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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/01/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Dezembro 2023

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/01/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.

Em jeito de balanço de 2023, esta edição conta com um par de discos extra que escaparam ao radar no decorrer do ano que passou.


[AKAI SOLO] Verticality///Singularity

Parte da nova geração de rappers que perspetivam os seus raps como um veículo poético para uma mensagem muito maior, AKAI SOLO apresenta-se como um MC vindo do abismo e como um pirata da “Neo Nova Iorque”. Surpreendentemente, conseguimos perceber os dois cognomes através da sua música. Neste seu 8º álbum, lançado no início de dezembro, envolve-se num orgulho positivo, numa mensagem encorajadora, numa introspecção evolutiva — trademarks suas, com certeza, mas fá-lo sempre com uma clareza de mente e com uma consistência imagética e metafórica que arrebata e que marca. Não só pela sua lírica, uma das principais razões para lhe prestarmos atenção, mas também pela diversidade sónica dos seus instrumentais: neste álbum, produzidos maioritariamente por TwentyFifthNight, mas com aparições de Earl Sweatshirt, pepper adams, iblss e Wavy Bagels, que vão compondo diferentes cenários, todos com uma panóplia de camadas e texturas que se vão amontoando em paisagens abstratas, contrastando belissimamente com a transparência emocional do rapper. O LP é dividido em algumas faixas por uma voz feminina, talvez numa palestra, a dissertar sobre como pessoas de comunidades oprimidas e exploradas podem encontrar o rumo até à felicidade. A partir daí, AKAI SOLO conta o seu caminho.


[Smoke DZA & Flying Lotus] Flying Objects (Extended Version

A versão estendida de Flying Objects, o EP colaborativo entre Smoke DZA e o lendário Flying Lotus, chegou-nos no dia 8, aumentando em três o número de faixas e recuperando algumas das originais para as exponenciar com features de peso. E chegou com um aviso para prestarmos bem atenção ao OG dos versos. Somos confrontados com um hip hop nova-iorquino puro e duro a mesclar-se com a aura californiana mais relaxada do fundador da Brainfeeder. Nesta versão, o inverno é repelido por uma tranquilidade soalheira narrada pelos novos convidados do projeto: se na edição de setembro, 5 faixas contavam com 3 features, e agora Wiz Khalifa, Big K.R.I.T., e Curren$y juntam-se a “Spiritual”, renomeada para “Beyond Spiritual”, e em “Drug Trade Pt. 2” é Benny the Butcher quem se junta a Black Thought. É um conceito inovador — adicionam-se várias músicas em que o rapper e o produtor decidiram inovar e ir mais longe do que originalmente. Deixo-vos, concluindo este parágrafo com a passagem que inicia o disco. E vão-nos dizer vocês se não se sentem impelidos a ouvi-lo quando ele começa de tal maneira:

“Ladies and gentlemen, just in case you are dumb, deaf, blind, stupid, or let’s just assume poor: my name is Maxwell Jacob Freeman and you are listening to Smoke DZA’s album, you are welcome! His flows better, his rhyme schemes better, his clothes are better, his weeds better, he rolls joints fatter than your momma’s titty! He’s Smoke DZA, and he’s the greatest rapper that ever livеd, and he’s better than you, and you know it. But hе damn sure ain’t better than the longest-reigning AW world champion of all time! M.J.F!”


[G’s Us] WHAT THEM DOGS DON’T KNOW THEY KNOW

G’s Us é um novo duo de dois pesos pesados do hip hop underground contemporâneo: R.A.P. Ferreira, antigamente conhecido como Milo, junta-se a AJ Suede, para nos apresentarem WHAT THEM DOGS DON’T KNOW THEY KNOW, juntando dois dos MCs mais liricamente talentosos do panorama. Misturando a mestria referencial e narrativa de Suede com a poesia críptica e quase filosófica de Ferreira, por cima das batidas atmosféricas e pensativas de Steel Tipped Dove, este será um daqueles projetos que dificilmente será esquecido entre as areias do tempo. É uma lírica que se recusa a inferiorizar o seu ouvinte com metáforas óbvias e parábolas acessíveis, esforçando-se para conter mundos dentro dela, para provocar, com o intuito de ser transgressiva e agressivamente individual. São 26 minutos de disco, sim, mas a exploração da música parece demorar horas e horas, como se nos obrigasse a decifrar todos os seus significados, barra a barra. A convite, Blu rima em “FREAKS”, e Randal Bravery e brightboy acompanham os poetas em “SKIN GLOWING”, compondo-se assim a equipa total do disco. Mas também não sentimos necessidade de mais. Um dos destaques do ano ficou para o seu mês final.


[EXTRAS 2023]

[Cruz Cafuné] Me Muevo Con Dios

Me Muevo Con Dios, o terceiro álbum do espanhol Cruz Cafuné, chegou-nos em maio. Infelizmente, chegou-nos relativamente despercebido, e só o apanhámos um pouco depois desse mês, o que causou à sua ausência nesse Burburinho. De qualquer maneira, desde a sua descoberta, praticamente nunca saiu da rotação habitual. O projeto, que chega à uma hora e 16 minutos, é uma celebração ao nível de reconhecimento a que o hip hop chegou — carregando, no entanto, um desenvergonhado orgulho das pequenas ilhas Canárias, no nosso Mediterrâneo. O santacrucero traz consigo uma ginga e uma força que arrebata, que quando se olha ao espelho apenas se reflete a alma de todas as formas do hip hop contemporâneo. Se lhe falarmos em lanes, ele nega a conversa — seja num boom bap, num trap, num drill ou até num reggaeton, assume-se como polivalente e extremamente talentoso. Sente-se o amor à música e a este género como raramente se sente: o sampling é de uma pontaria incrível e revive memórias dos 90s, dos 00s, e dos 2010s; as temáticas habituais são representadas com uma pureza instintiva e nostálgica; os esquemas de rima, as punchlines e as referências vão-se amontoando numa lista gigante de tributos. Estamos perante um dos raros trabalhos de hip hop que parece, mais que tudo, amar o género e o modo de vida por tudo o que ele é e por tudo o que ele poderá ser.


[ICECOLDBISHOP] GENERATIONAL CURSE

Já andávamos à espera do debut de ICECOLDBISHOP há anos — e quando ele sai, passa-nos ao lado completamente. Que andamos a fazer? Há distrações que não se perdoam. Especialmente quando depois de tanta espera, enfrentamos um dos melhores discos de 2023. Quando o ouvimos a primeira vez, faz-nos lembrar de good kid, m.A.A.d. city, e corremos o risco até de lhe chamar um sucessor espiritual ao aclamado trabalho de Kendrick Lamar. A comparação faz-se facilmente: as histórias neste contidas podiam estar a acontecer paralelamente às de K. Dot, tal é a parecença dos mundos. E o olhar sobre elas parece incidir sobre as mesmas arestas — a opressão sistémica, as armadilhas sociais, as escapatórias de pessoas de cor, a dificuldade das pessoas negras nos Estados Unidos e no mundo em existir. Mas é um olhar mais jovem. Um olhar mais intenso, tanto na glorificação das suas vivências como na raiva pelas deficiências que a sociedade se recusa em corrigir. Há um distanciamento da conceptualidade para uma aproximação ao realismo; os skits abordam a dor diretamente, enfatizam a casualidade com que a morte e a violência são encaradas, a linguagem e o tom com que é usada enverga um orgulho inviolável. A instrumentação também não peca por monotonia — o g-funk que vai servindo de estrada para os caminhos deste bispo foi trabalhada até todas as pontas soltas estarem atadas, construindo uma travessia que compõe um dos melhores álbuns que o Burburinho falhou este ano.

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