pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/09/2023

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Agosto 2023

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/09/2023

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Mooder 3ks] Why So Serious

Mooder 3ks é um trapper de Indianapolis que lançou mesmo na reta final de julho o seu 3º longa duração do ano, Why So Serious, mas que não foi a tempo de integrar a anterior edição deste Burburinho. O artista mais que prolífico lançou o seu 9º projeto desde 2019 e tem na sua música uma perspetiva mais profunda do que é costume neste género. Apesar da instrumentação e dos flows não serem algo de especial destaque, ouvimos uma conexão ao emocional em todas as suas líricas, mesmo quando os temas do dinheiro, da fama, das afiliações a gangs e do consumo de drogas são prevalentes. Há uma tristeza tingida em todas as frases, com uma dor a permear os tons da voz, com o próprio reconhecimento das condições sociais que levam a um lifestyle específico a causar um conflito.

O auto-tune e a escolha do uso de inflexões vocais vão carregando uma distinção das personalidades – sim, estamos a ouvir uma certa glorificação da vida de sex, money & drugs, mas ao mesmo tempo reparamos num choque na perspetiva sobre a mesma: a lamentação de todos os homies perdidos em “Hugging Headstones”, de todo o sofrimento causado por vícios em “Hard”, dos corações partidos em “Heartbreaks & J-Pay”, de uma vida vivida entre prisões e funerais em “Naturally Grieving”. Mooder tem um mundo interno gigante e pouca vergonha de dissertar sobre todas as sensações e sentimentos que por lá vivem.


[Ki Bohiti] The Anteiku Tapes, Vol. 1

Tal como na entrada anterior, o primeiro volume das Anteiku Tapes chegou-nos, também, mesmo no final do mês passado e o título talvez uma referência ao anime/mangá Tokyo Ghoul — a informação sobre o disco é muito escassa, mas a palavra Anteiku, escrita em kanji, aponta para uma “zona harmoniosa”. O que talvez será irónico pela parte do artista, ou talvez uma tentativa de encontrar um mundo melhor, pois o álbum soa e sabe a um ato político, a uma declaração de intenções e de ideologias anti-sistema.

Envolto numa ambiência sonora a tender para o obscuro, fazendo lembrar os panoramas de Dälek ou Cannibal Ox, a ideia parece ser de assumir aquele minimalismo sombrio do início do milénio, imitando um underground que se começou a implantar na cultura do hip hop. Com uma lista de convidados diversa – Mr. Mothafuckin’ exQuire e 070 Phi presentes, ao lado de rappers mais locais como Da Boi Ice, Stack Skrilla ou Truth Killz — vão-se contando histórias menos iluminadas e relatando mundos mais escondidos. O hip hop esotérico ainda vive, e de acordo com o undergroundhiphopblog.com, ainda faltam 2 volumes para esta saga de Ki Bohiti acabar.


[Marlon Craft] Homecourt Advantage, Vol. 2

Dono de si próprio e carregando uma voz preenchida de confiança, orgulho e vaidade, por saber que a sua lírica é a mais original, as suas flows as mais frescas e a sua seleção de batidas a mais pertinente, Marlon Craft retornou aos lançamentos este agosto com o segundo volume de Homecourt Advantage. E temos de lhe dar alguma razão – o storytelling é cativante e tanto os setups como as punchlines são hábeis, indicando um cérebro especialmente preparado para enlear palavras como se fossem tiras de seda. Este talento é realmente a característica mais extraordinária de Marlon, que tem um jogo de ancas de metáforas, parábolas e referenciação maravilhoso.

Os refrões são orelhudos – o próprio diz que tem andado a ter aulas de canto, portanto faz sentido; as batidas soam a uma coletânea das diferentes tendências sónicas que o hip hop foi surfando nos últimos 15, 20 anos, algo nostálgicas, com um toque especial difícil de especificar, mas perfeito para o final do verão. Não valerá a pena tentar cercar Marlon num género de hip hop, porque parece-nos que está pronto para se adaptar a tudo: os seus temas são variadíssimos, o braggadocious vai tanto à sua própria evolução como à ostentação habitual, a aproximação ao emocional soa-nos genuinamente a uma tentativa de crescimento psicológico, o amor, o grind e o hustle, a família, tudo soa interessante na voz de Craft. Este é um daqueles discos que poderia ter saído em 2010 e teria mantido todas as suas qualidades até aos dias de hoje. Talvez estejamos perante um daqueles intemporais.


[Mick Jenkins] The Patience

Em termos de introduções, Mick Jenkins já não precisa de uma. Mas em termos de elogios à sua progressão, podíamo-nos alongar infinitamente – o homem já vai com 7 discos e é discutível se algum tem defeitos notáveis. Este The Patience, então, é uma meia hora de hip hop absolutamente impecável. Mais que tudo, este disco é uma exposição de maturidade e de evolução, de uma sofisticação e de subtileza irrepreensível: na escolha de beats, na seleção de temas, na mudança de abordagens – sim, estamos aqui em frente a um disco e a um artista que se permite a si próprio explorar o espetro total das emoções humanas. A vida é lixada. É natural ficarmos lixados com a vida. Não há mal em reagir e agir a essa fúria, mas não nos podemos esquecer que há sempre esperança, sempre a comunidade, sempre o desenvolvimento interno, há sempre um refúgio onde encontramos algum tipo de calma, alguma espécie de paz. São esses os ensinamentos de Mick Jenkins – é preciso paciência, mas é preciso sabermos quando a paciência acaba.

Destaque especial para “ROY G. BIV”, um flex de liricismo maravilhoso. Quanto às quatro features do álbum, Freddie Gibbs é o seu eu tradicional, desenvergonhado e orgulhoso, tal como Benny the Butcher, que se afirma claustrofóbico com a quantidade de caixas de Louis Vuitton que tem em casa; JID adiciona um toque de dança e de body movin’ ao álbum, ao contrário de Vic Mensa, que escolheu desviar-se completamente do tema amoroso de “Farm to Table” para acabar o seu verso, por alguma razão. Mas ficou bem. É só ter paciência.


[BLP Kosher] Bars Mitzvah

Depois da sua entrada explosiva no game, o trapper mais orgulhosamente judeu voltou aos lançamentos com Bars Mitzvah, um esforço de quase uma hora. Benjamin Landy Pavlon, mais conhecido por BLP Kosher, é uma enciclopédia da cultura popular dos últimos 20 anos, mesmo tendo ele apenas 23. É só ouvir 30 segundos de qualquer faixa do disco que dá para perceber a facilidade com que o rapper cria associações, brinca com significados e inverte a forma e o flow para contar todos os seus troféus, discursar sobre o seu talento e ostentar a sua riqueza. A ascensão foi rapidíssima nos últimos anos, mas não parece que lhe tenha subido à cabeça, ainda por cima com a companhia de BabyTron, com quem tem partilhado este género de trap, e a alma do que o faz interessante continua bem viva. Se o vosso interesse no hip hop passa por dedilhar todas as páginas de lírica para apanharem todas as dicas, está aqui um dicionário de mil páginas. As batidas são diversas o suficiente para não aborrecerem, apesar de caírem todas num certo espetro, perfeito para as cadências de Kosher, e os features chegam bem para amenizar uma experiência que poderia acabar por ser tediosa – Trapland Pat, Luh Tyler vão variando as vozes e DJ Premier até um scratch incorpora.

Uma última nota para as últimas 5 faixas, que, sinceramente, se apreciam pela experimentação, mas que acabam por divergir imenso do som que o álbum vai apresentando, desviando o tema para um punk-pop inócuo e que acaba por ser quase constrangedor. Nada contra a expressão e a intenção do artista, mas achamos que acabam por ser 15 minutos que podiam estar num EP diferente. Fora este pequeno apontamento, um dos álbuns mais interessantes do ano por uma das personagens mais interessantes do ano, sempre acompanhado pela sua dreidel mágica e por uma perspetiva religiosa bem diferente daquilo ao que estamos habituados.


[Danger Mouse & Jemini the Gifted One] Born Again 

“Lendário” talvez seja o único adjetivo apropriado para esta colaboração e para os seus autores, Danger Mouse e Jemini the Gifted One. Born Again foi iniciado em 2004, e finalmente vê a luz do dia em 2023. Com mais de 50 anos de experiência no hip hop entre os dois, este disco é uma prenda absurda para quem é fã de ambos e para quem é adepto de rap em geral. O álbum soa a 2004, funcionando quase como uma cápsula do tempo, de um hip hop ainda a chegar aos ouvidos das massas, com um esforço para soar elegante e luxurioso, mesmo contando narrativas de um crescimento num mundo opressivo, dominado por uma corrida desenfreada impiedosa atrás de dinheiro, ao mesmo passo que se vai perdendo amigos, família, tempo, e o próprio senso de quem somos.

São faixas longas, todas por cima dos 3 minutos, com refrões longos, bridges e codas ambiciosos, samplagem, fade-outs e pausas instrumentais desenvolvidas e elaboradas, timbres e intenções artísticas que pertencem claramente a um tempo diferente, mas que não perderam uma única porção de qualidade ou de perspicácia. Em termos de duração, parece que essa ficou pelos standards atuais, com o álbum a não chegar aos 40 minutos. Mas a qualidade e a profundidade dessa mesma quantidade é mais que suficiente para satisfazer qualquer fã de hip hop, seja old head ou da nova escola.

pub

Últimos da categoria: Burburinho

RBTV

Últimos artigos