João Pais Filipe é simultaneamente um percussionista e um domador de feras sonoras. Cada batida sua é um rugido que ressoa na floresta indomada da criatividade, traçando trilhos onde antes só havia silêncio. Na sua essência, ele é mais do que o som que ressoa dos instrumentos; é o instinto primal de um predador que dança sob a luz da lua, movendo-se com precisão felina através de paisagens sonoras.
Nascido entre as densas ramagens da terra e a vastidão do desconhecido, João não segue caminhos; ele traça-os, rasgando o mato cerrado com as suas próprias mãos. Como um escultor de ecos, o seu percurso ruge nas margens daquilo que chamamos realidade, como se cada martelar de ritmo fosse o brado de um leão na savana ao romper da madrugada. O som de João é um som que não se reconhece à primeira audição, pois ele desafia o ouvinte a abandonar a ideia de música como trilho seguro e a aventurar-se no território selvagem do puro som.
Imerso em projectos como Sektor 304 e HHY & The Macumbas, cada colaboração sua é como uma alcateia em movimento, unida por um propósito primal, mas indomada nas suas trajectórias individuais. E no seu trabalho a solo, ele torna-se o arquitecto de uma floresta em constante expansão, onde árvores sonoras crescem e tombam num ciclo perpétuo, alimentando o solo fértil da experimentação. João Pais Filipe, o percussionista que desafia as jaulas da tradição, encontra-se numa trajectória selvagem onde os ritmos não se limitam à pele da percussão, mas se estendem como raízes que se entrelaçam com o espírito da terra.
Quando constrói gongos e címbalos, é simultaneamente um artesão e um xamã, moldando matéria e espírito numa liga ancestral que canta como o uivo de lobos ao longe. E nessas ligações entre som e silêncio, há uma profundidade que apenas um ouvinte atento pode descortinar — como quem ouve o galopar distante de cavalos selvagens a atravessar uma planície.
João Pais Filipe está num limiar onde o passado e o futuro se entrelaçam, e o presente se desfaz em partículas sonoras que rugem como trovões numa tempestade tropical. Se escutarem com atenção, perceberão que ele não toca apenas para os humanos; os seus ritmos ressoam no coração dos animais selvagens, como uma linguagem esquecida e redescoberta, a cada batida, a cada reverberação.
Ele é um escultor de som que trabalha na intersecção entre o físico e o imaterial, entre a matéria e os ritmos instintivos da natureza. O seu trabalho, tanto como músico quanto como construtor de instrumentos como gongos e címbalos, transcende as fronteiras do que entendemos por música. Pais Filipe cria sons que parecem emergir das profundezas de uma selva desconhecida, onde cada batida, cada ressonância, é o eco de um mundo que respira ao ritmo do selvagem.
Ao longo da sua carreira, o trabalho a solo começou a explorar uma expansão criativa radical. Ele mergulhou em territórios inexplorados, fundindo a electrónica e o krautrock com uma abordagem improvisacional. No álbum Sun Oddly Quiet (2020), ele ousou quebrar as fronteiras da percussão convencional, abandonando preconcepções para abraçar o caos controlado de um habitat rítmico sem mapa. Neste espaço sonoro, as batidas não seguem padrões previsíveis; moldam-se e expandem-se como o voo errático de aves migratórias em busca de novos horizontes.
Pais Filipe não toca apenas os seus instrumentos; ele molda-os, tanto física quanto espiritualmente. Como um alquimista moderno, transforma o metal bruto em vozes ressonantes que desafiam os limites da escuta humana. A sua dedicação à construção de instrumentos é técnica e também filosófica — ele acredita que um gongo ou um címbalo pode cantar mantras, pode falar uma língua própria que ressoa com os mistérios do reino selvagem. Os visitantes das suas instalações sonoras são convidados a interagir com esses instrumentos, tornando-se parte da criação de um ecossistema sonoro vivo e dinâmico.
Ele toca com uma variedade de músicos que partilham esta visão de que a música deve ser uma exploração constante, nunca estática. O seu trabalho com improvisação livre e música experimental desafia o ouvinte a abandonar a necessidade de estrutura e a abraçar o inesperado. Aqui, a percussão não é unicamente um ritmo de acompanhamento; é a força vital que alimenta uma paisagem sonora pulsante.
Este é um artista que vê o som não como algo finito, mas como um portal para dimensões ainda por descobrir, onde cada batida é um convite para explorar os territórios indomados do mundo interior e exterior.
[A Quietude Selvagem e os Ritmos da Terra: Meditações Sonoras nas Batidas Invisíveis de João Pais Filipe]
Sun Oddly Quiet (Um Poema musicológico para João Pais Filipe)
Nos recantos mais profundos da selva, onde os ritmos se desencontram
E os gongos entoam segredos de animais noturnos —
João Pais Filipe, um alquimista dos sons,
Escreve a música não com notas, mas com o espaço
Entre as batidas de corações selvagens.
“XV” ressoa, uma pulsação que percorre as planícies,
Como a marcha de um predador sem território.
Ele abandona trilhos, e cada compasso é um eco,
Um espelho quebrado reflectindo as sombras em movimento.
A numeração romana não é tempo,
Mas feras em fuga ao ritmo das caçadas.
O som vibra nas ossadas das selvas,
Onde os rios são guiados por tambores,
E as ondas acústicas fluem como correntes que atravessam o mato.
Entrelaça polirritmos com batidas de corações selvagens,
Como quem desenha rastos que se cruzam,
Gravando trajectos invisíveis na terra que respira,
Com a precisão de um caçador que marca o terreno.
Os pratos giram, as feras sussurram —
E o ouvinte, atordoado, navega entre os espreitadelas da floresta,
Onde cada groove é uma espiral de folhas caídas
E o mantra não é repetição, mas expansão.
Cada pulsação é uma história inacabada,
Uma meditação sobre o som e o vazio,
Onde os compassos compostos desfiam a gravidade,
Como se a terra tivesse aprendido a contar
Em 15, 13, 11… e em silêncios.
Aqui, o espaço entre as batidas é tão vasto quanto o silêncio,
E o silêncio é tão profundo quanto o grito de um felino
Na escuridão de uma noite distante.
E o som?
O som é um mapa que não conhecemos,
Um caminho sem nome, traçado entre os rastos de um animal
E ecos de gongos forjados nas entranhas da selva.
João Pais Filipe não bate —
Ele convoca as feras,
Toca as crinas de um cavalo selvagem com a leveza de quem compreende
Que a verdadeira melodia da terra
É a que nunca ouvimos,
Mas sempre sentimos.
[O Silêncio das Selvas: Últimas Meditações sobre João Pais Filipe e os Ritmos Eternos]
No final da sua jornada sonora, João Pais Filipe permanece não como um simples percussionista, mas como o alquimista dos instintos e do selvagem, onde cada som é uma semente lançada às florestas inexploradas. O seu legado transcende a pele dos tambores, atravessando a matéria que ele tão habilmente molda. Não é apenas música o que ouvimos, mas o eco dos rugidos ancestrais que ele convoca, o murmúrio profundo das selvas que nos envolve em cada compasso.
Ele já não cria sons, ele cria habitats. E nesses habitats, há uma quietude que fala mais alto do que qualquer ruído; uma quietude que nos faz questionar se os ritmos da humanidade não são senão um reflexo pálido da sinfonia primal das selvas. No limiar da criação, João desce ao silêncio, onde o som e o vazio se fundem, revelando que o verdadeiro ritmo não tem fim, mas reverbera eternamente nos confins da terra.
Cada batida sua é um instante selvagem que escapa ao agora, tornando-se uma memória viva do que ainda está por vir. Nos seus ritmos complexos, há um mapa para o desconhecido, e nas suas criações metálicas, há o espírito de alguém que sempre foi além do visível, como quem atravessa a linha ténue entre a floresta e a sombra. E assim ele termina, ou melhor, começa — num ciclo eterno, onde o som nunca se apaga, apenas muda de forma.
Este é o legado de João Pais Filipe: um convite para ouvir a terra não com os ouvidos, mas com a alma. Um mundo onde o som não se limita ao que conhecemos, mas se expande, como o instinto selvagem, sem fim.