Veterano incontornável da cena jazzística norte-americana, Bob James nasceu em 1939, no Missouri, e construiu uma carreira de mais de seis décadas marcada pela versatilidade e pelo cruzamento de linguagens musicais. Pianista de formação clássica, cedo se destacou pela sua sensibilidade para o jazz e pela capacidade de dialogar com diferentes estilos, da música erudita ao funk, passando pela soul, pela pop e pelas bandas sonoras.
James começou a ganhar projecção no início dos anos 60, tocando com Sarah Vaughan, antes de se tornar num dos músicos e arranjadores de estúdio mais requisitados em Nova Iorque. A sua carreira discográfica como líder arrancou verdadeiramente nos anos 70, quando assinou com a CTI Records, sob a orientação do produtor Creed Taylor. Foi nesse contexto que surgiram dois dos seus álbuns mais marcantes: One (1974) e Two (1975).
Em One, Bob James deu corpo a uma sonoridade singular que fundia jazz, groove funk e arranjos orquestrais carregados de imaginação. O tema “Nautilus” tornou-se não apenas uma peça de culto do jazz de fusão, mas também uma das faixas mais sampladas na história do hip hop, reaparecendo em discos de artistas como Eric B. & Rakim, Run-D.M.C., A Tribe Called Quest, Ghostface Killah e Wu-Tang Clan. Já em Two, seria a vez de “Take Me to the Mardi Gras” se transformar num clássico absoluto das pistas e do sampling, um dos “breaks” mais utilizados por DJs e produtores, dos Run-D.M.C. a A$AP Rocky, entre tantos outros.
A influência de Bob James transcende o jazz: as suas composições e gravações moldaram a estética do hip hop dos anos 80 e 90, tornando-o uma referência inesperada para gerações mais novas. Ao mesmo tempo, a sua carreira seguiu um percurso de enorme diversidade, com trabalhos em estúdio, bandas sonoras para cinema e televisão (entre elas, a célebre abertura da série Taxi), colaborações em ensembles de jazz, álbuns a solo e ainda a formação do grupo Fourplay, um dos mais populares quartetos de smooth jazz/fusion dos anos 90 e 2000.
Hoje, Bob James continua activo, gravando, colaborando e, sobretudo, actuando ao vivo com a mesma energia e curiosidade que sempre pautaram o seu percurso. No próximo dia 31, apresenta-se no Auditório de Espinho Academia, trazendo o seu quarteto para uma noite em que revisita momentos fundamentais da sua obra e reafirma a sua visão de que, no jazz, “a verdadeira emoção está no desconhecido”.
É um grande prazer poder falar consigo. Sou um admirador de longa data e estarei em Espinho no dia 31 para assistir ao concerto. Espero poder cumprimentá-lo pessoalmente.
Muito obrigado. Espero ter uma mão enérgica para lhe apertar, porque a nossa agenda vai ser bastante intensa na próxima semana. Estou muito entusiasmado, embora estejamos a tocar em diferentes cidades e países praticamente todos os dias. É uma aventura que me entusiasma, mas também espero manter-me com boa saúde quando nos encontrarmos no dia 31.
Tocando noite após noite, viajando entre clubes e teatros em diferentes países, quais diria que são as maiores alegrias e os maiores desafios da vida na estrada com o seu quarteto?
O maior prazer são aqueles noventa minutos em palco, a tocar para o público. Não tenho outros passatempos: a música é a minha vida. Aos meus anos 85 anos, posso e devo dizer que me sinto abençoado por ainda ter os dedos e a mente a funcionar de forma a poder comunicar através da música. Claro que as viagens são difíceis — os horários, os voos atrasados, todos os imprevistos que acontecem. Mas tento cuidar de mim, ajustar o ritmo do dia. Se tenho de me levantar às três da manhã para ir para o aeroporto, procuro descansar mais tarde e recuperar o sono.
Quando prepara um concerto ao vivo, como equilibra a improvisação com a estrutura? Até que ponto os arranjos estão definidos e quanto espaço deixa para a espontaneidade?
Esse equilíbrio é talvez o que mais gosto de explorar. Escolho sempre músicos que saibam lidar bem com a combinação de estrutura e improviso. A estrutura dá-nos um ponto de partida e um destino a onde regressar, mas a verdadeira emoção está no desconhecido, no que acontece de forma imprevisível. É isso que distingue o jazz e é aquilo que mais me motiva em palco. Não gosto de fórmulas demasiado previsíveis, como aconteceu com o chamado “smooth jazz”, que muitas vezes se tornou música automática e confortável. Prefiro surpreender, levar o público a lugares inesperados, até para nós próprios. Mas para não cair no caos, é claro que também trabalhamos arranjos e pontos de regresso dentro dessas estruturas.
E no quarteto que traz nesta digressão, como escolheu os músicos?
Sempre considerei o trio (piano, contrabaixo e bateria) o maior desafio para um pianista de jazz. Mas, ao longo da carreira, colaborei muitas vezes com saxofonistas e guitarristas. Cada álbum trouxe formações diferentes, e claro que não é possível representar tudo num só concerto. Nos últimos tempos, optei por apresentar-me em quarteto, com saxofone. O saxofonista que escolhi é o ucraniano Andrey Chmut, que se tornou não só um parceiro musical de excelência como também um grande amigo. A sonoridade do grupo, que inclui ainda o James Adkins na bateria e o Michael Palazzolo no contrabaixo, alterna entre o trio clássico e o diálogo entre piano e saxofone, o que me permite revisitar várias peças do meu repertório. Quando penso no formato de quarteto, recordo sempre o modelo de Dave Brubeck com Paul Desmond. Não tocamos o mesmo tipo de música, mas a ideia de interação é semelhante: Andrey a assumir o papel de “voz” solista e eu a responder, tal como Brubeck e Desmond faziam.
Ao longo de décadas foi sideman, assinou bandas sonoras, criou ensembles e fez álbuns a solo. Fez muita coisa, mas qual diria que foi o momento mais marcante da sua carreira?
Houve um momento decisivo que me foi revelado pela minha esposa, Judy. Eu partilhava com ela a frustração de não me ter dedicado exclusivamente ao jazz, de talvez não ter explorado a fundo a minha faceta de pianista de jazz. E ela disse-me algo fundamental: “Bob, isso não é quem tu és.” Desde a escola secundária e a universidade, sempre fui eclético. Gostava de teatro musical, de música clássica, de diferentes estilos e ritmos. E isso refletiu-se nos meus discos, que são diversos, sem uma só etiqueta. O conselho dela foi: “Não peças desculpa por isso, sê fiel a ti mesmo”. Ainda hoje lhe agradeço por me ter apontado esse caminho.
O álbum One é hoje celebrado pela fusão de jazz, funk e até música clássica. Conseguiu perceber, quando o disco saiu, o impacto que teria em gerações futuras?
Muito desse resultado deve-se a Creed Taylor, o produtor e presidente da CTI Records. Eu trabalhava sobretudo como arranjador e músico de estúdio, e ele sugeriu que fizesse um álbum em nome próprio. Muitas das escolhas de repertório vieram dele, porque acreditava que pegar em temas clássicos e entregá-los a músicos de jazz poderia ser algo especial. Na altura, não via esse disco como o início de uma carreira de solista, mas como uma espécie de portfólio para conseguir mais trabalho como arranjador, era o meu cartão de visita quando me perguntavam aquilo que eu sabia fazer. Por isso mesmo, nunca imaginei o impacto que One teria. O sucesso de faixas como “Night on Bald Mountain” e da minha versão de “Feel Like Making Love” mudou radicalmente a minha vida.
E o tema “Nautilus”, que aparecia a fechar o alinhamento, foi amplamente samplado no hip hop. O que significa isso para si?
A minha primeira reação foi de choque. Não entendia porque razão a minha música poderia ter relevância naquele universo. Quando o rap e o hip hop começaram, confesso que não prestei muita atenção, não era o meu mundo. Mas o facto de produtores diferentes, repetidamente, me procurarem para pedir licença para usar excertos de “Nautilus” e também de “Take Me to the Mardi Gras” obrigou-me a levar o fenómeno a sério. Com o tempo, percebi que havia ali uma ligação que eu próprio não tinha previsto. Mais recentemente, experimentei colaborações diretas com artistas de hip hop, como Jazzy Jeff ou RZA dos Wu-Tang Clan, sobretudo para tentar perceber se seria possível criar em tempo real, e não apenas por sampling. Foi uma experiência interessante, mas a verdade é que o meu lugar de maior felicidade continua a ser o jazz. Ainda assim, sorrio sempre que alguém quer voltar a usar “Nautilus”.
Falando do presente, como vê o papel de um pianista e compositor de jazz num mundo de streaming e absoluta mistura de géneros?
Sinto-me, antes de mais, grato por ainda poder tocar e ter público. Ver salas cheias continua a ser uma emoção enorme. O panorama mudou profundamente com o streaming e o sucesso de plataformas como Spotify ou Apple Music. Para a minha geração, que cresceu no tempo do LP e depois do CD, é um desafio compreender estas transformações. Por isso simplifico: concentro-me em continuar a tocar da melhor forma possível. Há também a tendência de colocar etiquetas nos músicos: “smooth jazz”, “jazz”, “pop jazz”. Sempre rejeitei essas classificações. Prefiro a liberdade de poder, no espaço de um só tema, passar do clássico ao funk, sem amarras. O que me entusiasma é precisamente saltar fora da caixa e criar algo imprevisível.
Vai tocar em Espinho, num auditório ligado a uma escola de música. Muitos alunos estarão presentes. Que conselho dá a jovens músicos?
Não existem respostas fáceis. Sinto até alguma frustração por não ter passado tanto tempo com estudantes como gostaria. Tenho enorme respeito pelo mundo do ensino e recordo-me bem da influência que os meus professores tiveram em mim. O conselho mais simples que posso dar é: sejam vocês mesmos. É muito tentador para um jovem querer imitar o artista que mais admira. Mas só há um Keith Jarrett, só há uma Taylor Swift. Quem tenta ser igual nunca será mais do que uma segunda versão. O verdadeiro desafio é descobrir a sua própria voz, ser a versão mais autêntica de si mesmo. Isso não é imediato. Eu próprio só percebi tarde que tinha um “som” reconhecível. Só quando outros começaram a dizer-me que me identificavam pelo toque é que percebi. Desde então, tento sempre ser natural e verdadeiro comigo próprio.
E qual é a diferença que sente entre tocar na Europa e nos Estados Unidos?
Sinto sempre diferenças subtis entre os públicos. Ontem, em Londres, percebi imediatamente um certo “carácter britânico” na forma de reagir, no aplauso, nos gestos. Cada país tem essa particularidade. Não conheço tão bem a cultura portuguesa, mas espero sentir algo único em Espinho. Adoro essas diferenças. Até o som das palmas muda de país para país. E é um privilégio poder partilhar a minha música em tantos lugares do mundo. Essa diversidade cultural é, sem dúvida, um dos grandes destaques da minha vida.