LP / Digital

Bendik Giske

Bendik Giske

Smalltown Supersound / 2023

Texto de João Morado

Publicado a: 21/07/2023

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Ao terceiro álbum a solo — e para encurtar desde já caminho — podemos dizer, com firme certeza, que Bendik Giske ascendeu ao pináculo da sua arte. Se existirão outros cumes ainda inexplorados pelo saxofonista, só o tempo o dirá, mas assoma-se como óbvio que o processo de aperfeiçoamento da sua ideia culmina agora numa obra consagradora que agrega múltiplos elementos de um corpo de trabalho recente mas fecundo. Neste álbum homónimo lançado em Junho deste ano pela Smalltown Supersound — selo que lacrou todos os registos do norueguês —, a abordagem de Giske é absolutamente ultrarrealista.

Prescindindo dos efeitos e eletrónica abundantes em Surrender (2019) ou da ideia de estúdio como instrumento explorada em Cracks (2021) — a qual revestiu o disco de uma acústica reverberante muito particular —, Giske apresenta-se neste último avanço só e apenas com o seu instrumento. Nudez absoluta em termos de abordagem criativa e sentido musical. Há, portanto, aqui uma destilação intencional da música nos seus elementos fundamentais, restando apenas o Homem e a sua ferramenta, porventura hibridizados numa entidade única homem-instumento. É música que é o corpo e corpo que é música. Nada mais se escuta: artifícios de produção ou retoques de som são mínimos e negligenciáveis. Interessante, contudo, é notar como, amiúde, o trabalho de Giske tem sido conotado com sendo futurista, quando na verdade o seu verdadeiro traço singularizante é precisamente uma redução consciente ao mínimo indispensável. Para se compreender a música do saxofonista é necessário, então, refletir brevemente sobre o processo evolutivo conducente a uma sociedade em que afirmação do ser do estar tal como ele é — no caso de Giske, entre outras coisas, da sua queerness —, sem artifícios nem ardis, é entendido como um ato contraventor.

As inseguranças não são criações do mundo hodierno, e os subterfúgios existem desde que o Homem é Homem. É inegável, contudo, que o culto da imagem e a deificação da saúde vieram contribuir para o crescente mascaramento e artificialização das nossas almas, corpos e vidas. Descrentes, ateus, projetamos uma perfeição inalcançável num perfil de internet. Antes fazíamo-lo na ideia de deus, já nos explicara Feuerbach. Mas idos esses tempos, e imbuídos num pensamento que continua com fortes raízes no materialismo e positivismo, tentamos a todo o custo tornar a realidade na melhor de todas as realidades possíveis, para adaptar o ideário leibniziano aos modos da contemporaneidade. Tudo é agora (aparentemente) possível, e os limites que impedem os sonhos de se tornarem realidades são atribuídos a defeitos de comportamento e personalidade.

A revolução industrial, a ciência e a tecnologia aceleraram a elevação da perfeição a estados antigamente inalcançáveis. E na música, os transístores e o digital revolucionaram as possibilidades do som. De repente, tornou-se possível sintetizar o som perfeito, a onda sinusoidal imaculada. A música que, sendo feita ou programada por humanos, se ouve como sendo inteiramente sintética. Com o advento da inteligência artificial, esta certeza da mão humana na criação musical tem vindo a ser esbatida. Todavia, a perceção do que a musicalidade é ou não é continua profundamente enraizada numa conceção antropológica, pois ainda que hoje tenhamos modelos capazes de criar música computacionalmente, estes foram treinados de acordo com uma ideia de música indissociável da experiência humana. A alienação musical que se vive é, portanto, unicamente, putativa e superficial. Bendik Giske, atento a estas dinâmicas, subverte este processo.

É, então, neste contexto, que uma abordagem de certa forma primitiva — num sentido puramente estético — é assumida por muitos como sendo experimental ou futurista. Acima de tudo, e tal como um certo escritor austríaco da segunda metade do século XX se autodenominava, Bendik Giske é um “artista do exagero”. É certo que, pelo menos em álbum, este exagero não reside necessariamente na dimensão noética ou conceptual. Do mesmo modo, tampouco se encontra descaradamente patente na estética musical, que não é de todo extrema ou declaradamente transgressiva. Este álbum homónimo de Bendik Giske — tal como os que lhe antecederam, verdade seja dita — é, aliás, francamente agradável de se ouvir, não exigindo particular esforço, ainda que peça por um estado de espírito específico. O exagero, esse, encontra-se, antes, no modo em como a música é tocada e não na forma em como é apresentada. É a fisicalidade extrema, a gestualidade hiperbólica, que reveste a música de Giske dos seus predicados radicais. Inevitavelmente, há uma contaminação dos sons produzidos pela abordagem performativa, mas o resultado final é genuinamente orgânico. 

Assim, ao longo de 8 faixas com produção da britânica Beatrice Dillon, Bendik Giske conduz-nos por uma experiência hipnotizante e meditativa desenhada em órbitas elípticas que alteram a sua excentricidade a cada sucessiva iteração. Através de tautologias que incidem sobre um mesmo motivo tonal (dizer melódico seria um abuso), o saxofonista passa e repassa ideias como quem escreve sobre um mesmo manuscritos vezes e vezes sem conta. As atmosferas criadas são claustrofóbicas e sufocantes, e há até uma certa ironia em notar que os intervalos harmónicos que Giske explora são bastante consonantes. A tensão, essa, vem antes da exigência da performance ao nível técnico, a qual deixa qualquer um com o coração nas mãos. 

Subjacente aos ritmos e padrões percussivos sacados dos pistões através de permutações cíclicas, encontra-se, ainda, uma melifluidade reconfortante, a qual convive justaposta a uma crueza ultra-expressiva, assente, pois claro, naquilo a que os gregos chamaram de physis — o movimento. Escutar este registo do saxofonista é, pois, como que uma submersão deliberada nos labirintos de um artista que se apresenta a si e à sua arte tal como são. Não é música futurista, não é música experimental, não é música ambiente, não é música contemporânea. É a música de Bendik Giske, sem tirar nem pôr, tocada com direito a todos os detalhes que a sua feitura implica. E nós, ouvintes, ora pois, agradecemos a depuração, neste que é álbum que tanto nos envia para as orlas da via láctea como para as catacumbas do Berghain. 


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