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Publicado a: 16/06/2018

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[TEXTO] Moisés Regalado

2018 é, oficialmente, o ano dos veteranos. A “tendência” ganhou visibilidade ainda em 2017, com a edição de 4:44, e é impossível ignorar a corrente de discos editados por MCs da “velha guarda” desde então. A ausência de barreiras, também na idade, sempre foi uma das características mais louváveis do movimento, mas a recente (e crescente) massificação do rap e a sua longevidade saudável serão factores de algum relevo a ter em conta. Agora é a vez de Black Thought, vocalista dos lendários The Roots e auto-intitulado “The Talented Mr. Trotter”, título de um dos vários projectos que planeou (e não lançou) ao longo dos últimos vinte e cinco anos.

Aqui não há banda e o homem do leme é 9th Wonder. Apesar de cada vez mais dedicado ao papel de editor, continua a ser o mesmo produtor que, há já largos anos, revolucionou a sonoridade de um estilo a partir do seu computador com Fruity Loops — só que em constante tributo aos pioneiros da MPC. Os instrumentais com que alimentou Streams of Thought renovam-lhe as credenciais e reforçam as qualidades que sempre lhe foram reconhecidas, incluindo a capacidade de se adaptar a quem o acompanha e, em simultâneo, de piscar o olho aos melhores da história, nos quais se inclui, preservando a identidade que o acompanha desde a estreia dos Little Brother.

As refinadas produções de “Twofifteen” e “Thank You”, temas que balizam a tracklist, aproximam-se com distinção da soul food cozinhada na nave-mãe de Black Thought. “Making a Murderer” poderia ter entrado no mais recente disco de Styles P, MC recrutado pela dupla anfitriã para “trancar” a faixa, e não será de estranhar que “Dostoyevsky”, com a quase inevitável presença de Rapsody, coqueluche da Jamla Records de 9th Wonder, remeta imediatamente para o estilo mais clássico de DJ Premier. “9th vs. Thought” acaba por ser o único reflexo do ego dos autores, num momento dedicado apenas e só à procura do melhor instrumental e das melhores rimas possíveis, sem qualquer tipo de preocupação extraordinária mas sem nunca perder a simbiose que serve de fio condutor ao EP.

Ao contrário de Jay-Z ou, em território nacional, Boss AC, que abdicaram das métricas feitas a régua e esquadro em prol de uma técnica mais orgânica e em função de um conjunto mais harmonioso, Black Thought agarrou-se ao caderno e foi a partir do seu laboratório que se deu o mote para que o álbum visse a luz do dia. Sucedem-se as rimas múltiplas, ouvem-se as respirações — mas a entrega não vacila — e quase não há espaço para refrões (a excepção é “Thank You”). O freestyle serve de combustível mas é nas referências escolhidas para esculpir as palavras que nascem os mais belos sopros deste primeiro capítulo de Streams of Thought.

Não há produções futuristas ou arrojadas, canções estruturadas ao milímetro ou adlibs com destaque semelhante ao das dicas e com igual importância para o conjunto — e está tudo bem. Nada mais será preciso quando Black Thought, sem dentes de ouro mas com flow de platina, recita poesia de semelhante calibre:

“You gossip on Jay and Beyoncé or Kim and Kanye
But keep risin’ to the top, what my mind say
Picture my daughter drinkin’ water with a sign
Say “For colored girls,” I ain’t talkin’ Ntozake Shange”

ou

“Rollin’ out of the dealership in a McLaren
These rappers is Peter Pan, I’m Pan-African
Space invader blackin’ ‘em
Mixin’ Alexander McQueen with Haider Ackermann”

Não obstante a forma e o conteúdo que Black Thought e os The Roots sempre exibiram, acaba por ser curioso que um rapper tão habituado ao mais alto patamar do mediatismo norte-americano, a propósito da colaboração da sua crew/banda com Jimmy Fallon, consiga desfilar com uma acutilância e um descomprometimento tão genuínos como brilhantes. A proposta pode não parecer ambiciosa, mas não vale a pena avançar para longe quando faz mais sentido parar e reflectir. E para Black Thought, habituado a trabalhar com a companhia e o acompanhamento de uma banda, terá sido esta a sua viagem para fora da caixa (ou para longe da zona de conforto). O universo hip hop agradece, aplaude e aguarda impacientemente pelo segundo volume.

 


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