Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[YUNGMORPHEUS & Dirty Art Club] A Spyglass to One’s Face
A primeira impressão com que ficamos de A Spyglass To One’s Face é imediatamente impactante. A capa, pintada por Luca Salvatori, apresenta-nos a noção macabra que é olhar para nós próprios e ver alguém completamente diferente, uma versão monstruosa do eu. Partindo daí, a ideia de nos examinarmos a nós mesmos com a ampliação de um telescópio, analisando cada incongruência e cada triunfo, cada obstáculo que ultrapassámos ou cada barreira que nos fez tropeçar, é, no mínimo, assustadora. No final, sim, talvez saiamos da aventura com um horizonte mais limpo, menos enevoado pela poluição a que somos sujeitos.
E porque não fazer esta examinação em formato de disco? YUNGMORPHEUS juntou-se ao produtor Dirty Art Club para explorar esta ideia, fazer uma autocirurgia, contar os cantos dos seus órgãos internos e organizar uma incursão às suas histórias de amor, da morte, de riqueza e de pobreza. O produtor da Carolina do Norte não se inibe na sua ornamentação instrumental e todas as beats têm uma pompa de realeza, detalhadas com loops orquestrais, samples vocais abundantes, compondo um conjunto de instrumentais que competem com a lírica para o protagonismo neste projeto. O olhar está fixo no espelho e os ouvidos também.
[Mike Shabb] Fight the Power!
Como melhor resistir aos poderes superiores do que uma mão cheia de versos estrondosos, uma dezena de samples de reggae vintage, uns quantos interlúdios instrumentais lindíssimos e um cosign de Earl Sweatshirt? Deixamo-vos com a discussão, porque para nós a resposta é este disco de Mike Shabb, rapper e produtor do Québec que lançou em outubro o 3º disco do ano inteiramente produzido por si mesmo e que imediatamente entra na lista dos álbuns mais memoráveis de 2025.
Nascido em ’98, inaugura a sua presença no hip hop com uma mão cheia de mixtapes em 2014, angariando colaborações com Nicholas Craven e Sammy Haig nos entretantos. Explode oficialmente em 2022 por meio de uma colaboração com Westside Gunn e em 2025 o seu Sewaside III, lançado em 2024, é nomeado para um Polaris Music Prize.
Inserido numa categoria que é cada vez menos descritiva, dado o abrangimento de tudo o que hoje circula no chamado underground, o canadiano distingue-se através de uma consciência pura nos seus raps, de uma autenticidade genuína em fazer música pelo prazer de fazer música, da capacidade de criar um projeto musical que, apesar do seu ecletismo instrumental, soa extremamente coeso. Fight the Power! é um conjunto de ideias frescas, enérgicas e que, sinceramente, preencheram um vazio na nossa rotação de música nova.
[WHATMORE] WHATMORE
Os Odd Future cavaram para si próprios uma faixa de rodagem e, com a passagem do tempo, cada membro, individualmente, encontrou o seu espaço. Os BROCKHAMPTON ressuscitaram o espírito que os OFWGKTA tinham encarnado e, pouco a pouco, conheceram o mesmo fim. Desde o início do milénio, a existência de um grupo de jovens amigos que decide juntar-se para lançar música que reflete a evolução das tendências no hip hop é obrigatória.
Eis, então, um ciclo a recomeçar com os WHATMORE, um quinteto composto por Yoshi T., Cisco Swank, $eb, Jackson August e Elijah Juda originário no liceu Fiorello H. LaGuardia, em Nova Iorque. Estes cinco, antes da música, já tinham um group chat, e sente-se uma ligação quase familiar na música, na maneira com que cada um entra e sai do seu verso, na vontade de experimentar sonicamente uns com os outros, na facilidade com que as beats de Elijah se aplanam para todos conduzirem nelas — uma verdadeira road trip à moda antiga. Este disco de estreia homónimo contém apenas meia hora de música, servindo de introdução perfeita para ficarmos com mais fome de WHATMORE, seja através dos cortes mais festivos como “chicken shop date” e “jackie chan” ou dos portentos mais emotivos de “go” ou “slow down”. Que mais? Ficamos à espera para ver e ouvir.