Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Blvck Svm] michelinman
Estão com fome? Então sejam alimentados por Blvck Svm, rapper nascido na Florida, baseado hoje em dia em Chicago, que traz um novo conceito para o seu 4º disco: a relação entre o hip hop, a comida e as diferentes classes do mundo da restauração. A extensão desta conceitualidade foi até aos seus videoclipes — quase todas as faixas têm vídeos diretamente nas cozinhas de restaurantes em diferentes pontos dos Estados Unidos da América. De deixar água na boca.
Mas vamos à música — e há muitos outros paralelismos a estabelecer com a maneira como a comida nos pode ser servida. Relativamente a instrumentais, ficaram nas mãos de Docent, eeryskies., Grant Lapointe, Max He, Mirelle Cabangbang, pilotkid e Stoic, todos eles construtores de atmosferas lo-fi, onde a ausência de detalhes percetíveis abre portas para o tom de voz hipnotizante e magnetizante de Benjamin Glover. São beats a tender para uma bruma sonora, que contam eles próprios histórias nebulosas e obscuras, ajudando a criar o rés-do-chão para o edifício onde o rapper serve as refeições que cozinha — e em cada andar, uma gastronomia poética diferente.
O próprio rapper vai metaforizando as suas rimas como pratos gourmet, a sua história de vida como uma evolução de fast food até caviar e foie gras, a sua cadência a evidenciar uma gratidão propositada por ter conseguido chegar onde chegou (o Nisei, por exemplo, um restaurante de cozinha nipo-americana em São Francisco, ou o NONESUCH, em Oklahoma City, ou a The Butchery, na província de Alberta, no Canadá). Ao mesmo tempo, sentimos uma pequena incredulidade por realmente ter conseguido completar esta visão, por se ver a gravar dentro destas cozinhas de restaurantes em hora de ponta, um microfone no meio da correria do almoço, e o rapper vestido ao rigor do rap no meio de dezenas de aventais brancos de chefs, souschefs e empregados de mesa. São servidos?
[K.A.A.N.] The Lost Files
Knowledge Above All Nonsense — abreviado para K.A.A.N. — é o pseudónimo de Brandon Perry, rapper baseado em Maryland, conhecido e reconhecido como um dos representantes contemporâneos do estilo de rapping chopper, original do midwest dos Estados Unidos da América. Neste The Lost Files, faz-se um tributo a seis personagens históricas do hip hop. Como? Ora, em seis das sete faixas do projeto, é retirada uma ideia icónica de beats de Ol’ Dirty Bastard, dos Cypress Hill, dos Wu-Tang Clan, de Eazy-E, de Bone Thugs-n-Harmony e de Mike Jones, e por cima dessa ideia K.A.A.N. reformula as canções e aborda os instrumentais com o devido respeito — e há que apreciar quando os clássicos são tratados como tal. A última faixa é mais uma edição da série KAANCEPTS, onde o rapper discorre sobre temas variados que o têm atormentado, sempre liricamente críptico e denso, capaz de ombrear com Aesop Rock ou BUSDRIVER, a título de exemplo.
K.A.A.N. cospe num ritmo absolutamente estonteante — não estaríamos a exagerar se parece que ouvimos mais de 50 palavras por minuto sobre beats que emanam o cheiro aos anos 90 a sair das colunas. Tudo neste álbum soa a dedicação e a amor ao game. Este projeto foi lançado um mês depois do disco In Due Time, exemplificando bem o ritmo de trabalho do rapper — o site Rateyourmusic diz-nos que já lá vão 27 álbuns desde 2017, mais mixtapes em meados da década passada e mais de uma dezena de EPs desde 2015. Se gostarem desta pequena amostra dos seus talentos, têm muito mais por onde viajar — e muitos ficheiros por desarquivar.
[Sybyr] Universal Laws of Shame
Sybyr já foi MacXVII, Syringe, LiL NEEDLE, Needle., Reagr, Helly Is Hansyn, Helly Hansyn, Lord Mackovich, Evil Nigga e Flax SoldierMac. No mundo da produção, junta quase mais uma dezena de outros alter-egos, e em termos de alcunhas, também conta com duas mãos cheias delas. O seu percurso até hoje não foi fácil: em 2017, passou tempo em instituições comportamentais e hospitais devido a uso indevido de substâncias, é alvo de reações negativas e violentas devido à maneira como se apresenta em público e teve de lidar com os aspetos positivos e negativos de ser um dos pioneiros do trap metal, género do qual se afastou entretanto, mas que lhe ganhou reconhecimento e atenção em meados da década de 2010.
Universal Laws of Shame é o seu 17º disco desde 2017, e se formos até 2015 encontramos mais 50 projetos todos cunhados com um dos pseudónimos que já referimos. Neste em particular, continua a exibir a sua versatilidade musical sob uma alçada mais geral de um trap psicadélico e etéreo, relembrando-nos os primeiros trabalhos de Travis Scott ou de Jazz Cartier, partindo daí para 45 minutos de música que inova, moderniza e manipula os maneirismos tradicionais de um género que, nos últimos anos, se tornou ubíquo na cultura.
O rapper e produtor de Maryland olha para dentro frequentemente e conhece os seus desejos, os seus falhanços, as correções que precisa de fazer e os objetivos que quer alcançar. A maneira como este auto-conhecimento é expresso no disco, com o rapper a adotar tons variadíssimos para o representar, acrescenta uma replayability infindável ao disco — os refrões obrigam-nos a pôr canções na playlist, algumas das beats forçam uma stankface ao ouvinte e a variedade de temas e facetas musicais que são oferecidas fazem com que cada minuto pareça um capítulo novo.
Também é guardado espaço para bangers absolutos como “Warehouse” ou “Hope You Ain’t Forget”, dois exemplos da polivalência de Sybyr — se o primeiro segue por caminhos adjacentes à rave, o segundo apresenta a sua faceta mais próxima de um metalcore, com o artista a bradar quase guturais no refrão. Não tenham vergonha e façam por ouvir um dos álbuns mais interessantes de 2024.
[Maxo Kream] Personification
Não vamos mentir: já tínhamos saudades de um disco novo de Maxo Kream. A sua voz é um paradoxo — mais monocórdica seria praticamente impossível, mas entendemos todos os detalhes das emoções que cospe — e este disco é uma espécie de jornada pelos diferentes pontos da sua carreira. Personification é o seu primeiro álbum desde 2021 e promove o seu retorno aos longa-durações, fazendo de Nascent o seu produtor executivo, carregando o fardo de liderar a criação dos instrumentais modernos, texturados e elegantes que servem de pano de fundo para todos os contos do texano, sejam eles de tom sinistro, fanfarrão ou mais emocional. São 40 e poucos minutos de música que nos soa extremamente polida e limpinha, mesmo quando o botão dos 808s é carregado até ao fundo.
Não será preciso dizer que Maxo é um belíssimo contador de histórias e mais uma vez conseguiu encher um disco com algo para oferecer em todas as suas canções — sabemos que, apesar de este ser apenas o seu 4º álbum, já anda nas andanças do hip hop game há tempo suficiente para saber como manobrar a sua arte para atingir todos os pontos vitais para um disco ser memorável. Sabe também que, para o fazer, ajuda muito rodear-se de nomes sonantes, por diferentes — e todas boas — razões. Seja pela peculiaridade dos raps contemporâneos de Tyler, The Creator e de Denzel Curry, pelas novidades nas vozes de BigXthaPlug e JOSH KREAM, ou pelo indistinguível drawl texano de Z-Ro e de That Mexican OT. Diríamos que Personification é uma edição que será destacada na discografia de Maxo, um rapper que parece passar um pouco ao lado de muitos hip hop heads, mas que merece um salto grande para um outro tipo de luz.