Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Denzel Himself] Violator
Violator é o disco de estreia de Denzel Himself, o seu primeiro álbum oficial desde que começou a sua viagem no mundo da música em 2017. Parece ter nascido um pouco para explorar a selva que é a indústria musical de um modo irreverente e pouco preocupado com fórmulas e guias de estilo, assumindo-se como um iconoclasta desinteressado pelo rame-rame a que as massas são sujeitas. Criou para si um mundo artístico que ele próprio vai descortinando em cada lançamento, e neste Violator, lançado com a the him institute, autodenomina-se como Goth Cowgirl e experimenta uma abordagem concetual (mais uma a sair do UK, que tem sido um país prolífico a formar artistas completos nestas criações mais ambiciosas).
Interpretamos esta abordagem como uma nostalgia confusa, construindo 13 faixas em que ouvimos temas cyberpunk misturados com aquela infusão de géneros que permeou o hip hop no início do milénio, trazendo ideias do punk e do metal para a festa, segmentando influências de jazz e R&B e convidando pitadas de garage rock e um tricô de samplagem para alternar entre skits com vozes robóticas e distópicas que descrevem tanto o mundo em que Denzel vive, como as próprias intenções do artista. A lírica chega a assemelhar-se a spoken word, as ideias para as beats enumeram-se até às dezenas (a maioria produzidas pelo próprio), e, de repente, somos cidadãos com bilhete de identidade na criação de Denzel. Se a descrição é confusa, deixamo-vos a refletir nela e esperamos que cheguem à conclusão que essa intriga é aliciante. Ouvir Violator talvez seja a resposta que precisam.
[Deante Hitchcock] Good Things Take Time
Após uma saída conturbada da editora ByStorm (da RCA Records), Deante Hitchcock decidiu refocar as energias para algo melhor e maior. Para isso, precisou de tempo, esperança e perseverança. Good Things Take Time é o sexto projeto da discografia do rapper de Atlanta e promete um futuro em que o tempo realmente sirva para coisas melhores. Lançado como mixtape, agregando 10 faixas que já andavam por aí avulsas, na sua audição somos invadidos por um sentimento de esperança que nos cobre todos os nervos. A mensagem é de que Deante se recusa a desistir e a desacreditar em si próprio — apesar de tudo por que já passou, a mensagem é sempre positiva, dançando sempre que quer entre momentos de reflexão e autoquestionamento, e incentivando-nos para fazer o mesmo. Esta mensagem é transmitida com um tom contido e reservado em grande parte do disco, e são os momentos em que ela é retomada através de uma lente mais solta e mais festiva que nos soam ainda mais celebratórios, alegres e contagiantes. Coisas boas demoram, sim, mas parece-nos que Deante está a diminuir o tempo de espera — tanto para nós como para ele.
[LaRussell & Mike G Beatz] MAKE HIP-HOP FUN AGAIN!
Ninguém se diverte tanto como LaRussell e ninguém é tão gigante como LaRussell. Pelo menos na cabeça dele, e nós tendemos a acreditar que realmente seja verdade. Não será exagerado dizer que o homem californiano passa muito da duração deste disco a gritar a pulmões abertos que ama a sua vida, que ama a sua arte, que ama o seu trabalho e que não pode esperar que os frutos dele brotem do terreno fértil em que tem plantado a sua carreira. São rimas e histórias contrastantes: se num ponto do disco está a congratular-se e a engrandecer-se pela sua constante labuta, num outro está a dizer que só quer celebrar, e num seguinte pergunta a si próprio quem é a pessoa que os outros vêem quando olham para ele. Mike G Beatz produziu executivamente o disco (não confundir com Mike G, dos velhos Odd Future) e cria uma sequência de batidas quintessencialmente costa oeste, orelhudos e rimbombantemente acompanhando todos os tons do rapper de Vallejo. Tudo isto intercalado com os monólogos “Hater Speaks”, que se dividem em cinco skits de ódio gratuito a LaRussell que analisam e a criticam o seu come up.
Sentimos que ainda não é um dos nomes mais reconhecíveis do game, mas este seu 2025 tem sido um grande ano: um Tiny Desk Concert, o sucesso do seu coletivo/empresa Good Compenny e uma quantidade de colaborações com nomes gigantes do hip hop (só neste disco, aparecem Snoop Dogg, Busta Rhymes e Wiz Khalifa) prometem um futuro ainda mais brilhante, e, especialmente, mais divertido.
[sign crushes motorist & KayCyy] SADDEST TRUTH
SADDEST TRUTH é soulful e experimental — uma colaboração inesperada entre adjetivos inesperados quando conjugados na mesma frase e uma colaboração inesperada entre artistas de géneros (e de backgrounds) completamente diferentes. KayCyy volta em força dois anos depois do seu último projeto com vocais indiscutivelmente lindíssimos, acompanhado do irlandês Liam McCay, mais conhecido como sign crushes motorist (tendo, no entanto, 14 outros pseudónimos), grande mente dos instrumentais do disco, contribuindo também com vocais ocasionalmente, neste que é um dos mais memoráveis trabalhos deste ano até agora.
É um hip hop de conotações ambient, composto por baladas de amor incondicional misturadas com 808’s que enchem auditórios, lírica que nos deixa de joelhos (tal é a emoção nela contida) e guitarra indie encruzilhada com sintetizadores ríspidos e agressivos. Não tem ponta por onde se começar a falar do disco, mas temos sempre de acabar de o ouvir. O expoente de todos os motifs emocionais desta obra é “Make Sure You’re Loved”, uma das faixas mais angelicais que ouvimos recentemente, uma produtora de oxitocina em todos os quatro minutos e dezassete segundos que a compõem. Aparentemente teremos direito a mais álbuns destes dois em colaboração, com KayCyy a fixar o nome HIIBRYD para o duo, embora este ainda tenha sido oficialmente apresentado. Uma das surpresas mais agradáveis do ano, e isso é uma verdade feliz.