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Fotografia: Atif Ateeq
Publicado a: 10/09/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Agosto 2024

Fotografia: Atif Ateeq
Publicado a: 10/09/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Madi Serket] SONGS ABOUT CIGARETTES & STUFF

Madeline Lapis Serket já se apresentou como 23 Heathrow, Matt Summington (apesar de ter deserdado toda a música que fez com este nome), e Prexinon. De momento, como Madi Serket, a produtora e rapper do Ohio lança SONGS ABOUT CIGARETTES & STUFF, o seu 3º projeto de 2024 e o 6º com este pseudónimo.

Este projeto é transparentemente jovial tanto na manufatura dos beats como na escolha dos convidados para rimarem — a variedade nos instrumentais passa pelas ruas do trap, pelas avenidas do jazz rap e pelos becos mais escuros do hip hop underground tanto contemporâneo como old school. Uma mão cheia de faixas são tão veranis como um gelado ao fim do dia, outra mão cheia são tão agressivas como um mosh pit de thrash metal, e uma mutante terceira mão cheia relembra-nos dos grooves perfeitos de A Tribe Called Quest ou dos The Roots. Exacerbadamente internauta, com referências desenvergonhadas a Smash Brothers, samples de memes e a um discurso de sexualidade liberal que permeia as redes sociais, nunca sabemos exatamente para onde vamos na viagem poética de Madi Serket e de todos os seus convidados — pelo menos um em quase todas as faixas —, sendo este também um disco onde podemos encontrar mais de uma dezena de artistas que provavelmente nunca ouviríamos de outra maneira.

Um tom na lírica explicitamente expositiva faz-nos lembrar a atitude nos primeiros trabalhos de Childish Gambino e de Tyler, The Creator, as divergências constantes no tipo de ritmos que ouvimos deixam-nos sempre curiosos para a próxima paragem, e sente-se uma intenção de exploração de tudo o que interessa musicalmente a Madi na direção do projeto. Se estas canções são sobre cigarros e coisas, ficamos ansiosamente a esperar as opiniões da artista sobre praticamente tudo nesta vida.


[Emilio Rojas] It Always Gets Better

It Always Gets Better é o 15º projeto de Emilio Rojas, nova-iorquino nascido em 1984 que anda desde 2004 a construir a sua carreira no hip hop. Apresentamo-lo como a evolução natural do struggle rap, agora com um nível adicional de comentário social consciente, apesar de nunca deixar aquelas narrativas de um come-up inevitável mas duro para trás. Apresentamo-lo também como um talento incrível a flutuar em beats, neste disco todas produzidas por PLYBCK, dono de uma voz marcante e com um laivo inspirador na esperança e na confiança que carrega consigo.

Experiências tradicionalmente nova-iorquinas são os maiores talking points do disco, como seria de esperar. As histórias contadas que passam pelas dificuldades relacionadas com skatar na cidade ou em dar um salto na popularidade na Big Apple, bem como ou o orgulho em ser latino. Mas também passam por trajetórias mais pessoais: as razões para o rapper não querer ser pai — ambiciona ser tio forever —, a maneira como as forças policiais e o estado tratam as minorias e as suas relações com mulheres. O costume.

As flows são originais e as punchlines que as acabam igualmente notáveis, algo que fica connosco durante a duração do disco é a maneira maravilhosa como o rapper se adapta facilmente a qualquer tipo de beat, tanto no seu tom como nos seus temas. São ambas características claramente trabalhadas com intenção no disco e, ao seu lado, rappers como Katori Walker, ETO, Dave East, Joey Cool e King Midas nunca ficam para trás a adicionar apropriadamente mais rimas a cada um dos assuntos que Emilio trata. Depois de uma audição deste disco, reconhecemos um sentimento de positividade e de esforço imparável no mundo em que vivemos. Aprecia-se muito quando ouvimos raios de luz depois de tanta escuridão.


[Valee] V-Sides

O prolífico Valee estreia-se em 2024 com uma exposição dos seus maiores talentos: providenciar vibe como praticamente ninguém o faz, exacerbar a quantidade de dinheiro que tem, a beleza da sua indumentária, e gabar-se da luxúria em que vive. V-Sides são 27 minutos de uma demonstração de como tratar muito bem beats hipnóticas e minimalistas, tecidas por Adio, Apex Martin, CHASETHEMONEY, Lusion, Plu2o Nash, TaeDaKidd e TyMadeIt, todas elas aduladas pelo chicagoano. É uma voz quente que corporaliza uma confiança fácil em si mesmo e que declara sem espalhafato, mas com toda a convicção, os seus orgulhos e conquistas, e tanto adota flows sprintados como demora a enunciar todas as sílabas do seu braggadocious para ter a certeza que se faz entender.

É um daqueles álbuns peculiares que não têm de fazer muito para nos submergirem na ambiência que transmitem. O tempo vai passando, e desde “Womp Womp” que voltamos constantemente a Valee sempre que precisamos de uma ambiência narcótica, psicadélica e pesada. Lil Yachty, Too $hort e Drugrixh Peso são os convidados para esta edição, e apesar de não nos obrigarem a escrever sobre eles, todos parecem perceber perfeitamente o assignment. Deixamos uma nota final para “Dim Sum”, uma colaboração com Vic Mensa que já anda cá fora desde 2018 e que continua a ser uma faixa que se recusa a sair da nossa cabeça e das nossas rotações.


[Heems] VEENA

VEENA é o nome do segundo disco de Heems para 2024 e também o nome da mãe do rapper nova-iorquino com ascendência punjabi. Partimos para a matéria-prima do disco abordando exatamente essa ascendência: os fardos mais descritos por aqui são os traumas com que as comunidades de pessoas de cor vivem todos os dias, os que herdam os síndromes pós-traumáticos de que tem de sobreviver numa sociedade que ainda os vê hostilmente. Apesar deste tom severo que Heems proporciona, nunca se inibe de ser ele mesmo: sim, ele ama o Ratatouille; sim, ele é awkward com mulheres; sim, ele gasta uma faixa a juntar áudios de amigos (alguns bem conhecidos…) a falar sobre como o amam a ele, sobre como estão à espera de ouvir o seu álbum novo ou de ler o seu roteiro, sobre como a sua alma lhes adiciona razões. O contraste que se vai delineando é o de que só através de uma comunidade se consegue ultrapassar todas as barreiras e todos os obstáculos erguidos na sociedade — e que Heems tem conseguido saltá-los, ou espera conseguir eventualmente.

Para estes saltos, neste VEENA, juntou sim as mensagens de áudio de amigos, mas também as beats de Sid Vashi — o melburniano cujo trabalho do dia-a-dia é em psiquiatria produziu grande parte do disco e insere uma variedade de sons e tons maravilhosa, que tanto puxam de melodias e percussão lo-fi, como samples de música erudita à frente de drums classicamente boom bap, como incorporando um jazz rap cheio de alma (em colaboração com Vijay Iyer, em “MANTO”), ou até usando hi-hats e snares mais chegados à electro contemporânea para pôr um pouco de picante na experiência. Ao lado destas beats produzidas só por Vashi, o australiano também participa na conceção das restantes, seja no drill de “RAKHI” ou no minimalismo instrumental de “BOURDAIN”, produzidas por EVERGREEN UNIVERZE e por RAM DULARI, respetivamente.

Mais companhia — e da boa — teve o nova-iorquino nas suas faixas a rimar com ele. Seja por Mr. Cheeks, numa faixa que rebenta qualquer escala possível de medição de quanta Nova Iorque está numa música; Pavvan rima em hindi e Ajji num inglês jamaicano direto de Kingston; Navz-47, rapper e cantora originária do Sri Lanka, rima etereamente e dá a voz a um refrão lindíssimo em tâmil; Cool Calm Pete, que ainda este ano passou pelo Burburinho, traz a sua lentidão (mais um contraste) para o disco. São mundos dentre deste projeto, e há tantas pontas por onde pegar que seria difícil fechar estes parágrafos sentindo-nos satisfeitos com o que falámos — mas acreditamos que este vislumbre que vos damos servirá para vos convidar para o mundo de Heems, um mundo bem colorido.

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