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Fotografia: Bruno Simão
Publicado a: 03/10/2023

Som e dança entrelaçados em performance.

Bendik Giske & Romeu Runa no Panteão Nacional: a elevação do desejo

Fotografia: Bruno Simão
Publicado a: 03/10/2023

De frente para o átrio da Igreja da Santa Engrácia a lua apoiava-se nos ecos que vibravam tonais ao fundo d’O Corrido. Faltavam breves minutos para as dez horas quando um canto voraz cessou lentamente, quase como que deixando um espaço temporal aberto para o que estava perto de acontecer. Diante de um dos lugares mais historicamente singulares de Portugal, o Panteão Nacional, uma multidão aguardava serenamente por um dos eventos que mais suscitou curiosidade na agenda da BoCA. Associação Cultural cujo ponto nevrálgico se sustenta na programação de Arte Contemporânea, esta Bienal conta com uma transversalidade cultural que ao longo das últimas semanas tem vindo a albergar artistas referentes cujo cunho artístico se destaca pelo rompimento de fronteiras artísticas.

Desta vez, num lugar conhecido por albergar a sepultura de figuras que marcaram a história de Portugal e que, para muitos de nós, o sentimento que delas brota pode causar discórdia com a proposta do concerto-performance que viria a acontecer, todo o cenário artístico criado para este momento alicerçava-se na adaptação do trabalho de Samuel Delany, autor ex-líbris da literatura queer. A convite da BoCA, o saxofonista norueguês Bendik Giske e o bailarino português Romeu Runa, juntaram-se para evocar a sua memória, inspirados pelo livro autobiográfico The Motion of Light in Water: Sex and Science Fiction Writing in the East Village, escrito em 1988.

Onde uma das maiores perguntas que nos permitimos fazer a nós próprios quando lemos a obra de Delany é se o futuro pode deixar de ser uma fantasia de reprodução heterossexual, e onde o afrofuturismo se ergue num ativismo pos-humanista, através da visão do escritor americano podemos encontrar resquícios utópicos sobre a sexualidade dissidente e a compreensão do mundo através da liberdade de expressão. Terá sido esta a base para a construção da performance que Bendik Giske e Romeu Runa nos trouxeram?

No centro da nave central, sob o chão de mármore por onde rompiam algumas brechas de luz, o público conseguia ver três plataformas em bruto com uma altura que não ofuscava o olhar de quem diante de si se sentava. Uma delas mais baixa, outra que atravessava a plateia circular e outra cujos degraus a tornavam a mais alta das três. Num lado, Giske, sentado, iniciava a sua articulação sonora idiossincrática cuja dimensão se viu copular com a acústica de uma igreja em pleno silêncio nocturno. Diante de si, Romeu Runa prostrado, movia-se lentamente, soltando grunhidos inócuos quase que evocadores de um leito mortal ou um portal para um estado de transe voluntário. 

Perceber todo este momento criado entre estes dois artistas, considerando a obra de Delany, torna a concepção deste espetáculo numa mensagem enriquecida pela simbiose do trabalho idealizado a três, e não só a dois. Giske e Runa interagiram durante uma hora quase que numa busca incessante que se reduzia cruamente a uma caça furtiva e que rapidamente se transformava num encontro de almas que se desejavam deliberadamente. E, se da atração entre o corpo e o saxofone se tratava o concerto, a procura de cada um dos artistas tornou esta performance num momento emocionalmente gritante que culminou num erotismo incontornável. Por entre toda a prestação artística que ocupou a cruz grega de um lugar à partida indisponível para este tipo de práticas, a disrupção performativa a que assistimos na passada noite de domingo, 1 de Outubro, permitiu aguçar ainda mais os arrepios que se faziam sentir de cada vez que cada membro do corpo de Runa arrastava em cada uma das plataformas, e de cada vez que cada nervo do seu corpo se salientava para vibrar ao ritmo do dedilhar e do som intermitente característico de Bendik.

É verdade que, inserido num universo pós-Stetson, Giske já foi mencionado como uma tentativa aproximada do saxofonista americano por diferentes críticos. Mas também é mencionável que, dentro da esfera contemporânea queer, o saxofonista norueguês tem trazido novas formas culturais através do trabalho sonoro e artístico que tem feito como músico.  

Se na música nada se inventa e tudo na música se transforma, naquela que já era anunciada “esfera meditativa que nos leva ao êxtase”, “As Ascensões e Quedas Infinitamente Repetidas do Desejo” provaram ser uma elevação do desejo pelo futuro e a compreensão de um passado que já não faz parte de nós a não ser para, encarando a modernidade, recordar tudo o que não merece ser repetido.

Terminado num beijo, ao som de “Cruising”, o público não se inibiu. Todos se levantaram e aplaudiram um dos momentos que ecoará na memória da BoCA durante a posteridade.


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