Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Joey Valence & Brae] NO HANDS (Deluxe Edition)
Joey Valence & Brae, duo da Pensilvânia, estreiam a primeira aparição no Burburinho com a versão deluxe de NO HANDS, e ainda bem que decidiram adicionar 6 faixas ao seu segundo longa-duração, pois foi assim que o apanhámos pela Internet. Encontrando-se num eixo entre energéticos, abrasivos, divertidos, self-aware e cómicos, NO HANDS é um trabalho de junção de tudo o que a world wide web tem para oferecer em termos de correntes sónicas, pop culture e contracultura.
Vão-se percorrendo géneros musicais como se de meias se tratassem — drum’n’bass, boom-bap minimalista, jersey club, trap — lado a lado a referências a videojogos (“It’s two players, it’s co-op, it’s split-screen / I’m OP, my shell blue, your shell’s green”; “Living’ life like it’s double XP weekend / Pack-A-Punch, Ray Gun type feeling”), referências a música (“Keepin’ it going like I am on fire / MFs be doomed, I’m not even tired”; “Your name’s not Olivia, you don’t got the guts”), alegações repetidas de ter um Omnitrix (o relógio/instrumento de Ben 10) no pulso, memes inseridos nas canções como samples e, como exemplo final, a quantidade enorme de barras absolutamente hilariantes como “Born with so much sauce / I think I was a fuckin’ stromboli in my past life”. Muitos exemplos que nem chegam para medir o pulso à densidade deste disco — parece que todas as vezes que o ouvimos descobrimos mais um duplo ou triplo sentido, mais um detalhe num beat, mais razões para o reouvir.
NO HANDS acaba com um cover/remake de “365”, original de Charli XCX — uma das faixas adicionadas na versão deluxe — completamente absurdo. Acabaríamos o parágrafo com um “se gostam de X, irão gostar disto”, mas, na verdade, este disco desagua em tanto de diferente que seria inútil. Sem mãos para tanto som.
[Snotty Nose Rez Kids] RED FUTURE
Trap canadiano, indígena, consciente? Extremamente polido, concetualmente sólido, tematicamente e narrativamente interessantíssimo, com um respeito e um orgulho na sua história e em todos os desafios que as “First Nations” canadianas enfrentaram, RED FUTURE é o sexto disco de Snotty Nose Rez Kids, duo da aldeia Kitimaat, na província da Colúmbia Britânica.
Young D e Yung Trybez complementam-se incrivelmente bem neste projeto, dividindo as tarefas de vaidade e ostentação — o habitual, portanto, ao lado da costumária exaltação do lifestyle de festas, atividades amorosas e de constante lucro. O notável é que parecem sempre dedicar-se a guardar algum espaço para a elevação dos povos nativos, não se abstendo de incluir músicos originários de tribos indígenas como os Electric Fields — um duo australiano que canta nos dialetos aborígenes pitjantjatjara e yankunytjatjara —, a poeta Lakeeysha Marie — que faz parte do povo canadiano Plains Cree —, tal como os rappers Drezus e Rezcoast Grizz, este último nascido na nação Apsalooké, nos Estados Unidos da América.
Acreditamos ser este encontro entre as experiências e as vivências de pessoas que enfrentam todas conflitos diferentes, mas que se conseguem encontrar na música para criarem arte que encorpa nela essas lutas e dificuldades, bem como as respetivas superações, o que transforma este disco em muito mais do que aparenta. Há nele um certo sentido de alma que o distingue do resto, e carrega com ele um futuro certeiro. Talvez vermelho.
[Talib Kweli & J. Rawls] The Confidence of Knowing
The Confidence of Knowing, o mais recente disco de Talib Kweli, em parceria com o produtor J. Rawls, são cerca de 45 minutos de lições dadas por professores com décadas e décadas e décadas de experiência nas suas disciplinas. Os dois já se conhecem há décadas e décadas e décadas — J. Rawls produziu duas faixas de Mos Def & Talib Kweli Are Black Star, o inesquecível debut do duo underground, e de uma amizade dessas só podia surgir um projeto igualmente inesquecível.
No caso de Talib Kweli, o brooklyniano já é catedrático a dar aulas de (e sobre) hip hop e da história do hip hop, das pessoas de cor nos Estados Unidos da América (e no mundo ocidental), do hustle e do grind, de política, das diferenças entre as perspetivas europeias e africanas sobre a arte, de amor, do respeito obrigatório aos nossos antepassados, tanto artísticos como familiares. Licenciatura, mestrado e doutoramento na universidade da vida (e na Universidade de Nova Iorque, onde tirou um bacharelato em teatro experimental). Não seria diferente neste disco, e aqui se mostra como o rap pode ser um género de música que consegue envelhecer incrivelmente bem — Talib Kweli está a chegar aos 50 anos e soa extremamente acutilante, ciente do que o rodeia e de como o mundo à sua volta mudou, com uma perspetiva única. São poucos os artistas que passam 30 anos sem perder uma noção da realidade do game — e ele usa e abusa desse privilégio de estar há tanto tempo numa posição única para contar as suas verdades. J. Rawls, de outro modo, já chegou aos 50 anos, e continua tão pródigo na criação de beats, no scratching ocasional, no acesso a uma biblioteca musical de incontáveis tons, sentimentos e harmonias que manifestam um boom bap cuja pureza ascende ao firmamento do género. A confiança em saber que podem ser confiançudos.
[Conductor Williams & REi the Imperial] OPERATION FLAMETHROWER
OPERATION FLAMETHROWER é mais uma estreia no Burburinho, desta vez de Conductor Williams, que realmente parece ser o produtor mais ocupado do mundo inteiro — o seu nome tem-se proliferado pela indústria, e finalmente, com REi The Imperial, esquiva-se a muitos olhos, mas não por muito tempo. Estamos cá nós para os descobrir e servir uma das pérolas de setembro.
Há muito pouco que resta para falar de Conductor Williams — raras devem ser as vezes que algo novo nascido dos dedos dele não passa pelas “Sextas-Feiras Fartas”, mas esta é mais uma confirmação do talento musical absurdo que existe na mente do homem nascido Denzel Williams. Interpretando uma faceta mais soulful, um pouco menos caótica do que o costume, escolhendo samples que ultrapassam a tonelada de peso emocional, carregadinhos de reverb nostálgico, faz-se acompanhar de REi The Imperial, MC de Nova Orleães. Apercebemo-nos que não sabemos quem é REi The Imperial, e uma pesquisa diz-nos que não parece haver muito disponível para contar sobre o rapper que vai lançando discos sob a sua editora Reject Society há mais de uma década. Ficámos bem interessados em saber mais, pois as suas performances nesta operação são cirúrgicas, com uma acessibilidade em dizer exatamente o que quer, da maneira que quer, com uma facilidade enorme a mudar de lane tematicamente, em mudar de tom, em olhar para fora e olhar para dentro como se estivesse a quilómetros de distância, afinando uma perspetiva que pode parecer melancólica, nostálgica, ou até triste. Mas a sua voz nunca treme, a convicção não dilui, o brio nas punchlines e nas metáforas não cede. Um lança-chamas verbal.
[pulp Cruz]Outset
pulp Cruz anda a trabalhar na sua arte desde 2021, anunciando-se ao mundo com in my couch. O rapper e produtor manteve-se lowkey durante 3 anos, retornando este ano com dois projetos — um deles de janeiro, como parte do coletivo Full Circle, colaborando com ian_ e Mighty Mozaic; e este Outset, datado de 20 de setembro, inteiramente produzido por ele próprio, e apenas contando com vozes externas numa faixa, “twenty15”, onde se reúne com Ovrkast. e Revenxnt. Boa companhia.
Este segundo projeto é um belo exemplo de como o hip hop se continua a encontrar em vozes no mundo inteiro. Puxando vibes dos poetas contemporâneos underground, como Earl Sweatshirt, MIKE ou Navy Blue, o Michiganiano singulariza-se pela qualidade dos seus jogos de palavras, raramente sendo críptico mas mantendo, à mesma, uma aura enigmática à medida que conta os seus episódios. Esclarecemos este enigma: por trás da ambição, da luta e do orgulho desmedido nas suas qualidades, retém sempre uma autocrítica, uma noção da realidade, uma explicação mais profunda das suas melancolias. Ficamos na dúvida saudável enquanto o ouvimos, o que só dá vontade de repetir até compreender. Os instrumentais também engrandecem esta aura, resvalando entre os vocais como se os ofuscassem, e há samples vocais que permeiam o disco como o calor de uma lareira — de perto, abrasadores na mistura; de longe, confortáveis e acolhedores. Uma quantidade confusa de texturas que, no seu total, nos fazem sentir envoltos de uma construção sónica bem confortável.