Há discos que se anunciam. E há discos que se fecham por dentro. Do Not Disturb não pede silêncio: impõe-o. Não como ordem, mas como condição de escuta. É um disco que parece ter sido escrito à porta de um quarto — em que aquele aviso pendurado na maçaneta não serve para afastar o mundo, mas para proteger algo frágil que está a acontecer lá dentro.
Bloom, projecto assumidamente paralelo de JP Simões, nunca foi um exercício de estilo nem uma fuga. Foi, desde o início, um território de suspensão. Um lugar onde a língua inglesa não funciona como cosmética internacional, mas como ferramenta de distanciamento emocional. Cantar noutra língua é, aqui, uma forma de olhar para dentro sem o peso imediato da autobiografia directa. É uma escrita oblíqua, lateral, mas não menos íntima.
Neste terceiro e último disco de Bloom, essa obliquidade torna-se maturidade. Não há urgência, não há demonstração, não há ansiedade de época. Há, antes, uma consciência muito clara do que é essencial: voz, palavra, timbre, respiração.
Uma das decisões mais reveladoras deste álbum é também a mais silenciosa: não há bateria. Num tempo em que o pulso é rei e o ritmo governa a atenção, JP Simões escolhe retirar o chão rítmico convencional e deixar a música flutuar. O tempo, em Do Not Disturb, não é marcado: é habitado. A ausência de bateria não cria vazio; cria espaço. O contrabaixo — aqui tocado por Pedro Pinto — não ancora, antes sugere gravidade. As guitarras, os teclados, o piano, os sopros e as texturas surgem como móveis colocados com extremo cuidado num quarto pequeno: nada sobra, nada distrai.
Há aqui uma orquestração notável, não pelo excesso, mas pela contenção. Cada timbre é escolhido pela sua capacidade de dizer algo que a palavra já não consegue. O arranjo não ilustra a canção; dialoga com ela, por vezes contradiz-a, por vezes protege-a. Este é um disco feito de decisões lentas. E isso ouve-se.
A voz de JP Simões sempre foi um instrumento narrativo. Mas aqui há algo diferente: uma aceitação plena da idade da voz. Não no sentido biológico, mas estético. Esta voz já não precisa de provar nada. Não se estica para alcançar juventude nem se disfarça em ironia. Assume as pequenas rugosidades, as hesitações mínimas, o grão que só aparece quando se viveu o suficiente para não esconder o que falha. Há momentos em que a voz quase se retira, deixando que o arranjo termine a frase. Outros em que surge frontal, mas nunca teatral. É uma voz que fala baixo, não porque não tenha força, mas porque confia no ouvinte.
Musicologicamente, este é um trabalho de grande subtileza dinâmica: poucas variações bruscas, mas micro-movimentos constantes. A expressividade não vem do volume, mas da inflexão — do modo como uma sílaba cai ligeiramente antes do tempo esperado; do modo como uma frase não fecha completamente, deixando o pensamento suspenso.
As canções de Do Not Disturb funcionam como miniaturas filosóficas. Não contam histórias fechadas; oferecem situações morais, emocionais, existenciais. Há personagens recorrentes — Johnny, Michele, figuras que parecem deslocadas no tempo — mas nunca se tornam protagonistas clássicos. São antes espelhos imperfeitos, fragmentos de consciência. Como se cada canção fosse uma página arrancada de um caderno maior que nunca veremos inteiro.
Liricamente, JP Simões escreve com uma economia rigorosa. As frases são simples, mas não simplistas. Há um equilíbrio raro entre ingenuidade aparente e densidade conceptual. A infância, o amor, o fim do mundo, a solidão, o desejo de cuidado — tudo surge sem cinismo, mas também sem sentimentalismo fácil. É aqui que a maturidade literária do autor se revela de forma mais clara: saber quando parar de explicar.
Há um subtexto político e civilizacional em Do Not Disturb, mas nunca explícito. O mundo aparece como ruído de fundo, como ameaça difusa, como cansaço colectivo. Não há slogans, não há denúncia directa. Há, sim, uma sensação persistente de fim iminente — não necessariamente apocalíptico, mas emocional. Quando se canta que “o mundo está sempre a acabar”, não se fala apenas de guerras ou crises. Fala-se da erosão lenta da delicadeza. Da dificuldade crescente em amar sem distracção. Da necessidade quase subversiva de parar. Neste sentido, o título do disco é profundamente político: não perturbar é um acto de resistência.
Em Do Not Disturb, cada canção funciona como um pequeno ecossistema: tudo o que entra altera o equilíbrio do conjunto. Não há elementos supérfluos. Um acorde a mais quebraria a tensão; um verso explicado em demasia destruiria o mistério. O disco vive dessa precariedade controlada — como um terrário sonoro onde cada gesto é irreversível. JP Simões escreve canções como quem escreve ensaios curtos sobre a condição humana, mas disfarçados de melodias simples. E é nesse disfarce que reside a sua força.
Sabe-se que este disco encerra o projecto Bloom. E isso sente-se. Não como nostalgia, mas como consciência de ciclo. Não há dramatismo de despedida; há serenidade. Bloom termina não porque se esgotou, mas porque cumpriu a sua função. Disse o que tinha a dizer. Criou um espaço onde a música pôde respirar fora das expectativas, das línguas habituais, dos formatos previsíveis. Do Not Disturb não é um ponto final. É uma porta fechada com cuidado.
Abrir o LP com “Mr. Nabokov’s Sleepless Night” é um gesto programático. A insónia, aqui, não é apenas biográfica ou narrativa; é epistemológica. Não dormir é não aceitar o mundo como ele se apresenta. É ficar acordado quando tudo convida à anestesia. Musicalmente, a canção avança com contenção extrema. Os acordes parecem medir cada passo. Há uma escrita harmónica que evita resoluções óbvias, criando uma tensão contínua — como uma mente que gira sobre si mesma sem descanso.
A referência literária não é decorativa. Nabokov surge como símbolo do rigor, da atenção obsessiva ao detalhe, da recusa do banal. A canção constrói-se como uma vigília: escutamos alguém que pensa demasiado, que observa demasiado, que sente demasiado. E a música acompanha esse excesso interior sem nunca o dramatizar.
“Michele” é uma das canções mais desarmantes do disco. Não por grandiosidade, mas por vulnerabilidade. Toda a letra se organiza em torno de perguntas simples, quase infantis — “Posso isto? Posso aquilo? Posso amar-te mais?” Do ponto de vista musicológico, é uma canção construída sobre repetição e ligeira variação. A harmonia não se impõe; acompanha. O arranjo é mínimo, mas profundamente expressivo. Cada repetição da pergunta não é redundante: é uma tentativa falhada de resposta.
Literariamente, estamos perante uma reflexão subtil sobre o amor como assimetria. Amar é perguntar mais do que afirmar. É oferecer-se sem garantias. A canção recusa a ideia de amor como posse ou destino; propõe-o como cuidado contínuo, como atenção persistente. A voz aqui é quase sussurrada, não por timidez, mas por respeito. Como quem bate à porta sabendo que pode não ser atendido.
Se “Michele” é o pedido, “The Breath of June” é a memória. Uma memória fragmentada, sensorial, cheia de cheiros, corpos, confusão moral. Junho surge como metáfora do limiar — entre infância e idade adulta, entre inocência e desejo. Musicalmente, esta é uma das peças mais ricas do álbum em termos de textura. Os arranjos expandem-se ligeiramente, mas nunca explodem. Há uma sensação de calor contido, de energia reprimida. A melodia avança como quem se lembra de algo que não sabe se quer recordar.
A letra oscila entre imagens quase cómicas e reflexões de fundo existencial. O humor convive com a melancolia. A adolescência não é romantizada; é apresentada como aquilo que é: confusa, excessiva, profundamente formativa. Aqui, JP Simões revela um talento raro: escrever sobre juventude sem nostalgia fácil. A memória surge como território instável, não como refúgio.
“Thank You For Some Very Lovely Days” é talvez o coração ético do projecto. Começa como uma canção de amor convencional e rapidamente se desvia. O mundo entra pela letra adentro, não como metáfora abstracta, mas como ameaça concreta. Musicologicamente, a canção mantém uma estrutura simples, quase tradicional, mas essa simplicidade é enganadora. Cada repetição do refrão altera subtilmente o seu peso emocional. O agradecimento deixa de ser celebração e transforma-se em inventário do que resta.
Literariamente, é uma reflexão poderosa sobre o amor em tempos de colapso. Não o amor como salvação, mas como último gesto de dignidade. Quando tudo acaba — ou parece acabar — resta agradecer os dias em que foi possível sentir algo verdadeiro. Não há cinismo aqui. Há lucidez.
O disco encerra-se com “We Kissed The Sky”, uma canção que fala de tentativa. Não de sucesso. Beijar o céu não significa alcançá-lo; significa tentar tocar o impossível, sabendo que se vai falhar. A sua base instrumental é uma peça de despedida perfeita. Não cresce em volume, cresce em densidade emocional. O arranjo mantém-se contido, mas a melodia abre-se, como se finalmente aceitasse a vertigem.
A letra fala de amizade, loucura, sobrevivência, imaginação. Há um desejo profundo de comunidade — não idealizada, mas necessária. O céu aqui não é transcendência religiosa; é possibilidade humana. A obra termina sem resolução triunfal. Termina com uma pergunta suspensa. E isso é coerente com tudo o que veio antes.
Do Not Disturb é um disco que continua a tocar depois de acabar. Não porque tenha refrões pegajosos, mas porque deixa resíduos. Ideias, imagens, pequenas frases que regressam dias depois. Bloom encerra-se aqui, mas JP Simões não fecha portas. Apenas muda de quarto.
Este é um disco raro porque confia no ouvinte. Porque acredita que ainda há espaço para a escuta lenta. Porque recusa o ruído sem precisar de gritar contra ele. Colocá-lo a tocar é um gesto simples.
Escutá-lo verdadeiramente é um acto de resistência.