[TEXTO] Moisés Regalado
Em quatro anos muito muda e não haverá mesmo maior desafio do que manter tudo como estava. Assim espera quem ouve Black Milk ou outros de semelhante ginga como Elzhi, Blu e Oddisee, artistas vincadamente soulful que não dependem da metamorfose do estilo ou dos impulsos do mercado para sobreviver. E a definição de soulful resume FEVER, novo trabalho do artista de Detroit, com bastante precisão: “Expressing or appearing to express deep and often sorrowful feeling; the quality of “having soul”, often used in the context of a performer or a work in soul music“.
Black Milk chega ao novo disco numa versão ligeiramente diferente de si próprio, apesar de preservar o traço original, e a grande diferença, como tantas vezes acontece, reside no detalhe. Desde os primórdios que a sua obra bebe nas mais diversas fontes da soul, do r&b e do rock, dando vida a beats e versos icónicos como “Shut It Down”, “Losing Out” ou “Sound the Alarm”. O recém-nascido FEVER, por sua vez, assume a ambição de começar na soul — com alma e desde a raiz, portanto — para só depois passar ao rap e ao hip hop.
Os inevitáveis samples ainda respiram. Também há trompetes, guitarras e teclados. Baterias e percussão ficaram a cargo de Chris Dave e Daru Jones, sempre sob a batuta do experiente rapper, aqui a assumir também como “maestro”. Sucedem-se as visitas aos estilos supracitados e não só: “Could It Be” e “Will Remain” avançam pelos terrenos em que Anderson .Paak se tem movido mas ficam aquém, remetendo para a house music “ligeirinha” que se ouve numa qualquer esplanada ou centro comercial. O conjunto não reflecte as partes em questão e são momentos como “True Lies” ou “Drown” a ditar o tom: linhas de baixo dignas de aplauso, instrumentos e sampler em harmonia e sixteens esculpidas ao pormenor.
Como tantos MCs que também produzem, Black Milk não pega no caderno para complicar. O conteúdo continua focado na crítica à ostentação e à perda de valores e a concretização, igualmente descomplicada, só lhe acrescenta brilho. O recurso a dicotomias permanece como um dos seus pontos fortes (basta lembrar “Sunday’s Best/Monday’s Worst”) e é desse tipo de exercícios que florescem “Laugh Now Cry Later” e “You Like to Risk It All/Things Will Never Be”, dois dos melhores temas de FEVER.
Será escusado assinalar as suas evidentes qualidades como beatmaker, mas os dotes de Black Milk enquanto produtor, no mais amplo sentido da palavra, merecem o escrutínio. Tudo parece funcionar (ou, melhor dizendo, funciona mesmo) mas a mão cheia de instrumentos que aqui predomina acaba por soar a pouco. Chega a sentir-se falta de uma produção mais solitária, menos orgânica até, desde que merecedora do detalhe que sempre lhe caracterizou o cancioneiro e que aqui lhe escapou.
FEVER, apesar de sólido, foi um desvio que se mostrou incapaz de acrescentar relevância ao percurso que o rapper vinha trilhando sozinho — talvez com a companhia do seu arquivo infinito de samples, baixos, sintetizadores e baterias. Voltando à definição de soulful, Black Milk sabe expressar-se com excelência — e não é de agora –, só que nesta empreitada parece ter-se ficado pela tentativa. Se o seu objectivo era encontrar o melhor da música soul e da respectiva expressão cultural, não valia a pena: há muito que conseguiu semelhante feito. Porém, FEVER, sem subir a fasquia e apesar de não cumprir o que promete, continua a ser uma boa montra para as suas qualidades.