[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Direitos Reservados
Bill Brewster, juntamente com Frank Broughton, é hoje um dos grandes nomes mundiais da escrita sobre dance music. Com livros assinados em conjunto com Frank Broughton como Last Night a Dj Saved My Life ou How To DJ Properly, Bill Brewster afirmou-se como um dos mais profundos conhecedores desta cultura e, literalmente, mudou a vida de muita gente com as suas palavras. Com uma discografia imensa no que a compilações diz respeito – assinou fantásticos tomos sobre a clássica label de disco Salsoul, por exemplo – Bill Brewster é o responsável pela recente e fundamental série Sources que a Harmless edita e que já se estendeu a dez títulos (poderá ler-se sobre esta série neste artigo publicado aqui no Rimas e Batidas). Para se conhecer um pouco melhor o percurso e o pensamento de Bill Brewster, recupera-se aqui uma entrevista de 2004 concedida à Dance Club.
Vou começar por te perguntar se há algum projecto de livro novo em que estejas a trabalhar com o Frank Broughton neste momento?
Bem o How To DJ Properly saiu em Inglaterra em 2002 e nos Estados Unidos em 2003, por isso só agora começámos a trabalhar num projecto novo. Não é tanto um trabalho de escrita, como um trabalho de edição. Estamos a compilar um livro com textos variados sobre Dance Music. Basicamente é um monte de jornalismo escrito por muitas pessoas diferentes ao longo de um enorme período de tempo. Não é apenas sobre DJs, no entanto. É um livro sobre o próprio acto de dançar e por isso tem textos retirados de antigas obras da Grécia, extractos de novelas victorianas sobre Danças de Salão, coisas sobre os “speakeasys” do Harlem dos anos 20. E depois, claro, tem as coisas mais recentes, sobre House e Hip Hop, Drum n’ Bass. O título de trabalho é “Let’s Dance”, mas poderá mudar a qualquer momento.
És portanto uma pessoa para quem a escrita sobre música é uma actividade muito importante. O que pensas então da frase “escrever sobre música é como dançar sobre arquitectura?”
Penso que há uma certa lógica nessa frase. É muito difícil escrever sobre música de dança, porque se trata de uma música que lida muito mais com o ritmo do que com a poesia. Uma das razões porque há tantos textos excelentes sobre rock é porque é um género onde as palavras são muito mais importantes. Na música de dança as palavras ou não existem ou são completamente acessórias, pobres. Quando o lado poético não é muito forte nem sempre é fácil explicar porque é que um disco é bom. Um disco que soa disparatado na rádio ou em casa pode soar de forma incrível num clube. E porque é para esse ambiente mesmo que muitos destes discos são desenhados, não se pode propriamente criticá-los segundo os mesmos parâmetros que utilizarias para criticar um disco de rock. Penso que é neste problema que essa frase tem origem. No nosso caso, sempre tentámos escrever sobre dance music de uma forma simples, mas séria. Penso que uma das razões porque escrevemos o Last Night a Dj Saved My Life foi exactamente por estarmos tão cansados de ler peças péssimas sobre dance music. Quisemos repor a verdade dos factos e explicar às pessoas que esta cultura já existia há muito mais do que dez anos.
Foi exactamente o que senti ao ler o livro: senti que vocês se devem ter divertido a escrevê-lo, claro, mas também me pareceu que o fizeram para preencher um vazio, porque não havia nada do género editado até aquela data…
Sim. Embora eu e o Frank sejamos de Inglaterra, conhecemo-nos em Nova Iorque. Vivemos lá cerca de oito anos. E em Nova Iorque existe uma forte tradição oral transmitida por clubbers mais velhos que gostam de recordar como eram certos clubes há 10 ou 20 anos. Por isso havia uma quantidade incrível de conhecimento oral que nunca havia sido fixado em papel. Em Inglaterra, por causa da explosão de 1988 com o acid house, começou-se a escrever a história da dance music como se não houvesse nada para trás. E isso irritava-nos muito. Por isso decidimos repor a verdade dos factos. E, claro, muito importante também foi a desculpa que isso nos deu para andarmos a entrevistar montes de gente que sempre admirámos.
Mudaste para Nova Iorque já com o projecto do “Last Night… na cabeça?
Não, não. Mudei-me para Nova Iorque em 1993 para dirigir o escritório da DMC. O Frank já lá estava e trabalhava para a Mixmag que, naquela época, pertencia à DMC. Conhecemo-nos pouco depois de eu chegar e começámos a falar de Nova Iorque e de todas as histórias que circulavam até que tivémos a ideia de as fixar em livro. Por isso, na verdade, tínhamos o livro na cabeça anos antes de termos começado a trabalhar nele. Antes, em 1997, fizémos um livro para o Ministry Of Sound – The Manual, uma espécie de encaixe fácil no fenómeno do clube e da marca, embora o livro seja bom, com montes de coisas sobre o Loft, o Larry Levan e o hip hop. Mas escrevemos esse livro como uma espécie de experiência – ver se conseguíamos trabalhar juntos sem nos matarmos (risos). A coisa correu bem e encheu-nos de vontade e, na verdade, foi o nosso editor que nos deu a ideia de escrever um livro sobre os DJs. Antes disso já tínhamos a vontade de escrever sobre Nova Iorque, mas não sabíamos como o fazer, qual o ângulo por onde abordar essa história. Depois de o editor nos colocar a proposta à frente, a ideia parecia ser tão estupidamente óbvia que até ficámos com vergonha por não termos pensado nisso.
Fala-me um pouco sobre o How To DJ Properly. No vosso site há algumas reacções espantosas de gente muito famosa como o Roc Raida dos X-Ecutioners e o Danny Tenaglia…
Este livro é uma espécie de tentativa de colocar toda aquela parte teórica do início do Last Night… numa forma condensada, quase como um livro de instruções de um qualquer aparelho. A ideia era fazer deste livro uma espécie de manual de instruções quase idiota, que explicasse tudo em detalhe. E o nosso objectivo era que o livro se pudesse abrir em qualquer página que a leitura faria sempre sentido. Sabíamos que muitos miúdos adolescentes iriam comprar esse livro – que só em Inglaterra já vendeu mais de 40 mil cópias… – só pelo lado técnico. Por isso fomos muito cuidadosos em incluir muitas coisas sobre a teoria do DJ, o gostar de música, sobre como programar uma noite de maneira a que as pessoas dancem. Queríamos deixar claro que o que faz um bom DJ não são as qualidades técnicas de mistura ou de scratch, mas a capacidade de entender a música e de a sequenciar de uma forma que faça sentido quer em termos rítmicos quer em termos musicais.
Recebi a compilação de clássicos do Zanzibar seleccionados pelo Tony Humphries e reparei que és tu quem assina o texto do CD. Eras um fã daquelas liner notes clássicas dos álbuns da Blue Note, por exemplo?
Sempre adorei os textos nas capas dos discos. Para mim era o ponto inicial para a descoberta de mais dados sobre um determinado artista ou editora. E realmente adoro aqueles textos muito profundos, que explicam tudo sobre um disco, até os microfones que se usavam. E por isso continuo a adorar escrever esses textos. Infelizmente, muitas vezes só me pedem umas 500 palavras, o que equivale apenas a uma foto, quando eu gosto mesmo é de longas metragens. Algumas das melhores coisas que eu e o Frank fizemos foram textos desses, com cerca de três mil palavras. Escrevemos um para o álbum do Larry Levan, outro para o do Grandmaster Flash.
Mudando de assunto. Reparei pelas tuas charts do site que tens andado a ouvir muito R&B moderno. Que outras coisas andas a ouvir?
Quando vou comprar discos tento trazer dois ou três dos melhores discos de cada um dos géneros de que gosto. Alguns discos de hip hop, alguns de R&B, outros de house… Gosto muito dos bootlegs que agora se fazem, tu sabes um daqueles discos que pega num tema velho e lhe coloca por cima um acapella de hip hop, por exemplo. Aborreço-me depressa e por isso prefiro escolher um pouco nos mais diversos géneros. E é um pouco assim quando ponho música em clubes. Gosto de ir variando, de mudar a música, às vezes só para ver como é que as pessoas reagem. Mas voltando ao assunto, sobre o que gosto mais de ouvir: adoro os Neptunes, mas acho-os muito inconstantes. Gostava que eles fizessem menos discos, mas melhores. Adoro o Timbaland e gostei muito do álbum do Bubba Sparxxx. E até um tipo como o Puff Daddy chega a ser chocante, porque consegue fazer coisas muito boas, como o último single da Mary J Blige. Acho que ele é um excelente produtor embora também seja capaz do pior.
Hoje em dia qual é afinal o teu emprego principal? A escrita, o DJing, o trabalho como A&R?…
Bem o meu trabalho como A&R é uma parte minúscula daquilo que eu faço hoje em dia. Basicamente, durante da semana escrevo – seja para revistas, discos ou para ideias de livros. E durante o fim de semana sou DJ. Sou residente do Fabric, em Londres, onde toco aos sábados há cerca de quatro anos e meio.
Tu também és um coleccionador. Na tua opinião o que é que continua a levar as pessoas para os sons do passado?
No meu caso é um enorme interesse por tudo o que eu nunca ouvi. Tenho uma enorme curiosidade sobre o passado. E isso é um passo seguro para nos conduzir ao coleccionismo de discos. É uma forma de enganarmos a nossa própria história, voltar ao passado e ouvir a música que nos passou ao lado porque não tínhamos idade para a compreender.
Sei que também és um fã de futebol…
É verdade… Sou adepto de um clube terrível, o Grimsby, que na época passada estava na primeira divisão e agora está na segunda e a caminho da terceira.
Vens a Portugal para o Euro?
Adorava; estive no Campeonato Europeu na Alemanha, em 1998, na Suécia, em 92, no de Inglaterra, claro, em 96. Não sei ainda, mas estou a tentar ir. Penso que temos uma belíssima equipa com um treinador cheio de sorte. Mas sim, sempre fui um fã de futebol. Quando era miúdo vi o George Best a jogar com o Manchester contra o Benfica, com o grande Eusébio. Uma das minhas melhores memórias do futebol.
Termino perguntando-te o que é que faz um grande DJ?
Bem, mais do que qualquer outra coisa é o seu gosto pessoal. Um gosto no qual as pessoas se possam rever, com o qual o DJ possa comunicar. Poderias argumentar então que o Paul Oakenfold tem um óptimo gosto, porque tem muitos seguidores. Eu acho que ele tem um gosto populista. Eu refiro-me antes aos grandes nomes como o François Kevorkian, o Larry Levan ou o Afrika Bambaataa. Todos tinham um bom gosto profundo. Imaginar o Bambaataa a tocar os Monkees para um público negro é incrível, porque a ideia dele era fantástica. Adoro DJ’s assim, com uma enorme personalidade, capazes de arriscar e de levar as pessoas a gostarem de coisas que não são óbvias. Todos os grandes DJ’s eram igualmente grandes educadores.