Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[LAUSSE THE CAT] The Mocking Stars
Malcolm Gladwell disse em tempos que são necessárias 10 mil horas para atingir um nível alto de perícia em qualquer área. Traduz-se em sensivelmente 1 ano e pouco. LAUSSE THE CAT desapareceu em 2018, depois do lançamento de The Girl, The Cat and the Tree, o seu primeiro EP, e retornou com mais 61 mil horas de treino para lançar o que achamos que será uma edição absolutamente inevitável nos livros do hip hop e que estará, também inevitavelmente, em discussão para álbum do ano (pelo menos por estes lados digitais).
LAUSSE, cujo nome real é desconhecido e aparência física pouco vista, “aparece” (como se por magia) em Londres, saltita para Leeds para continuar a sua educação, seguindo-se rumores de que vive em França há 7 anos e, entretanto, neste novo projeto, assume uma curta estadia em Berlim. Neste período, a suposição é que, entre as parcas features que foi escrevendo, dedica o seu tempo ao épico conto de fadas que é The Mocking Stars, a segunda história de um gato. Um gato que se apaixona pela lua, enraivecendo o sol no processo, recusando dar o seu tempo ao dia, e leva a que o planeta se incendeie totalmente. Com a companhia de um chapeleiro louco, um coelho e um trio de ratos, decidem pegar numa nave espacial cheia de gin e voar até Marte para escapar da luz que arde a terra, uma luz que obriga os seres humanos a vergarem-se perante o consumismo, perante os 9-to-5’s, perante uma rotina incessante e alienante.
A mestria lírica é óbvia e como grande exemplo temos a faixa-título, de 10 minutos, que contém uma das peças de escrita de hip hop mais próxima de uma epopeia clássica que já ouvimos por estes lados. Os instrumentais (todos da autoria de LAUSSE) elevam as imagens descritas verbalmente e conseguimos praticamente ver os protagonistas a conhecerem a lua, a voarem por entre estrelas, a beberem cerveja quente de uma lata. Há momentos de escrita neste disco que nos deixaram arrebatados e é (muito) recomendado o acompanhamento de pelo menos uma audição com uma página aberta com as letras noutra tab.
Há uma comparação absolutamente estonteante entre a lua, musa eterna, e uma gigante taça de leite espacial, que ficou especialmente connosco. The Mocking Stars retorna-nos a nós próprios de uma forma que já não sentíamos há algum tempo. As faixas, que, excluindo os interlúdios, excedem de modo geral os 5/6 minutos, obrigam-nos a prestar-lhes atenção e a reconhecer-lhes os detalhes. A história merece todo o nosso foco, ficamos presos aos headphones a querer saber o que acontece no próximo capítulo, a produção transforma os nossos arredores num livro de fábulas ilustrado com carinho. “I.D.W.G.A.J.” fantasia com uma vida em que LAUSSE tem dinheiro (apesar de não querer arranjar emprego…), “Peonies for Breakfast” reconhece a dificuldade de amar quando tudo se vê através de uma lente negativa, “Lotus Bloom” relembra os tempos do SoundCloud. Tudo neste projeto parece que saiu das mãos de um artesão multidisciplinar, é capaz de transformar uma hora de música numa experiência que envolve cinco ou seis géneros de arte e tem as suas influências manuseadas com gentileza. Este é um gatinho tratado com muita ternura.
[Awich] Okinawan Wuman
Diretamente de Okinawa, ilha que alberga várias bases militares dos Estados Unidos da América, Akiko Urasaki é exposta à cultura do hip hop americano desde a sua adolescência. Começa no game cedinho, ainda no Japão, aos 14 anos, no início do milénio, escrevendo canções e dando concertos. Muda-se para Atlanta aos 19 anos, conhece o seu eventual marido e tem uma filha. O seu catálogo começa em 2007, com Asian Wish Child. A história toma tons de tragédia depois do seu marido ser preso e eventualmente assassinado, evento que a levou a voltar ao Japão com a sua criança, e a recomeçar, agora definitivamente, a carreira musical. Contamos a história porque até deste lado a existência de Awich nos tinha passado ao lado.
De repente, e sem muito aviso, surge este seu 5º disco, Okinawan Wuman, o seu segundo com a And Music, editora e estúdio japonês. A notar, é um projeto colaborativo com o lendário RZA no cargo de produtor executivo, assumindo o papel de mestre de cerimónias, introduzindo a rapper japonesa, louvando a sua resiliência e criatividade logo na primeira faixa do disco, transparecendo uma relação de admiração e respeito mútuo desde o início.
A música é boom bap clássico, daquele que agora raramente ouvimos, com scratching, as rimas como atração principal, refrões que apenas servem de ponte para mais lírica. Lírica essa que detalha uma história orgulhosa do seu progresso, dos entraves ultrapassados, um braggadocious rimado de peito cheio, vaidade nos seus antepassados e amor-próprio a transbordar. Samples místicas preparam o cenário para flows entusiasmados, as beats envolvem temas orientais reconhecíveis em percussões ocidentais, dois mundos claramente conectados por uma arte que será sempre um elo de ligação acima de tudo.
Uma nota para a presença de inúmeros nomes fundamentais do hip hop moderno no disco — a qualidade de Awich como rapper é clara e os seus contemporâneos reconhecem-no. A lista de colaboradores norte-americanos a dar uma mãozinha nos features conta com Lupe Fiasco, A$AP Ferg, 454, MIKE, Westside Gunn e Joey Bada$$, havendo ainda espaço para um posse cut com R-Shitei, NENE, Chinza Dopeness e C.O.S.A. a fechar o disco, todos eles japoneses a representar a nação do Sol Nascente. De Okinawa (e redondezas) para o mundo.
[Ceebo] blair babies
A introdução de blair babies é um pequeno texto escrito pelo próprio Ceebo durante o processo de criação e realização do disco em que o rapper londrino, nascido numa casa angolana e congolesa, disserta sobre os sentimentos que assolam a geração Z, de como o mundo foi construído antes do seu input, a sensação de ausência de esperança e de um futuro, sobre o consumismo como alívio. Apelida esta geração de crianças inglesas nascidas num pós-modernismo, sob a alçada do New Labour, nas sombras do Thatcherismo, os bebés de Blair, referenciando o ex-Primeiro Ministro Trabalhista do Reino Unido, que supervisionou a união durante um período de alterações sociais que iriam moldar as ilhas de uma maneira permanente.
Para Ceebo, o que faz sentido neste seu terceiro disco, é reunir todos os pontos comuns desta geração. A ascensão do grime, do trap, do drill, lado a lado ao crescente domínio do hip hop americano (há uma interpolação maravilhosa do outro de “Momma”, de Kendrick Lamar, em “where’s it @”, cujo refrão também é inspirado por “Get the Gat”, de Lil Elt); crescer rodeado de pobreza, violência e overdoses, usando a música como escapismo duma sociedade assolada pelo crescimento da extrema-direita e do neoliberalismo. O sufoco das pessoas de cor numa civilização conhecida como multicultural é a aresta transversal que suporta o projeto, usando a sátira para subverter as dinâmicas de opressão sistémicas. Instrumentalmente eclético, percorrendo uma série de géneros, com beats a suportar flows em cascata do rapper, a intenção de blair babies é contar uma série de histórias individuais que facilmente se transpõem para a generalidade, facilmente encontrando pontos de relação aos seus ouvintes, especialmente os seus conterrâneos geracionais. Apesar de tudo, o facto deste disco existir simboliza uma esperança específica — a de que a arte conseguirá sempre unir, independentemente das amarras que nos são impostas.
[MexikoDro] Still Goin the Ep
O primeiro lançamento de MexikoDro com a Republic Records chegou-nos este novembro. O georgiano já era conhecido no game como produtor — dos seus dedos saíram os beats de “Gassed Up”, um hit de Nebu Kiniza; “Broke Boi”, de Playboi Carti; “Plug”, de Rich The Kid, ou “Hella Os”, de Lil Yachty, entre outros inúmeros instrumentais que o elevaram a nome procurado e reconhecido. Neste Still Goin the Ep, apresenta-se com um tom cinzento, constante, pouco oscilante na emoção, o que o tornaria numa personagem estanque, pouco transparente, não fosse o conteúdo quase intimista nas suas palavras. Uma devoção a Deus indubitável, uma rotina rígida, um afastamento total aos vícios legais e ilegais que destroçaram a sua vida e que o obrigaram a uma reabilitação são os temas principais. Pouco divertido? Talvez, mas a música fala por si própria e nunca sentimos condescendência.
Os instrumentais, produzidos por uma mão cheia de colaboradores, sobressaem e são, por si próprios, também protagonistas. Sopros eufóricos acompanham synths pontiagudos, relembrando os primórdios do trap, quando Waka Flocka Flame ou Gucci Mane eram os titulares obrigatórios do género. Independentemente de uma aparente dissonância entre o que esperamos do trap e do conteúdo da música, Still Goin the Ep representa uma jornada que merece ser explorada, oferecendo-nos meia hora de música que tanto nos pode inspirar para nos endireitarmos, como nos pode acompanhar numa noite de desbunda. E isso é mais que bonito. Atlanta continua e continuará!