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Publicado a: 30/10/2018

Boss AC: “Tinha vontade de me dar a ouvir”

Publicado a: 30/10/2018

[TEXTO] Gonçalo Oliveira [FOTOS & CAPTAÇÃO DE VÍDEO] Sebastião Santana [EDIÇÃO DE VÍDEO] Luís Almeida

Se olharmos para o alinhamento de artistas que colaboraram no Rapública, em 1994, não encontramos nenhum outro MC com um percurso capaz de ombrear com Boss AC. Pioneiro da cena hip hop em Portugal, Ângelo Firmino quebrou um silêncio editorial de seis anos quando, na primeira metade de 2018, se afirmou como Patrão de um movimento cultural que cada vez mais abrange números recordistas de participantes. Há um rapper em cada esquina e um produtor a ele associado, mas são poucos aqueles que conseguem ombrear com a mestria de AC, que leva mais de duas dezenas de anos ligado ao género musical mais popular do momento.

A Vida Continua… saiu na passada sexta-feira. Neste seu sexto álbum de originais — o terceiro desde que ingressou nos quadros da Universal Music Portugal — Boss AC dá a conhecer a sua faceta mais vanguardista, ao demonstrar que também os veteranos podem aprender com as novas gerações. Entre samples do cancioneiro português ou o recurso às heranças cabo-verdianas, não existem barreiras sónicas impossíveis de ultrapassar, num interessante jogo de ritmos que vai desde o mais estabelecido boom bap ao mais actual trap.

O Rimas e Batidas sentou-se à conversa com Boss AC, que abriu um pouco mais o livro que guarda as histórias por detrás de A Vida Continua….

 



Antes de editares o álbum deste-nos o Patrão — a tua primeira edição em cinco anos, se a memória não me falha. Como é que foi voltares a sentir esta proximidade com o público graças aos temas novos?

É sempre bom. Cinco anos que, na verdade, foram seis — foi em 2012 que saiu o último álbum. Muita coisa acontece. Nos dias de hoje, seis anos correspondem ao que seriam doze ou mais anos há duas décadas. Estava com muita expectativa de perceber se havia da parte do público vontade de me ouvir, como eu tinha vontade de me dar a ouvir. Essas dúvidas foram completamente dissipadas. O EP foi recebido de braços abertos, o que veio reforçar ainda mais a ideia daquilo que eu queria fazer para o álbum e que se concretizou agora.

Eu notei que existiu… Não diria uma evolução… Mas notei que tu absorveste muito das sonoridades que hoje dominam o espectro da música urbana. Sendo tu uma figura quase paterna do nosso hip hop, também te deixaste influenciar pelas coisas novas que surgiram bem depois de ti?

Completamente. Sem dúvida alguma. Todo esse conceito, essa influência de que tu falas, já estava presente no Patrão. Até porque o Patrão foi feito como uma espécie de aperitivo para o que seria o prato principal, que é o álbum. E, cada vez mais, é preciso perceber que a nova geração tem tanto para aprender connosco como vice-versa. Eu faço por estar atento e tenho aprendido bastante, tenho absorvido bastante daquilo que se faz.

Tens o exemplo dos Supa Squad — que têm um contributo directo no teu álbum — que trazem uma sonoridade meio mestiça. É música urbana, mas tem aqueles condimentos mais exóticos à mistura.

Essa minha preocupação, de me manter actual e relevante nos dias de hoje, passa também pelo conceito que eu tenho no álbum, de mexer muito com o tempo. Às vezes é complicado para as pessoas do outro lado perceberem que o artista tem de se reinventar. Eu não posso passar 25 anos da minha vida a fazer a mesma coisa. É essa reflexão e essa ideia de tempo — do que eu fui, do que eu sou e do que eu serei. Esse espectro. Tens, por exemplo, a música “O Verdadeiro”, com os Black Company, mas depois coisas mais actuais já a piscar o olho ao futuro. Esse conceito acaba por se reflectir também nos nomes que eu chamei, que também abarcam esse leque.

Quando tu lançaste o Patrão, eu tinha ficado com a ideia de que o EP seria, digamos, “metade” deste novo álbum. Ou seja, que o A Vida Continua… iria conter os temas do Patrão na íntegra. Era essa a tua ideia inicial também, tendo depois optado por escolher alguns temas mais recentes vindos do teu processo?

Voltando um pouco atrás: eu, quando ia lançar o Patrão, ia lançar apenas um single. Uma música só. “Epá, é esta? É aquela?” Eu já tinha a big picture. Mas é complicado para as pessoas perceberem o que é o álbum quando eu estou a apresentar uma música. E se há coisa que eu sei, que muitas vezes pode dar azo a más interpretações, é que uma música pode acabar por conotar um álbum todo. Sendo que a música faz parte do álbum mas a música não é o álbum. Durante esse processo de escolhe e não escolhe, acabei por ter essa ideia de “porque é que não faço um EP?” Algo que eu nunca tinha feito. Mesmo a questão de ser um EP apenas digital também acaba por ser essa tal actualização. Por muito que eu goste do suporte físico, a verdade é que o suporte físico é cada vez menos relevante. Neste processo — que foram seis anos a acumular ideias, músicas — eu se disser que tenho um álbum triplo parado [na gaveta] não estou a exagerar. Então tive de fazer uma selecção, porque eu tinha ideias muito concretas daquilo que eu queria fazer com este álbum. Para além dessa questão do tempo, eu queria fazer um álbum curto. De certa forma, minimalista. Sempre com aquela ideia do “menos é mais.” Aliás, o “menos é mais” até foi um dos nomes que esteve a ser equacionado para servir de título para o álbum. Queria fazer — não de uma forma declarada, mas as pessoas mais atentas notam isso, porque já tive esse feedback — uma homenagem às pessoas que me inspiram no hip hop. Aos produtores. Dou-te um exemplo específico: a pessoa que ouve o “Diabo Na Terra”, “epá, isto soa bué a Dr. Dre, uma cena meio West Coast.” Eu digo “mas é exactamente essa a ideia.” Não é copiar, no sentido de “esta é a ambiência que eu quero.” Tens outros sons que podem fazer lembrar Pete Rock ou uma linguagem do J Dilla. É no sentido em que acaba por ser essa homenagem que eu dizia, desses nomes e de outros, bem como de coisas mais recentes. Acabou por fazer sentido assim. Para resumir a tua pergunta: achei que não faria sentido, num álbum de doze músicas, dar sete. Para isso, mais valia fazer outro EP, em vez de um álbum. Custou-me bastante. As músicas que ficaram de fora, gosto tanto delas… Na verdade, da forma como eu idealizei as coisas, elas continuam a fazer parte do álbum. Embora não estejam fisicamente no álbum. O “Queque Foi” correu bem, foi o single, foi a música com mais visibilidade. Acabei por achar, por bem, não a incluir porque assim acho que o EP vive por si próprio. O EP, na minha cabeça, é um álbum. Este é o meu sexto álbum mas, na verdade, eu tenho sete ou, na pior das hipóteses, seis álbuns e meio. É uma experiência que quero repetir em breve. E, tal como disse, tenho tantas músicas de parte que eu acho que conseguia lançar três ou quatro EPs assim no espaço de um ou dois meses. [risos]

 



Quando o “Queque Foi” e o “É Pa Ganhar” entram no EP e ficam de fora do álbum, dá mesmo aquela ideia de que o Patrão foi lançado numa de “eu estou aqui.”

Isso foi propositado.

O disco, ao não englobar todas as faixas do EP, ganha aquela conotação de álbum “clássico”. Com um enredo muito diverso e com várias temáticas abordadas.

Essa leitura é correctíssima. O EP, por toda a sua envolvência… O nome Patrão é um statement. É uma afirmação. É tipo “pumba. Cheguei, estou aqui e acabou-se a palhaçada.” Até a própria temática da “Queque Foi”, que apesar de parecer uma música “pesada” não o é. É para a geral. Ainda por cima agora, que estão tão na moda os beefs, eu recebo imensas perguntas: “mas a música é para o ‘x’ ou para o ‘y’?” A música não é para ninguém. É assim: se serviu [a carapuça] é porque é para ele. Agora, se foi feita especificamente para alguém? Não. Eu não queria neste álbum… Penso que é um álbum muito pessoal, com uma visão mais madura da vida, para mim não fazia muito sentido ter a linguagem do “Queque Foi”, porque não é aquilo que eu quero passar. No sentido em que sim, faz parte, é uma mensagem super actual e que vai continuar a ser actual, porque a verdade é que há sempre pessoas dispostas a falar mal de uma forma gratuita. A música não foi feita a pensar nas pessoas que não gostam, atenção, é para as pessoas que falam à toa por uma razão ou por outra. “Porque dantes é que era” e não sei o quê. E depois não ouvem [o disco]. Porque eu já tive conversas com pessoas que me dizem “eu gostava mesmo era quando tu fazias as cenas assim e assado e já não fazes músicas assim e assado.” Eu dizia “ouviste o álbum?” “Epá, não, ouvi o ‘Sexta-Feira’ e não gostei.” “Mas ouve o álbum! Até podes não gostar mas fala com consciência. Ouve primeiro e depois até podes chegar a outra conclusão.” Assim sendo, o Patrão foi como quem diz “pumba. Estou aqui e vem aí álbum novo.” Para mim, fez todo o sentido estas músicas terem ficado de parte e fazem com que o EP viva por si só. Porque se eu pusesse todas as músicas no álbum o EP deixava de existir.

Tu no álbum passas por diversos momentos diferentes, tanto ao nível da escrita como da música. Tu tinhas algum enredo na tua mente quando começaste a desenvolver estes temas, ou fizeste as canções primeiro e só na fase de escolha do alinhamento final é que pensaste nisso?

Sempre houve um conceito. Até porque eu fui coleccionando ideias mas, de uma forma geral, estas músicas são todas muito recentes. Eu dou-te um exemplo: a última música a ser gravada foi o “Diabo Na Terra” e parte de uma ideia que eu já tinha há quarto ou cinco anos. Tinha a ideia mais ou menos do que eu queria fazer, tinha parte da letra, mas só agora nos últimos meses é que eu me concentrei a pensar… E foi uma tarefa difícil para mim. Porque depois de meter o álbum cá fora, as pessoas se calhar não têm essa noção, mas é muito complicado… “Ponho esta, não ponho esta?” Mas depois o que é que acontecia — e tem acontecido em todos os álbuns com excepção deste? Eu acabo por ter músicas que não quero deixar de fora e depois ficam álbuns muito grandes, nesta fase em que as coisas são consumidas de uma forma tão rápida, tão voraz. Eu preferi fazer um álbum curto, conciso, com uma mensagem muito clara e, se for preciso, faço o A Vida Continua… 2.

Como é que tu, a partir do sample da Tonicha, partes para aquele conceito que abordas n’”A Bala”? A mim fez-me lembrar, não sei se tens em mente, o videoclipe da “Freak On a Leash”, dos Korn.

Só para te corrigir: o sample é da Simone de Oliveira e não da Tonicha, ainda que ambas tenham versões da mesma música. Aquilo começou assim: eu fiz, em 2010, uma música com o Miguel Gameiro que se chamava “O Homem E A Bala”, que não tinha absolutamente nada a ver com esta versão final, mas que já tinha o primeiro verso. Eu gostei tanto daquele conceito que acabei por escrever o resto da letra, porque pensei “isto merece uma música por si só.” Entretanto fiz a música, em demo, mas tinha um sample do Django Reinhardt para o qual não consegui autorização. E eu cada vez mais prefiro samplar o que é “nosso”. A lusofonia, música portuguesa, etc. Pus-me em campo à procura de alternativas para aquela letra, porque eu sabia que quando ouvisse o sample certo seria aquilo. Em conversas na net com um produtor que é o Kooltuga — ele estava a dar-me os parabéns, que já me seguia e que gosta muito da forma como eu tenho, desde o início, incorporado [na minha música] coisas portuguesas como Madredeus, Vitorino, etc. — eu disse-lhe que tenho uma série de coisas, de músicas, que tenho paradas numa pequenina pasta — que já não é assim tão pequenina, tem umas centenas de músicas — que diz “para samplar.” Ele disse-me “olha, vou-te mandar aqui umas coisas que eu tenho.” Parece que ele, pelo que me diz, tem um stash… Aquilo já não é o diggin’ in the crates, é um diggin’ in the crates digital, não é propriamente andar pelos vinis. Ele enviou-me uma pasta, eu estou a ver as coisas e, assim que ouço passar aquela música e entra “Cada dia que se passa vou riscando com mais uma cruz.” “É isto, não mexe. É exactamente isto.” Tanto que entre o eu ouvir a música original e fazer o beat completo não deve ter passado mais do que uma hora. Foi o casamento perfeito.

Neste álbum também noto que tens uma proximidade muito especial com as tuas origens, numa das faixas com os Supa Squad e na outra em que samplas os Ferro Gaita. É algo que passa pela tua cabeça, aproximares-te cada vez mais desse registo de morna, funaná?

Acho que mais próximo é difícil. Eu tenho estado sempre próximo. Até porque, se tu fores ver, há uma constante em todos os meus álbuns, sem excepção, de ter uma música em crioulo. Essa parte assumidamente das ilhas sempre esteve lá. E quem sabe um dia fazer um álbum todo em crioulo. Neste momento tenho músicas suficientes, com as coisas anteriores que fiz, para fazer um best of de Boss AC em crioulo.

E se há pouco estavas a falar de um stash de música portuguesa para samplar, quem sabe não organizas também um stash de música cabo-verdiana e fazes um álbum só a partir daí.

Mas eu também tenho. Eu quando te digo “música portuguesa” estou mais a referir-me a música lusófona na sua visão mais ampla e global possível.

Por norma, nos teus álbuns presenteias os ouvintes com uma música escondida nas edições físicas. Quando eu chegar a casa e colocar este CD a rodar vou ter alguma surpresa no final?

Vais ter uma surpresa. Mas tens de o meter a tocar. [risos]

Para terminar, gostava que me abordasses os momentos finais do A Vida Continua…, no qual dedicas uma música ao DJ Bernas e terminas com uma colaboração entre vocês. Foi algo que sentiste instantaneamente, que “tinhas” de lhe prestar uma homenagem depois de tudo o que aconteceu?

Eu pensei muito sobre pôr essa música no álbum, precisamente para me esquivar dessas perguntas. Essa é a música que mais me custou gravar em toda a vida. Porque a música não foi pensada para ser editada, foi uma espécie de catarse, de exorcismo, de descarga. Porque estava tudo muito fresco. Por uma série de razões, cheguei à conclusão que a queria usar e ainda bem. Continua a ser um soco no estômago — é uma música que me toca muito — mas que já consigo ouvir com muito mais paz do que quando a fiz. E essa música tem a particularidade de ter sido feita, escrita e gravada toda no espaço de, sei lá, três ou quatro horas. Um take. O que está lá é o que está lá. Inclusivamente acho que até há lá frases em que a dicção se calhar nem está muito bem ou um bocado fora de tempo, mas eu quis assumir aquilo tal como eu o senti.

 


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