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Fotografia: Nuno Andrade
Publicado a: 02/04/2024

A revolução passou por um clube no Cais do Sodré.

Bia Ferreira no Musicbox: sem paninhos quentes

Fotografia: Nuno Andrade
Publicado a: 02/04/2024

São poucas as vezes que se vê alguém sem papas na língua para denunciar sistemas de opressão vários, gritar pela justiça e reivindicar uma mudança do sistema vigente. É por isso que performance musical são duas palavras que descrevem de forma insuficiente aquela que foi a ocupação de Bia Ferreira no palco. Guerrilha, resistência e revolução serão definições certamente mais completas para relatar a proposta apresentada pela cantora brasileira que fez um estrondo no dia 1 de abril no Musicbox, em Lisboa.

Tendo marcado o tom do dia com o lançamento do vídeo de “A conta vai chegar”, música que denuncia os efeitos do colonialismo, gravado no Terreiro do Paço, lugar de onde desembarcaram tantos escravos vindos de África durante o tráfico transatlântico, Bia Ferreira chegou do Brasil para colocar o dedo na ferida e cobrar uma conta que, segundo a própria, ainda está a ser paga, mas pelo povo pobre, preto e indígena, que sofre os impactos de um sistema de escravatura e colonialismo que moldaram o curso da história dos países e pessoas que a ele foram subjugados, e que se observam, ainda passados 200 anos da independência do Brasil, na estrutura social de um país que é desigual, assente na violência e em que a população afro-brasileira, que é a maioria, está na no lugar mais baixo da pirâmide social, sendo mais atingida pela fome, desigualdade ou a violência policial.

Houve espaço para uma canção de amor, “Eu tava em casa”, mostrando o seu lado mais sensual e romântico, que faz parte da primeira parte do seu último álbum Faminta, preenchido por canções destas, celebrativas do afeto, do amor e, em específico, do amor entre mulheres. E ainda que se possa argumentar que o ato de resistir é também um ato de amor, a escolha para o alinhamento foi dominada por raps, alguns do primeiro álbum da cantora, Igreja Lesbiteriana, Um Chamado, e outros da segunda parte de Faminta, que se focam numa análise da conjuntura política e social, trazendo denúncia e respostas para os problemas que inquietam Bia Ferreira.

E foi assim que nada ficou por ser falado: desde o ativismo burguês denunciado em “De dentro do AP”, à reivindicação do espaço das mulheres, todas elas — “seja preta, indígena, trans, nordestina. Não se nasce feminina, torna-se mulher” em “Não Precisa Ser Amélia”; a celebração do afeto como uma tecnologia de sobrevivência, que manteve viva a população com descendência africana em “Tecnologia Afrodiaspórica”; ou a denúncia da fome, problema social vivenciado por mais de 40 milhões de pessoas no Brasil, descrita no “Mapa da Fome”.

Em tempos em que a palavra representatividade é tão importante, ao mesmo tempo que tem sido esvaziada do seu conteúdo com lógicas de mercantilização e tokenização, usando como um mero acessório a presença de pessoas de minorias para cumprir uma quota ou uma pretensa diversidade falsa, a presença de Bia Ferreira nunca foi tão importante e marcante. Não apenas por ser preta ou lésbica, mas por toda uma agenda disruptiva e questionadora do status quo, que com pedagogia e assertividade aponta para aquilo que está mal. Sem falinhas mansas, nem paninhos quentes. Talvez possa incomodar, e se isso aconteceu, então o trabalho está feito, como a própria disse no início do espetáculo.

E foi com esta proposta de um mundo onde possam caber todos, todas e todes, que esta sala no Cais do Sodré abriu a porta para a igreja lesbiteriana, lugar de luta, de afeto, de reivindicação da justiça deixada nos silêncios da história. Brindada com a presença de Uma Africana, que iniciou a noite com o seu DJ set a dar um toque inicial àquela que seria uma noite intensa, quente e mexida, e que acompanhou a cantora até ao fim. Bia Ferreira deixou a audiência num final mágico a capella em que a plateia se fez de instrumento, cantando “xaramanaya”, palavra que significa: “O que é bom, fica”. E que boa foi aquela noite.


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