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Fotografia: Bless Escro
Publicado a: 07/06/2023

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Maio 2023

Fotografia: Bless Escro
Publicado a: 07/06/2023

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Atmosphere] So Many Other Realities Exist Simultaneously

Atmosphere, o duo colossal do hip hop underground, retornou este mês de maio com mais um delicioso projeto. Situado numa intersecção entre um abraço caloroso cheio de esperança, uma manifestação exacerbada do estado desesperante da sociedade e uma conversa íntima entre amigos de longa data, So Many Other Realities Exist Simultaneously é mais uma adição maravilhosa à discografia do par do Minnesota. Numa demonstração de como o hip hop pode ser adulto, maturo, inteligente e aguçado, Slug é um contador de histórias absolutamente incrível e indiscutivelmente um dos melhores da história, tecendo narrativas envolventes e variadas com uma diversidade de flows aparentemente infinita. A química com Ant é absurda e os dois constroem um conjunto de faixas que cativam do início ao fim da uma hora de duração do disco. É como se estivessem a contar uma antologia de histórias sentados em frente a uma fogueira, com um carisma tal que se torna impossível desviar os olhos deles.


[Mickey Diamond] Nobody Bleeds Like Flair

Vamos falar de vozes? É que a de Mickey Diamond tem potencial para ser uma das mais pujantes do momento. De uma gravidade pesadíssima, as rimas estão cheias de quotables e os refrões são orelhudos. Em Nobody Bleeds Like Flair, o 15º projeto do rapper de Detroit, explora-se a lenda viva que é Ric Flair e o legado que deixou nas várias ligas de wrestling onde competiu, executando um belo trabalho de samplagem para construir uma alegoria bem executada ao engrandecimento e à clara superioridade que Diamond sente. Em pouco mais de meia hora, com zero faixas que nos soem a filler, a produção de Mallori Knox leva-nos por um boom bap sujo e completo com samples de soul e monólogos de Flair, cativando-nos com uma variedade sónica extraordinária – destacamos “Custom Made”, que contém um pedaço da banda sonora de Valley of the Dolls, composta por John Williams, que já ouvimos na “Ghost Of Soulja Slim” de Jay Electronica — e mesmo assim ficamos hipnotizados com o instrumental. Este projeto transpira luxo por todos os seus poros, com a vantagem extra de criar em nós uma vontade de vilanizar Hulk Hogan e lançar um “woooooOOOOOOO!” tal e qual o The Nature Boy.


[Elevator Jay & 2nd Prez] Summer Rooster

Uma breve ida à Carolina do Norte oferece-nos o 5º projeto de Elevator Jay, que assume pela primeira vez na sua carreira parte da criação dos instrumentais, colaborando com o produtor 2nd Prez. A soar a clássico de verão, tal como o nome sugere, poucos álbuns servirão melhor para preparar o nosso drink de fim de tarde numa esplanada soalheira. Os instrumentais lembram-nos aquele boom bap texano, com beats vagarosos e simples, pouco texturados para deixar os flows de Jay serem o personagem principal. Escolhe-se uma cadência clara e groovy para uma voz arrastada e resinosa que vai derretendo por guitarras e synths como se fosse caramelo, mesmo quando se estende até ao crunk – género que o próprio rapper diz querer trazer de volta. Este é apenas o 5º projeto no catálogo de Jay, todo ele recheado de lançamentos independentes, mas já soa bem crescido e com vontade de se impor pela sua positividade, reparando-se bem na intenção de que a sua perspetiva seja menos sombria e obscura da que tem açambarcado muitas das narrativas no hip hop. E não há uma final de tarde feliz sem “Biscuits and Molasses” nem “Hot Honey Lemon Water”.


[Kari Faux] REAL B*TCHES DON’T DIE!

Foram 3 anos sem música nova, Kari! 3! Tínhamos saudades! Vamos aos factos: REAL B*TCHES DON’T DIE! é o 5º projeto a solo da rapper nascida no Arkansas que tem sido uma das maiores vozes femininas do hip hop underground, com uma lista de colaborações de arregalar os olhos, andando a encantar muita gente desde 2016. Nesta última edição, o empoderamento feminino coloca-se lado a lado a uma vulnerabilidade emocional genuína, com narrativas de braggadocious, crónicas de egoísmo (talvez merecido) em relações amorosas, contos românticos extra-dramáticos e até a representação da cidade de Houston, cujo hip hop foi formativo para Kari — mesmo sendo ela de um estado adjacente, o estilo de rap neste projeto é influenciado diretamente por titãs do Texas como os Geto Boys, Scarface e Devin the Dude (que até está presente neste disco!). Se este moodboard não chegar para vos aliciar à audição, a lista de features certamente o fará – Gangsta Boo, Big K.R.I.T., Jazz Cartier e os habituais Phoelix e theMind dão ao alinhamento uma aura memorável. As batidas atravessam barreiras entre boom-bap da costa oeste e um r&b mais amoroso, chegando a puxar influências floridianas (lembrando Denzel Curry e demais colegas) e de Memphis, adicionando algumas camadas e texturando as temáticas do disco para uma experiência ainda mais integral. E a capa é incrível! Pontos extra.


[Lil’ Keke] 25 Summers

Hip hop para crescidos. Texano até ao tutano, Li’l Keke já está nos livros de história do rap game sulista, seja em que cidade for. Admitidamente representando DJ Screw, faz-se acompanhar de pesos pesados do estado da Estrela Solitária como Big K.R.I.T., Slim Thug, Big Pokey e Paul Wall para mais um projeto – o seu 52º disco (se o Discogs não enganar)! Uma produtividade e prolificidade de carreira incrível que se reflete neste projeto em particular pelo brio e detalhe que incorpora na sua música, nunca se esquecendo de onde vem – e afirmando-o com orgulho – mas também incorporando as novas sonoridades do hip hop, influenciadas pelo trap e pelo RnB, reparando-se bem na vontade de acompanhar a inovação que se vai fazendo pelo género. Uma nota final para a faixa que fecha o disco: “Lone Star Cypher”. Uma cypher apetrechada de muitos e bons nomes?! Em 2023?! Há quanto tempo não tínhamos direito a uma destas? E com um cartaz quase hollywoodesco (se Hollywood fosse no Texas): Lil’ Keke contracena com Paul Wall, Big Pokey, King Kyle Lee, Hotboy Wes, AL-D*300, Peso Peso, Trapboy Freddy e Big Jade no derradeiro tema de 25 Summers.


[Jay Worthy & Roc Marciano] Nothing Bigger Than The Program

Outro notável album com um tema desportivo saído em maio foi Nothing Bigger Than The Program, a primeira colaboração de longa duração entre o rapper canadiano Jay Worthy, assinado à Griselda Records, e o histórico rapper e produtor Roc Marciano, neste projeto assumindo o cargo de beatmaker integralmente. O conceito baseia-se na experiência de futebol americano universitário nos Estados Unidos da América, com uma estética bélica a permear a meia hora de música que nos é apresentada – o final da 3ª faixa é um exemplo perfeito desta agressividade, com um treinador e um jogador da linha ofensiva a estudarem várias possibilidades, cujos resultados são sempre trágicos para os seus oponentes.

Mas não é violência gratuita — há uma exatidão metódica e pontiaguda no dano que se quer causar, e é este equilíbrio que se vai revendo através do disco. As batidas de Marciano são ondas calmas que asserenam a viagem atroz que Worthy vai percorrendo, com uma imponência vocal e lírica impiedosa, contando histórias de crime, de tragédia, de infâncias e adolescências dramáticas, de uma ostentação vinda da pobreza e de um hustle inegável. Os convidados especiais para algo destas proporções tinham de ser adequados: Ab-Soul, Kurupt, A$AP Ant são alguns dos co-protagonistas escolhidos para narrarem experiências semelhantes, e adicionam cadências e texturas que acrescentam valor à experiência – Jay Worthy tem um condão para esta seleção, sendo a sua carreira uma lista cada vez mais variada de colaboradores (é só ir olhar para a discografia).

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