E mesmo no final, depois de uma estrondosa apresentação da Fire! Orchestra, escutou-se uma tocante versão de “At Last I Am Free”, um clássico absoluto de Robert Wyatt. Chegou assim ao final, no passado domingo, a 40ª edição do Jazz em Agosto, com o público que esgotava por completo o Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, enredado num doce e melancólico manto musical tecido ao longo de mais de uma hora por um colectivo em franco estado de graça.
Programar um festival desta natureza não se resume a fazer uma lista de nomes, contratá-los e distribuí-los por diferentes dias consoante as suas respectivas agendas. Talvez os espectáculos de abertura e de fecho sejam os primeiros a serem definidos — há que entender que o concerto inaugural deverá representar uma declaração de intenções, encaixar-se num propósito ou manifesto que possa eventualmente definir e sustentar o evento nesse ano. E o encerramento, de idêntica forma, deverá de alguma maneira rematar o trabalho entretanto realizado e também levantar já o véu sobre o futuro. Pelo meio haverá então oportunidade para satisfazer públicos de longa data, para arriscar arregimentar novas audiências, para testar os limites de um conceito — e é bem verdade que a questão inevitável “isto é jazz?” se ouviu após alguns dos concertos deste ano. Pode dizer-se que o concerto final não gerou dúvidas algumas. Quando os aplausos cessaram e as pessoas se dirigiram para a saída, os sorrisos de satisfação plena eram a marca dominante nos rostos que revelava haver zero perguntas. Nas palavras trocadas entre os presentes escutavam-se apenas unânimes certezas de que esta tinha sido uma escolha certeira para o encerramento de uma triunfal edição do festival.
O último dia de Jazz em Agosto começou, no entanto, ao fim da tarde. Com o Grande Auditório com o fundo de palco aberto expondo a magnifica janela para o frondoso jardim da instituição criou-se o cenário perfeito para a apresentação dos Black Duck de Douglas McCombs (guitarra e baixo eléctrico), Bil MacKay (guitarra) e Charles Rumback (bateria). Trata-se, pelo menos no papel, de um super power trio de Chicago, já que McCombs passou por Tortoise e Eleventh Dream Day, MacKay conta ligações a Broken Things e Sounds of Now e Rumback reserva no seu currículo entradas para Colorist ou Leaf Bird. E escrevo “no papel” porque esses consideráveis “pergaminhos” talvez apontassem numa outra direcção e fizessem esperar algo mais intenso, mas a verdade é que os Black Duck foram apresentar uma tranquila leitura da paisagem musical americana, um som de carregadas tonalidades folk, bluesy a espaços, com ecos do lado mais ambiental da cena surf.
Bill MacKay falou ao público em português correctíssimo e revelou que os músicos do trio estavam muito felizes por se estrearem finalmente no nosso país. De facto, os músicos, nas suas delicadas interacções, não escondiam o imenso prazer que retiraram do simples acto de tocarem em conjunto. E essa parte emocional deve de facto ser importante, uma vez que o grupo procura obter o máximo de uma lista algo limitada de recursos técnicos: o baterista tocou no kit mais modesto de todo o festival, com dois timbalões, tarola, bombo e dois pratos, que usou sempre com enorme parcimónia para daí retirar apenas as mais simples vibrações, qual vento a fazer ondular tranquilamente as folhas secas das árvores, sem força suficiente para as arrancar. Quanto aos guitarristas, ambos optaram por tocar os seus respectivos instrumentos com muito poucos “enfeites” extra, com processamento muito discreto que deixava as guitarras com som límpido e transparente. As intros planantes, por vezes a remeterem para uma estética algo “badalamentiana”, desaguavam sempre em tranquilos lagos melódicos, revelando-se aquela a música certa para o quadro de natureza viva que o trio tinha por cenário. Este concerto poderia integrar-se naqueles que podem ter levantado algumas questões sobre o seu encaixe num festival como o Jazz em Agosto, mas a música apresentada — nada disruptiva, por acaso — mereceu todos os generosos aplausos que o público presente lhes dispensou.
E depois da hora de jantar de domingo, o grande auditório que é o Anfiteatro ao Ar Livre abriu-se para aquele que foi o último Jazz em Agosto antes da re-inauguração do Centro de Arte Moderna, que acontece já no próximo dia 20 de Setembro. Em palco estiveram Mats Gustafsson (saxofone barítono, flauta), Delphine Joussein (flauta), Susana Santos Silva (trompete), Goran Kajfes (trompete), Mats Aleklint (trombone), Heida Karine Johannesdottir (tuba), Frederik Ljungkvist (clarinete, sax tenor), Lars-Goran Ulander (sax alto), Josefin Runsteen (violino e voz), Julien Desprez (guitarra eléctrica), Alexander Zethson (teclas), Johan Berthling (contrabaixo), David Sandstrom (bateria e voz) e Blanche Lafuente (bateria). Dezena e meia de músicos que sabem — coisa nem sempre fácil — ser indivíduos e, ao mesmo tempo, peças comunicantes de um colectivo.
Esta Fire! Orchestra sabe tocar livremente, mas entende igualmente o poder hipnótico do groove, com as duas baterias, o baixo, o piano eléctrico, a guitarra e a tuba a servirem muitas vezes como peças determinantes para a construção de intrincadas polirritmias feitas de sofisticadíssimos encaixes em termos de tempo. O colectivo veio tocar matéria do épico Echoes, duplo CD e triplo LP editado o ano passado pela Runne Grammofon perante aplausos generalizados. Trata-se, de facto, de um sério triunfo artístico em que Gustafsson põe em evidência toda a diversa experiência acumulada pela orquestra ao longo de 10 anos de intensa actividade. Nesta declinação de palco (no álbum, supervisionado por Jim O’Rourke, estiveram envolvidos mais de quatro dezenas de músicos) a riqueza musical de Echoes não foi esquecida e a música fez tangentes de diferentes graus de aproximação à música livre feita de fogo que o nome da orquestra referencia, ao funk, ao afrobeat, ao maracatu, com longas intros — de saxofone, violino, piano ou contrabaixo — a servirem de mantras que os restantes músicos depois transformavam em cooperativas celebrações. Os solos foram sempre imaginativos e certeiros — percebe-se que o facto de esta ser uma selecção “A” de grandes músicos obriga cada um deles a puxar dos seus melhores argumentos quando o foco das atenções se centra sobre si. Susana Santos Silva, por exemplo, foi uma das solistas que brilhou de forma intensa, arrancando efusivos aplausos do público na plateia depois de extrair do seu trompete texturas inusitadas, procurando a surpresa e a diferença, como é seu habitual apanágio.
As vozes também estiveram em evidência, mesmo antes do belíssimo final, com David Sandstrom (que não toca na gravação de estúdio) e Josefin Runsteen a harmonizarem enquanto cantavam um sério “they eat our dreams, they break our bones”, oferecendo um mais sombrio tom a uma música que soou sobretudo extática e celebratória. E foi dessa forma que o concerto terminou, depois de um regresso ao palco após uma mais do que merecida ovação. Na canção que Robert Wyatt originalmente gravou em 1980 para um single que tinha uma versão de “Strange Fruit” no lado B, há dor e esperança, com um amor que magoa a pesar sobre o coração do autor. Mas na Gulbenkian, naquele domingo-ponto-final-de-festival, o “at last I am free” da letra suplantou o “I can hardly see in front of me”, libertando toda a gente da mera condição terrena e lembrando-nos que também somos feitos de espírito. Foi bonito, o festival.