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Publicado a: 10/09/2015

Brian Eno: estratega oblíquo

Publicado a: 10/09/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

Em 1991 Brian Eno foi convidado para elaborar a sua lista de Desert Island Discs, a convite do famoso programa da BBC do mesmo nome. A sua seleção incluía música de Miles Davis, Fela Kuti, Velvet Underground, Captain Beefheart, do Coro Estatal da Bulgária e da cantora de gospel Dorothy Love Coates. Comum a todas as suas escolhas uma ideia de arrebatamento, tanto físico como espiritual, algo que parecia contrastar com a música que editou em nome próprio nessa mesma década – mais laboratorial, conceptual e exploratória no sentido intelectual do termo. Recentemente, numa entrevista concedida à sua filha Irial Eno publicada numa revista de circulação limitada intitulada Mono.Log, o músico e produtor explicou o que lhe interessava na música e na arte em geral: “Gosto de arte que me faça pensar: “Como é que alguém conseguiu fazer aquilo? Em que estava a pensar? De onde viria? Que andaria a ouvir que a tenha conduzido até aqui?”” No caso de Brian Eno, a resposta a essas perguntas é necessariamente complexa porque ele é, seguramente, um dos mais inquietos criadores das últimas décadas. Nos anos 90, essa inquietude atingiu um pico que se traduziu num assombroso volume de trabalho, parte do qual agora recuperado.

Nerve Net e The Shutov Assembly, ambos de 1992, Neroli, de 1993, e The Drop, originalmente lançado em 1997, foram recentemente reeditados pela All Saints, a editora que foi estabelecida em 1991 por Dominic Norman-Taylor para tomar conta dos projectos editoriais até aí assumidos pela Opal (operação criada pelo próprio Brian Eno que nos anos 90 abandonou a edição para se transformar num gabinete de gestão de carreira). Trata-se de material de uma fase compreensivelmente obscura na discografia de Brian Eno que nos anos 90 viu o seu trabalho solo ser ofuscado pelos seus bem mais visíveis trabalhos de produção, sobretudo os que realizou para os irlandeses U2. E essa é uma das marcas do seu carácter: a capacidade de circular entre diferentes esferas musicais e artísticas mantendo total integridade.

 


 


[O ARRANQUE DO GÉNIO]

Brian Eno começou por dar nas vistas como agente provocador nos Roxy Music, com quem gravou os dois primeiros álbuns, Roxy Music e For Your Pleasure, em 1972 e 1973, antes de abandonar a banda para se concentrar na sua própria carreira a solo. As razões para a sua dissidência – choque de egos com Bryan Ferry – ajudam a entender o seu génio singular. Na década de 70, Eno teve tempo para editar álbuns seminais como Taking Tiger Mountain (By Strategy) (1974) ou Another Green World (1975), que lhe evidenciaram uma idiossincrática visão da pop, teve tempo de investigar o fértil filão krautrock trabalhando com os Cluster e com os Harmonia e ajudando David Bowie a navegar pelo labirinto estético e emocional de Berlim e ainda conseguiu apanhar a implosão punk de Nova Iorque onde produziu os Talking Heads e a seminal compilação No New York (1978). Entre a pop, a vanguarda do punk, as experimentações electrónicas de recorte kosmische e a invenção da música ambiental, Brian Eno tornou-se uma referência incontornável da modernidade provando, ao mesmo tempo, ser um pensador arguto, profundamente crítico e com vastíssimos interesses no domínio da cultura.

Na década seguinte, Eno trabalhou com David Byrne no crucial My Life in the Bush of Ghosts (1981) e aprofundou as suas experiências ambientais colaborando com músicos como Daniel Lanois, Harold Budd ou Michael Brook em trabalhos como The Pearl ou Hybrid (de 1984 e 1985, respectivamente) que lhe pareciam cimentar um percurso cada vez mais distante da pop. Mas o seu envolvimento em The Unforgettable Fire, dos U2, em 1984 contrariou definitivamente essa ideia. A experiência inicial com o grupo de Bono e The Edge correu suficientemente bem para Brian Eno se tornar na mais constante presença atrás da mesa de mistura sempre que o grupo regressou a estúdio: só Rattle and Hum, Pop e o mais recente Songs of Innocence não contam com os préstimos do inventor das “estratégias oblíquas”. “Quando me pediram para trabalhar com eles”, explicou Brian Eno à Mojo em 1995, referindo-se ao convite dos U2 para se envolver em The Unforgettable Fire, “não consegui ver ligação nenhuma entre o que eu certamente iria fazer e o que  eles andavam então a criar. Eu disse-lhes: “Não sei bem o que vos poderia oferecer – o que eu vou fazer se entrar aí será mudar bastante a vossa música””. A promessa de Eno foi certamente cumprida e o Melody Maker, no Outono de 1984, reportava: “Já estamos muito longe de Steve Lillywhite aqui”.

 


 


[FILOSOFIA E ANOS 90]

Brian Eno, como seria de esperar, não abrandou nos anos 90. A abertura de uma nova década foi feita dividindo créditos com o ex-Velvet Underground John Cale no álbum Wrong Way Up (1990), trabalho complicado com um artista notoriamente difícil de gerir em estúdio. Claro que Brian Eno estava habituado a este tipo de desafios e o seu ego não se intimidava facilmente: além dos U2 de Achtung Baby e Zooropa (e do projecto paralelo The Passengers que editou Original Soundtracks 1 em 1995 onde marcava presença Luciano Pavarotti), Brian Eno ainda assinou trabalho de produção para os James (Laid de 1993) – grupo com que aliás dividiu créditos de autoria no álbum Wah Wah (1994) -, para David Bowie (Outside de 1995) e para vários outros artistas. E depois houve toda uma outra série de encomendas, incluindo a famosa melodia de abertura do Windows 95, que tornaram as ideias de Brian Eno mais presentes do que se suporia para alguém tão firmemente conotado com a vanguarda. Essas ideias foram, ao longo de toda a década de 90, suportadas por uma leitura-chave: Contingency, Irony and Solidarity, livro do filósofo americano Richard Rorty publicado em 1989, propunha a filosofia como uma rampa para, como explica David Sheppard na biografia de Eno On Some Faraway Beach (Orion Books, 2008), “a reinvenção, um meio para o individuo criar a sua própria ética de enriquecimento pessoal”. A música, para Eno, foi sempre apenas um aspecto do seu pensamento: o seu trabalho no domínio da arte e as suas conferências são outras manifestações óbvias desse inquieto espírito criador que o anima. Por tudo isso, Nerve Net,The Shutov Assembly, Neroli e The Drop funcionam como a parte submersa de um iceberg, parte de um importante bloco criativo em que a ponta mais visível corresponde a um par de trabalhos definitivos da história da pop na década de 90 – os U2 de Achtung Baby e Zooropa.

 


 


[PERFUME E JAZZ NADA BEM-VINDO]

Prova da irrequietude de Brian Eno é My Squelchy Life, álbum que deveria ter visto a luz do dia logo no arranque dos anos 90, mas que acabou por ser descartado simplesmente porque a editora decidiu atrasar a sua edição por seis meses. Com colaborações de Robert Fripp, Robert Quine, Roger Eno, John Paul Jones ou Benmont Tench e material pop avançado movido a electrónica e a uma noção cubista de funk, este era um álbum que a maior parte dos artistas não teria coragem de arquivar, mas que Eno não teve pejo em descartar por acreditar que o atraso de alguns meses haveria de comprometer a sua relevância. O álbum, que na época chegou a ser enviado em formato de cassete promocional para alguns jornalistas, foi agora disponibilizado como um oportuno extra de Nerve NetNeroli, peça ambiental inspirada num aroma de uma laranja espanhola, é uma extraordinária obra de ambiência electrónica construída, certamente, com generoso recurso ao famoso DX7 da Yamaha e tão eficaz no estabelecimento de uma disposição de calma como um perfume discreto que nos envolve – a obra, aliás, é usada nalgumas maternidades do Reino Unido para sugerir um ambiente de calma e harmonia. The Shutov Assembly é outra obra ambiental, embora de contornos menos luminosos que Neroli: trata-se de uma peça concebida como homenagem ao pintor russo Sergei Shutov que costumava trabalhar tendo a música de Eno como banda sonora: este álbum representa o inverter da situação e é certamente decorrente do pensamento de Eno sobre a moderna galeria de arte e a relação das pessoas com o espaço físico e mental que a galeria representa. Finalmente, no quarteto de reedições recentemente apresentadas, encontra-se ainda The Drop, uma espécie de estudo sobre jazz que Eno descreveu como “Unwelcome Jazz”, como se fosse possível, usando apenas tecnologia, abstrair ainda mais o que já é de si abstracto. Como extra desta reedição, surgem uma série de faixas originalmente concebidas como acompanhamento da instalação 77 Million Paintings.

 


 


De certa maneira, estas obras que Brian Eno tinha originalmente deixado perdidas no labirinto dos seus anos 90, representam a guarda avançada do seu pensamento estético, generoso o suficiente para se estender ao lado mais conceptual das artes plásticas, mas capaz de interagir com resultados espantosos nos domínios da pop.  A edição mais recente do seu conjunto de “ordens” para orientar sessões de gravação – as notórias Estratégias Oblíquas – data de 2013 e tem a forma de um baralho de 108 cartas com instruções como “Honra o teu erro como uma intenção escondida” ou “Pergunta ao teu corpo” e ainda “Tenta falsear isso”. Se imaginarmos Brian Eno a puxar de uma dessas cartas para atacar um bloqueio criativo de The Edge a meio de uma sessão de gravação dos U2, torna-se mais fácil compreender os misteriosos caminhos que a sua música deu nos anos 90, entre as margens da pop, o futuro do jazz e a música como perfume ou pintura aural.

 

*Texto originalmente publicado na edição 107 da Blitz.

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