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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/04/2023

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Março 2023

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/04/2023

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Che Noir] Noir Or Never

O impacto imediato que a primeira faixa de Noir Or Never, a oitava entrada na discografia da artista de Buffalo, Nova Iorque (a água deve ser diferente nesta área), Che Noir, é indiscutível. “Female Rappers” é uma conversa sobre, como seria de esperar, mulheres rappers, e como é que são percecionadas no game ou como as expetativas postas nelas são diferentes. No entanto, também é uma preparação belíssima do cenário para uma exibição de flows, punchlines e metáforas exímias, todas por cima de beats de Big Ghost Ltd, que assume a produção executiva dos instrumentais do álbum. A supremacia de Che é afirmada com pujança e orgulho, ao mesmo tempo que discorre sobre como chegou a este ponto na sua lírica, na sua vida e no seu estatuto, juntando-se a uma mão cheia de colaboradores que adicionam níveis significantes à qualidade do disco – Flee Lord, D-Styles, 7xvethegenius (mais um verso incontornável dela), Planet Asia, Skyzoo e Ransom adequam-se incrivelmente bem ao ar nova-iorquino, às samples cheias de alma que engrandecem os instrumentais, ao scratching, que sabe tão bem de ouvir quando é bem feito – e, neste caso, não só o é como constrói uma experiência de boom bap que parece obrigatória de ouvir para todos os fãs de hip-hop como ele existia na costa Este dos Estados Unidos da América nos anos 90.


[AJ Suede] Parthian Shots 

O nome do album refere-se a uma tática bélica originária dos Partos, um império antigo no norte do Irão, que se tornou numa metáfora para um comentário ou um gesto hostil feito enquanto se sai de uma situação. Nesse mesmo álbum, há referências a Futurama, a Pokémon, ao Sonic, a literatura de ficção científica, à NBA e à NHL, à trilogia do Senhor dos Anéis, a instituições musicais de Seattle, Washington (sua base de operações), ao rosacrucianismo (um movimento filosófico-esotérico europeu do séc. XVII), e a tantas outras instâncias culturais que parecem intermináveis. Estabelecendo-se lado a lado de Televangel (dos antigos Blue Sky Black Death), que produz pela segunda vez na íntegra um álbum de Suede (o primeiro será também um dos marcos no hip-hop abstrato dos últimos anos, Metatron’s Cube, de 2022) e oferece uma panóplia de sonoridades a tenderem para um veludo lo-fi, enriquecendo as belíssimas rimas e narrativas de AJ com um trabalho de sampling maravilhoso e uma intenção de deixar o ouvinte submergido completamente nos ambientes musicais oferecidos pela dupla. Se ainda não vos convenci para esta viagem absurda à mente de AJ Suede, não sei que dizer mais, e se ainda não apanharam o barco, deixem-se ser introduzidos com este disco.


[Steel Tipped Dove] all the weight feathers don’t have

Qual será o aumentativo de orgânico? Não sabemos se existe ou se sequer faz sentido, mas seria o adjetivo que usaríamos para descrever a aura geral deste all the weight feathers don’t have, a entrada de Steel Tipped Dove para 2023. Um portento do hip-hop abstrato e underground da última década, o multifacetado produtor/beatmaker/engenheiro de som/engenheiro de mistura e masterização/auto-denominado catalisador já trabalhou com e produziu para Armand Hammer, billy woods, R.A.P. Ferreira, Moor Mother, Nosaj (dos New Kingdom), Signor Benedick the Moor, e tantos outros, construindo assim uma reputação incontornável. Tem uma mão cheia de álbuns instrumentais a solo e outra mão cheia de projetos colaborativos em que convida os seus colegas para rimarem em batidas de uma pureza instrumental impressionante, intercalados com interlúdios menos intencionados para serem base de voz e que encaixariam perfeitamente num disco de jazz contemporâneo. A variedade de sons e tons, a prolificidade nos ambientes e a mestria dos seus convidados edificam um conjunto de faixas polidas até à última aresta, com uma limpidez nas texturas e uma miscelânea de moods que nos envolvem desde o primeiro segundo até ao fim. 


[BONES & GREAF] TheWitch&TheWizard

É verdade, ele ainda por cá anda, acompanhado por um dos amigos habituais, sempre moody, igualmente sombrio, mas menos assustador, ou, pelo menos, com um tom esperançoso para uma vida mais tranquila e pacífica. O primeiro disco de 2023 para BONES e o primeiro disco colaborativo com GREAF no mesmo plano que Elmo O’Connor (sim, BONES chama-se Elmo) introduz mais 15 faixas do emo rap a que já estamos à espera, executando-o com detalhe e com um condão para que a vibe seja sempre imaculada. Os graves potentes, os sintetizadores melódicos e nostálgicos, a ocasional guitarra sentimental e as sequências atrás de sequências de rimas — disparadas com intenção de magoar, ou de glorificar, ou de auto-comiserar — amontoam-se num um belo álbum, com valor na sua audição repetida, seja porque simplesmente se adequa para uma quantidade de situações e moods diferentes, ou porque é mais um álbum sólido na discografia incrivelmente consistente do rapper nascido na Califórnia. Para quem conhece e já sabe ao que vai, não vai sair desapontado. Para quem não conhece, ou está à procura de um daqueles discos pesados e dark para ouvir numa viagem de carro noturna, experimentem conhecer o Elmo. Pode ser que saiam satisfeitos.


[Pouya] GATOR

Este álbum é uma adivinha dentro de um mistério envolvido num enigma. GATOR é o quinto álbum de Pouya, um dos representantes modernos do rap floridiano nas suas vertentes originais, e chega-nos com a maior intersecção de tempo entre projetos na sua carreira – enquanto os álbuns anteriores chegavam no máximo com uma separação de dois anos, o nosso crocodilo demorou 3 anos a ser lançado para as ruas. Talvez uma das razões para a confusão que a sua audição nos causa (já lá chegaremos) seja este período de ruminação de Kevin Pouya, mas não especulemos. Se no hip hop estão à procura de uma experiência eclética, este álbum é uma obrigação: querem secções de sopros de jazz lindíssimas? Estão aqui. Se for aquele trap sulista inspirado em Memphis, também o podem encontrar. Um instrumental ou dois de guitarra acústica melancólica? Sejam servidos. Um refrão orelhudo de r&b também vos apraz? Sigam viagem. Um boom bap extremamente funky? Está no corredor três. Um heavy metal? Surpreendentemente, sim – com o aparte de perfazer uma das faixas mais agressivas do álbum, com barras, no mínimo, extremamente questionáveis e que sinceramente deixam um mau travo na boca, algo que não pode deixar de ser referido neste parágrafo. Não diminuindo essa crítica, este álbum é uma das experiências mais bizarras e, ao mesmo tempo, interessantes dos últimos tempos, com o rapper a saltar entre instrumentais completamente distintos sonicamente e trocando de tema e de tom com pouca preocupação com coesão e coerência, deixando-nos estranhamente intrigados e cativados. Vamos ouvir outra vez.

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