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Publicado a: 08/06/2018

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[TEXTO] Moisés Regalado 

A unanimidade será um dos mais justos indicadores para nomear os melhores de sempre, grupo restrito que em Portugal conta com poucos indiscutíveis. Boss AC fará parte do leque, não significando isso que toda a gente goste de igual forma de tudo o que Ângelo Firmino alguma vez escreveu ou produziu, mas é impossível negar a influência que o filho perfeito da geração Rapública teve ao longo do último quarto de século. Mandachuva ainda é um exemplo excepcional de dedicação ao serviço da técnica, aplicada sem falhas a beats e flows, e Rimar Contra a Maré escancarou as portas que a mais icónica compilação portuguesa abriu em 1994. Daí para a frente, as barreiras, que vinham sendo desafiadas desde “Corda” ou “Tunga, Tunguinha“, caíram por completo e AC impôs-se no circuito da música portuguesa, deixando de ser pertença exclusiva do movimento hip hop.

Os álbuns sucederam-se e o Boss AC da viragem do século ia aparecendo a espaços. Preto no Branco terá sido o registo que melhor se equilibrou entre mundos, bem mais afastados do que hoje em dia, numa harmoniosa alternância de músicas ligeiras com momentos de rap tão inspirados como “I don’t give a fuck“. Patrão parece ambicionar a mesma tomada de posição que Preto no Branco mas volta a fechar fronteiras, num regresso à exclusividade hip hop. É verdade que Boss sempre se mostrou adepto da falta de compromisso para com metas ou tendências só que o novo EP assume a intenção de provar que, à boleia da sua sonoridade de sempre ou em produções próximas do trap, fazer rap continua a ser a sua praia, independentemente do estado do tempo e do mar.

“As Coisas São Como São” abre o livro com um instrumental que faz lembrar o melhor de Mandachuva, base ideal para um flow tirado do manual e escolhido a propósito da ocasião. O chorrilho de metáforas e comparações resulta em pleno, ouvindo-se, algures entre dicas, que “hoje em dia tudo é trap”. Não será coincidência que a tracklist prossiga com “Queque Foi” — o vídeo já conta com mais de um milhão de visualizações. A mestria é óbvia, sendo difícil não tirar o chapéu perante o flow que AC exibe ao dizer “Qual fénix, barata em guerra nuclear/Nove vidas, sou gato, hei-de sempre voltar/Eu sei coisas que o Google não sabe/Niggas querem beef, eu dou-lhes kebab”, e o refrão, aparente ponto fraco do conjunto, principalmente se comparado com o tom sério dos versos, acabou por fazer todo o sentido depois de apresentado o clipe. E talvez não haja melhor prova de que Boss AC saberá exactamente a fórmula fresca.

E não será fruto do acaso que o melhor tema de Patrão seja, muito provavelmente, “É Pa Ganhar”, não obstante o impacto do primeiro single, a carga emocional do featuring com DJ Bernas ou o saudosismo sugerido pelo tema que AC dividiu com Gutto e Bambino (ideal para fãs acérrimos de Black Company ou para novos ouvintes que nunca tenham contactado com as referências evocadas). A métrica lembra o melhor dos seus primeiros CDs, mas não deve nada aos exercícios estilísticos mais contemporâneos. A escrita não exibe qualquer vestígio de preguiça e o refrão distingue-se claramente quando comparado aos do restante trabalho, num equilíbrio entre versos e beat que é digno de sinceros aplausos — “porque o velho AC, é o novo AC”, como já todos saberão.

NGA é, por auto-proclamação mas com larga aprovação e aclamação popular, rei da LS. Regula já se tinha assumido como patrão e sobre GSon vai-se dizendo que é um deus na terra. Há validade nos rótulos sugeridos mas todos eles, bem como a grandeza que lhes é associada, remontam à mesma raiz e chegam aos dias de hoje como frutos de uma árvore em comum, em tempos regada por um pequeno grupo de pessoas em que Boss AC se destacava. AC é, apesar do nome, o patrão que nunca se tinha proposto como tal mas que chegou a 2018 com vontade de arrumar a casa: que se fale do que fez até agora e que se continue a falar pelo que ainda consegue fazer. Missão cumprida.

 


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