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Fotografia: Luana Santos
Publicado a: 03/07/2023

Rumo ao desconhecido.

Black Top no TBA: entre a rave e o cosmos

Fotografia: Luana Santos
Publicado a: 03/07/2023

Pat Thomas e Orphy Robinson têm uma longa história juntos, mas gostam de a renovar – perturbar? – regularmente convidando para as suas apresentações elementos externos capazes de adicionar à sua fórmula de livre improvisação (uma contradição, talvez…) uma dose extra de invenção e imprevisibilidade, algo que os force a buscarem novos territórios, que os provoque.

No passado, Thomas e Robinson cruzaram-se com gente tão diferente quanto Steve Williamson (veterano que escutámos em tempos mais recentes ao lado dos Sons of Kemet e cujo encontro com Black Top foi documentado em #One, disco lançado em 2014), Evan Parker (#Two, de 2015), a dupla Hamid Drake/William Parker (#Free3, 2018) ou, mais recentemente, Elaine Mitchener e, novamente, Drake e Parker (Some Good News, gravado ao vivo no Café Oto e lançado em 2021). (CDs de #Two e Some Good News e um álbum de Orphy Robison editado pela Blue Note em 1992, When Tomorrow Comes, na sua versão original em cassete(!), estavam, felizmente, disponíveis na banca de merchandising na passagem por Lisboa, na passada sexta-feira).

Para o “embate” lisboeta que teve lugar no Teatro do Bairro Alto, Thomas e Robinson desafiaram Rachel Musson, saxofonista e flautista que é parte do projecto Shifa juntamente com Thomas e o baterista Mark Sanders e em cuja discografia se registam ainda colaborações com gente como Ollie Brice ou Steve Noble, por exemplo. E julgando pelo resultado da “alteração” da “fórmula” que na passada sexta-feira, 30 de Junho, pudemos presenciar, seria mais do que desejável que os Black Top adicionassem à sua discografia uma gravação com a participação de Musson. E se fosse um documento desta apresentação lisboeta, não temos dúvidas de que estaríamos perante um álbum de elevada qualidade.

Não há mapa para a música dos Black Top, já que a ideia subjacente ao duo é, precisamente, a do encontro através de um instinto verdadeiramente exploratório, com cada um dos músicos a partir de um lugar – e de um som – muito diferente, com o simples objectivo de chegarem a algo que não imaginariam existir. 

Orphy Robinson usou o vibrafone, uma caixa de ritmos e o que soou como um “thumb piano” altamente processado com pedais de efeitos, produzindo constantes cascatas harmónicas em que os outros dois músicos se iam banhando e obrigando a inflexões de direcção de cada vez que conjurava ecos de raves com ritmos pré-programados que se alargaram das cadências hip hop ou de vaga afiliação dancehall a mais nítidas marcações techno.

Pat Thomas, por seu lado, oscilou entre a chuva de estrelas digitais extraída do iPad, com drones ou centelhas de multiplicidade tímbrica a envolver-nos em densa nuvem electrónica, e um piano que não se conforma com idiomas e facilmente vai do ragtime a John Cage, do jazz aos blues, da abstracção pura à mais tocante e poética frase melódica, sem nunca se deter demasiado em nenhum terreno, como se fosse capaz de flutuar sobre a história, as linguagens, as tradições, numa busca constante de uma linguagem própria. Com o seu habitual “martelar” que tem qualidades hipnóticas ou debruçado sobre a caixa aberta do piano para tocar directamente nas cordas, Thomas foi sempre exuberante e generoso na música que ofereceu aos companheiros e à audiência.

Finalmente, Rachel Musson é saxofonista de alma funda, capaz de soar invariavelmente inventiva no tenor, no soprano ou nas flautas, mais próxima de tradições pós-bop e free do que os seus companheiros, mas com liberdade q.b. no soprar que lhe permite sempre conjurar as mais felizes tangentes ao que os seus companheiros lhe atiram para dentro dos ouvidos.

Nítida e importante é a capacidade partilhada pelos três músicos de se escutarem mutuamente, de responderem à velocidade do som aos estímulos que cada um oferece e que facilmente nos carregam das Caraíbas até Andrómeda ou de Nova Orleães até à Londres pós-colonial, onde tudo é possível e o espaço que existe entre o que acontece no Café Oto e o que debitam os sistemas de som que se digladiam no Carnival de Nottingham é praticamente infinito.

O relógio marcou uma hora, mas o portal cósmico que a música dos Black Top com Rachel Musson escancarou obrigou à obliteração da noção de tempo, ao ponto de se ficar com a sensação de se ter viajado durante o concerto entre a África primordial e um lugar novo e distante que nem a mais prodigiosa imaginação ainda alcança. Ninguém sabe onde é, mas passámos todos por lá na sexta-feira.

Uma palavra de apreço final para a inteligente e muito civilizada decisão de programar concertos às 19h30: por estes dias, a oferta de espectáculos em Lisboa tem feito transbordar o copo que está quase sempre meio cheio e que durante tanto tempo nos habituámos a ver praticamente vazio. E isso alarga a possibilidade de se circular entre espaços e eventos, construindo novos percursos numa Lisboa sobrelotada, mas que, ainda assim, ainda é capaz de revelar semi-secretos lugares novos a quem há tanto tempo por cá anda.


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