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Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 09/06/2022

A celebração também faz a luta.

Brian Jackson no B.Leza: a casa do amor constrói-se colectivamente

Fotografia: Pedro Jafuno
Publicado a: 09/06/2022

Com a progressiva entrada de pessoas ao som de uma playlist de músicas banhadas em groove a ressoar do PA da sala do B.Leza no passado dia 4 de Junho, podia-se adivinhar uma noite calorosa para receber Brian Jackson naquela que seria a segunda data na sua primeira vez em Portugal (antecedida por uma passagem do músico pelo Passos Manuel, no Porto, a 27 de Maio). Quando o músico americano subiu a palco, o número notoriamente afluído de pessoas na plateia congregou-se de imediato em torno dele, com este a anunciar que o presente concerto seria o último desta tour. Adiante-se, porém, que tal constatação não corresponde a um sinal de fadiga, pois o que se seguiu foi uma celebração inquestionavelmente sentida da música negra nos seus mais diversos recantos – soul, jazz, blues, funk – que, durante mais de uma hora, iria deixar qualquer um dos presentes a absorver essa carga emotiva.

Desde o começo da sua actuação que Jackson não se coibiu de realçar, de forma notavelmente carinhosa e humilde, a importância que Gil Scott-Heron teve na sua vida enquanto amigo e parceiro artístico – afinal de contas, a sua colaboração com o ilustre poeta foi a mais duradoura e aclamada etapa da sua carreira, sendo o repertório deste concerto centrado unicamente em obras da autoria da dupla –, e foi ao reflectir sobre a influência que a meia-noite possuía no processo criativo dos dois que avançou para o primeiro tema, “Offering”. Embora este espectáculo tenha sido predominantemente comandado pelo calor reconfortante proveniente da sua voz e do Rhodes que toca, o músico já se faz sentir acompanhado nesta primeira investida por Rodrigo Brandão, que, após gesticular um certo aquecimento cósmico por breves momentos, acompanhou as palavras  entoadas por Jackson numa discreta tradução para português, reforçando o sentimento de chamamento para a união transparecido neste poema, assim como no seguinte, “Peace Go With You Brother (As-Salaam-Alaikum)”.

Findado um primeiro capítulo de soul-jazz espiritual, Brandão retirou-se de palco e, quando Jackson introduziu o próximo tema como uma criação nascida da necessidade de escrever com o seu influente cúmplice sobre o fascínio que sentiam por gigantes da pop afro-americana como John Coltrane, Otis Redding, Miles Davis, Billie Holiday ou Aretha Franklin, o entusiasmo do público começou a crescer por saber certamente o clássico que os esperava: “Lady Day And John Coltrane”. Aqui, a interacção musical foi articulada dos dois lados do recinto, não apenas através do canto colectivo do refrão como também do bater de palmas solicitado à plateia por Jackson de modo a permitir a existência de um beat. Um momento tão energético com este pedido a ser repetido na forma de estalidos para embalar a ambiência mais densa de “We Almost Lost Detroit” – o sustento rítmico é o mínimo que se pode oferecer a um músico a fazer transparecer canções com tanta alma num formato minimalista.

A meio caminho desta jornada, Jackson mostrou-se confortável a defender que o génio de Scott Heron se destaca dos demais pela sua capacidade de relatar experiências não-pessoais de forma excepcionalmente genuína, e justificou a sua tese com base em três provas: a primeira destas, “Pieces Of A Man”, que retratava o desespero da precariedade laboral levado ao seu extremo, e à qual é requerida especial atenção na sua escuta; a segunda, “Your Daddy Loves You”, descrevendo o valor de um amor paterno que ainda não sabia como experienciar directamente; e a última prova, “Home Is Where The Hatred Is”, embora estabelecida como uma descrição meticulosa dos perigos do abuso de substâncias (escrita previamente à luta de Scott-Heron com o mesmo problema), foi revisitada como uma análise a qualquer lar que perpetue ambientes tóxicos a partir do momento em que Brandão regressou não apenas como “tradutor” de Jackson, como também para oferecer um comentário mordaz sobre as opressões sistémicas do racismo, da xenofobia, do classismo, da homofobia ou da transfobia na nossa sociedade, pintando um quadro particularmente revoltante do seu país de origem, mas ultimamente contrariando a “casa do ódio” para incentivar a “casa do amor” que, naquele cantinho do Cais do Sodré, celebra a cultura africana.

Depois de um testemunho desta amplitude emocional, fazia sentido que se sucedesse outra canção de descontentamento social, desta vez veiculada por um tom mais introspectivo, que é “Winter In America”, onde, a meio da performance, Jackson incidiu num solo de flauta cuja delicadeza serve imaculadamente o andamento do devido tema – acompanhado novamente pelas palmas do público, claro. Porque a luta por um mundo melhor deve ser encarada de forma positiva, o músico contrapõe o momento anterior com “It’s Your World”, onde todos concordam: “You are truly free/ To be what you wanna be.”

Chegávamos, então, à recta final, onde Jackson foi acompanhado pelos músicos da banda B.Leza para uma rendição de “The Bottle” ritmicamente disco-funk, com direito a outro solo de flauta bem-sucedido pela sua carga bluesy e seguimento para call-and-response das melodias tocadas. Após o cessar do último verso da canção, Jackson saiu de palco ao som da banda e da alegria expressada pela ovação do público; não era difícil perceber o porquê: com tanta simbiose de emoções partilhadas entre todos, era inevitável que os dois lados saíssem de coração cheio. 


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