu 13º disco legitima-se como um nome inevitável na história do trap. Sintetizadores brilhantes acompanham sons de instrumentais orgânicos, distorções de samples aceleram ritmos sobre as quais as punchlines conseguem sempre ressoar com mais impacto, o braggadocious cintila por entre as brutalidades do come-up… As arestas deste disco estão todas limadas e o produto final é de um refinamento de dezenas de quilates. Pincelado como se de um El Greco se tratasse.
[El Cousteau] Dirty Harry 2
Poucos artistas atuais parecem sentir-se tão confortáveis na própria voz como El Cousteau. Ismael Zambada chega ao game em 2016 e apresenta-se logo profissionalmente com um disco completo. Visualmente, tem vindo a crescer e a assumir uma personalidade de alta burguesia, especialmente depois de 2020. A sofisticação sobrepôs-se à rebeldia original, pelo menos em termos têxteis, e a lírica evolui para uma glorificação orgulhosa do seu glow-up, conservando o tom superior e um flow que sprinta nos versos, todos eles adornados de uma cadência eloquente e, por vezes, reflexiva, mantendo assim pelo menos um pé assente na terra. Sim, Cousteau é feito da mesma matéria prima que os outros seres humanos, mas o que se ouve na voz dele é uma sensação de que ele não acredita muito nisso. À frente dos beats, dois produtores executivos lideraram a carga nos instrumentais — Cocá Cousteau e TwelveAM encarregaram-se de produzir as cacofonias intensivas e pouco interessadas em calma e harmonia, tendo também contratado os serviços de The Alchemist e Niontay para se juntarem ao pelotão rítmico do disco. Os instrumentais, apesar da descrição caótica que já lhes fizemos, não deixam de trazer em si um pouco daquela sofisticação com que começámos este texto, e é neste cruzamento que Dirty Harry 2 se encontra. Não, não vai à luta na lama, mas nunca negaria a visita à tribuna presidencial do ringue.