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Publicado a: 29/06/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira

Geir Jenssen tem-se mantido ocupado nos últimos tempos. Pelo meio de reedições dos seus primeiros álbuns na sua Biophon (Substrata este ano, Cirque e Patashnik em 2016, Microgravity em 2015), e após o regresso com Departed Glories, no ano passado, deixa-nos agora com este The Petrified Forest, pequeno EP de seis faixas que recupera tudo de bom a que a sua música nos habituou. Nesse aspecto, apresenta-se como uma espécie de breve retrospectiva da sua obra, com ecos de cada uma das suas fases.

Biosphere não se reinventou, como fez, por exemplo, em Autour de la Lune (sem dúvida a mais experimental e difícil das suas obras). Mas The Petrified Forest é, sem dúvida, uma viragem abrupta, uma partida radical (que também se nota na total ausência das suas field recordings da Natureza, que coloriam Substrata e Dropsonde) em relação ao seu antecessor, o uber-abstracto, profundo e quase sacro Departed Glories, um regresso ao drone minimal e austero de Substrata, Cirque e Autour de la Lune.

Na verdade, não são esses álbuns que Geir emula aqui, mas sim o agradável electro de N-Plants, de 2011, e as suas melodias simples de synth techno ancoradas em batidas downtempo. Longe estão os ritmos de dança mais acelerados dos seus primeiros álbuns (Microgravity e Patashnik), e sobretudo do seu álbum enquanto Bleep, The North Pole By Submarine, embora haja uma presença inegável de batidas.

Não obstante, todas as marcas inconfundíveis da música de Biosphere continuam presentes: a repetição, o minimalismo, a subtileza, a abordagem frugal à composição, a importância do loop e do drone, do etéreo e do onírico, a simplicidade das melodias e a relação íntima com o cinema, que lhe confere uma qualidade eminentemente visual.

Tal como nos habituou no decurso de uma longa e profícua carreira, esta música, como o melhor ambient, oferece-nos várias sensações e transporta-nos para mundos diversos: por vezes é árida e inóspita, outras é bela, convidativa, sedutora e estranhamente narcótica. E continua a fazer uso do cinema antigo, mas desta vez não recorre ao sci-fi, mas sim ao film noir.

The Petrified Forest não é propriamente uma banda sonora: apenas usa o cinema como ponto de partida de inspiração e elemento de uma estética há muito trabalhada, na qual assenta perfeitamente. De resto, o uso e o tratamento de samples vocais de filmes não é nada de novo na música de Geir: já as empregou, sobretudo, em Microgravity, Patashnik e Substrata (quem não se lembra do monólogo do Major Briggs, de Twin Peaks, em “Hyperborea”?).

Desta vez a inspiração partiu do interesse de Geir por The Petrified Forest, clássico noir de 1936 de Archie Mayo, com Leslie Howard, Bette Davis e Humphrey Bogart nos papéis principais. Tal como o filme, e a paisagem que o mesmo mostra, também esta música é remota, esparsa e surreal.

Esta floresta, assim chamada pelas árvores mortas que se transformaram em pedra ao longo de séculos, é, na verdade, um deserto, árido e inóspito.

O filme tem lugar no Petrified Forest National Park, grande reserva ecológica do Arizona conhecida pelos seus enormes depósitos de árvores fossilizadas contendo madeira petrificada. E tal como essas árvores retêm a estrutura original do seu tronco intacta, depois de a sua matéria orgânica ter sido integralmente substituída por minerais, também a música de Biosphere mantém uma estrutura familiar, para quem o conhece.

Jenssen, eterno aventureiro e ávido montanhista, sempre explorou espaços misteriosos na sua música, e sempre nutriu um fascínio por paisagens naturais vastas e inóspitas, imaculadas por mãos humanas, desde as centrais nucleares japonesas de N-Plants às montanhas glaciares que inspiraram Substrata, a sua obra-prima, e ao vazio e silêncio do Espaço, que ouvimos na ficção científica de Microgravity e Patashnik.

Desta vez, leva-nos ao deserto do Arizona, também ele um dos protagonistas do filme, espaço de eleição que serve tanto para evocar a imensidão desoladora como a melancolia romântica ou a paz de espírito encontradas em tamanho vazio.

E embora estejamos bem longe da ficção científica e do espaço, a verdade é que alguns dos drones e texturas aqui lembram Substrata e mesmo Microgravity ou Patashnik. A sua música sempre nos impeliu ao sonho e à fuga, e tal como Substrata nos fez querer fugir e caminhar nas montanhas nevadas da sua Noruega, também The Petrified Forest nos faz querer errar no deserto americano, e talvez perdermo-nos nele.

Um vagabundo caminha solitário no deserto, sacudido pelo vento e pela areia, até dar de caras com uma bomba de gasolina no meio do nada. É assim que começa o filme que serve de inspiração ao EP homónimo de Biosphere lançado em Maio deste ano.

 



No trailer, uma voz diz-nos: “On the edge of the American desert lies a forest turned to stone: the petrified forest. Grim, silent, mysterious”. Essa floresta é perfeita para a música de Geir, que evoca, precisamente, quietude e mistério.

O filme conta a história de um homem e uma mulher unidos pelo desejo comum de fugir aos seus passados e às suas vidas miseráveis, em busca de um futuro melhor. Ele, um escritor inglês falhado (“I belong to a vanishing race, I am one of the intellectuals”), abandonado pela mulher, decide tornar-se um vagabundo, errando pelo deserto americano sem planos específicos ou destino certo (“I had a vague idea I’d like to see the Pacific Ocean, perhaps drown in it”), à procura de um novo rumo para a sua vida e de um ideal em que acreditar (“I suppose I was looking for something to believe in, worth living for, dying for”).

Ela, uma jovem empregada de mesa com aspirações artísticas, a trabalhar numa bomba de gasolina no meio do nada, ansiosa por ser arrebatada dali para fora, por alguém que a ajude a fugir ao marasmo do deserto (“Here in this desert it’s just the same thing over and over again”), almeja regressar à pequena aldeia francesa onde nasceu, alimentada e fascinada por um livro de poesia que a sua mãe lhe enviou (“The French seem to understand everything”).

Encantados e embevecidos pela sua maneira excêntrica de ver o mundo e viver a vida, os dois apaixonam-se imediatamente, e um deles, no final, sacrificar-se-á pela felicidade do outro.

Como todos os álbuns de Biosphere, este também é abrangente na paleta de emoções que conjura, desde o mistério à melancolia, desolação, nostalgia e ao romantismo, transmitidas não apenas pela música mas pelo sábio uso de samples vocais de personagens do filme, neste caso o intrigante e very British Leslie Howard e as sempre ansiosas e mui femininas Bette Davis e Joan Lorring.

E se o filme é sobre um homem e uma mulher que procuram escapar ao seu passado e encontrar afecto e sentido para as suas vidas, também esta música evoca, além do habitual alheamento onírico, amor romântico, do tipo que só se encontra viajando para muito longe, e acabando nos braços de um estranho tornado alma gémea.

A capa, um freeze-frame em que a protagonista feminina olha para o mundo lá fora através de uma pequena janela do restaurante da estação de serviço onde trabalha, coloca-nos no papel da personagem, também sonhando com o mundo lá fora, no mesmo gesto contemplativo e melancólico, como ouvintes.

A música, inegavelmente cinemática, segue o tom onírico e escapista de romantismo desesperado do filme, com samples vocais espalhadas ao longo do álbum, que não servem para contar a história mas sim para a enriquecer.

O vídeo de “Black Mesa”, construído em torno de excertos do filme em loop, justapostos em cortes rápidos, num exercício de edição inteligente e interessante de “sampling na música, sampling no vídeo”, transmite precisamente todas essas sensações.

 



O álbum abre com um bleep cósmico e uma sinusóide típicos da estética retro da Ghost Box, que dão lugar a um nebuloso bass drone orquestral que flutua por entre golpes insistentes de um sintetizador sinistro, em “Drifter”, que evoca Microgravity e Patashnik (sobretudo “The Shield”), com os seus drones siderais e bloops de nave espacial. Como em todas as suas obras, requer paciência e concentração da nossa parte, e é o mistério que começa por nos seduzir e agarrar, até que outras emoções mais tarde se juntem a ele.

 



Por outro lado, “Black Mesa”, o single de lançamento, evoca N-Plants nos seus ritmos downtempo e melodias simples de synth techno, enquanto uma voz feminina suave nos sussurra em tom meio plangente e melancólico, “Here in this desert it’s just the same thing over and over again…”.

“Turned To Stone” oferece-nos um interessante jogo de justaposição de samples vocais românticas de Joan Lorring por cima de drones com o seu quê de ominoso. Começa por evocar “Zoetrope” de Boards of Canada, com a sua melodia infantil, para depois entrar em território mais sinistro, com cordas sintetizadas assombrosas a pairar em cima de uma lenta batida electro.

 



“The Petrified Forest”, uma das mais belas faixas (e curiosamente uma das duas que não tem batida), começa por um loop de drone orquestral e texturas ambient reminiscentes de Substrata ou SAW II de Aphex Twin, que paira sobre um suave tinir de pratos, que evoca as suas experiências de percussão jazzística em Dropsonde, de 2006.

Toda a música transmite uma sensação de leveza, como se estivéssemos a flutuar no espaço com um infinito abastecimento de oxigénio.

 



“Just A Kiss” é surpreendentemente dançável e uptempo: uma melodia efervescente em cima de diálogo delicodoce sobre a troca de um beijo de despedida.

 



O álbum termina numa nota positiva, deixando-nos em tom de sonho e felicidade, com o adeus doce e melancólico de “This Is The End”, e a sua declamação feminina de poesia francesa em cima de uma melodia suave e pueril.

 



É uma viagem de assombro, quietude, beleza, nostalgia e evasão, que nos leva para longe na cama confortável de uma estação espacial em órbita de um planeta longínquo e fascinante.

Um pequeno, mas excelente álbum, pleno de música comovente e hipnotizante, The Petrified Forest é um bonito e singelo regresso de um dos mestres mais aclamados do ambient techno, que não deve ser ignorado, bem como uma entrada sólida e meritória no vasto catálogo de um grande músico, há duas décadas a compor música electrónica plena de beleza, intenção e detalhe. E mostra-nos que Geir (que quer sempre fazer um álbum diferente do anterior), felizmente, não abandonou a vontade de produzir música mais acessível e melódica, que começou por fazer no início dos anos 90, desde o acid techno da sua estreia a solo The North Pole By Submarine (enquanto Bleep), a par da sua componente mais abstracta, desafiante e monocromática de ambient drone. Nós agradecemos.

Talvez não seja tão ambicioso e marcante como o resto da sua obra, e não acrescenta nada de novo, mas é memorável à sua maneira, e um deleite para os fãs de longa data que já o conhecem, e que aqui ouvirão a sua lealdade recompensada, enquanto recém-chegados têm aqui um excelente ponto de partida para descobrir o mui celebrado legado de um dos mais importantes nomes da electrónica ambiental.

E é certamente um prenúncio de coisas boas para vir, óptimo para nos abrir o apetite enquanto um novo álbum inteiro de originais não chega.

 


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