Mereba está perdida. A música sempre se mostrou como um caminho esperançoso, mas desta vez parece que não há escapatória do fim turbulento que se avizinha. Há anos que espalhava fotografias pelo quarto com frases benevolentes de modo a sentir-se inspirada; lia os livros do pai e escrevia diariamente como um estímulo criativo e técnico. Treinava, e bastante, a voz ao som dos grandes clássicos de Billie, Nina e Aretha. Era disciplinada, metódica, experiente nas dificuldades e admiradora dos finais felizes. Então, como chegámos até aqui? Ela não sabe bem, mas suspeita: “You stuck dodging the Devil the older you get/ Youth grants grace/ Growth grands grit”. Mereba está perdida na selva, mas talvez seja melhor deixá-la lá estar: lá a música não entra; lá os males não fervem; lá o Diabo não escuta.
Mereba vem de um contexto académico, o que explica a sua obsessão pela metodologia e por cenários descritivos. Filha de dois professores universitários, a artista passou grande parte da infância e adolescência a andar por corredores de faculdades e a desenhar em quadros de salas de aula. O interesse pela música começou cedo, a despertar aos quatro anos, mas os estudos na altura eram mais importantes. O curso superior em Língua Inglesa foi, no entanto, uma mais-valia para a composição das músicas e ajudou-a a perceber como exercitar a turbulência que pairava na sua mente – um passo de cada vez, claro. Em 2013, estreou-se com Room For Living, um conjunto de pequenas canções que não provocaram muito furor na altura: são, no total, 28 minutos de um r&b preguiçoso, mal mastigado e que mais parece uma réplica de India.Arie ou Corinne Bailey Rae do que propriamente um tributo. Não foi muito relevante e a própria cantora percebeu isso e afastou-se um pouco da música. Na altura, Mereba passava por um período de inconsistência e desequilíbrio mental, principalmente caracterizado pelo fim de uma relação, por abusos com bebidas alcoólicas e por uma incerteza no seu trabalho. Passou um ano com os pais na Etiópia, altura que caracteriza como crucial para não desistir da sua grande paixão, mas mesmo assim o processo foi moroso.
Poucas canções foram lançadas desde então — nada que previsse o que se aproximava seis anos depois. Em Fevereiro deste ano lançou The Jungle Is The Only Way Out: uma manifestação que quebrava com a corrente linear e cristalina do passado para um registo mais pessoal, desorganizado e catártico. “Heatwave”, com 6LACK, “Planet U” e “Stay Tru” anteciparam este trabalho e mostraram que a recuperação faz-se melhor quando é usada como um processo criativo; com ou sem aliterações, mostra-se aqui um diário daquilo que Mereba teve de reprimir durante anos – tal como foi ensinada. As duas últimas músicas traçam precisamente a distância entre as nossas ilusões e a realidade: a dificuldade de entender o que andamos aqui a fazer e como podemos tirar o maior proveito desta experiência. Em 1966, James Brown cantava que vivíamos num “Man’s Man’s Man’s World”, mas Mereba conseguiu arranjar uma alternativa para que ela se fizesse ouvir e que todas as raparigas negras a escutassem com atenção.
À superfície, este trabalho é caótico, mas mesclado por um som contemporâneo. É óbvio pensarmos em Jamila Woods, Nao, Kelsey Lu e muitas outras. Mas é esta sensação temperada e controlada de desordem, de medo e insegurança que a torna tão especial. Neste novo disco, Mereba está perdida na confusão que é a sua mente, e em vez de se explodir alegoricamente, procura um refúgio desta patética e, por vezes, desarmante experiência humana. Olhamos para “Get Free”, o efémero e caldo choro de resiliência: aqui Mereba está cansada, acabando por depender das consonantes vozes de fundo, que mesmo assim não a fazem desistir do seu objectivo: “Not trying to get by; I’m trying to get free”. Apesar de encararmos o desespero naquelas letras, como na vida em geral, há um conforto – que mais não seja por aquela sensação primária de sobrevivência – em percebermos que as experiências dela são universais. É importante ter uma certa distância para observar os factos: não passámos a nossa vida a viajar pela América à procura de um sítio ao qual podíamos chamar “casa”, não fizemos campo em Addis Ababa, não saltámos de editora em editora. Mas como seres sensoriais entendemos facilmente as formas de dor, dúvida e desilusão, e todas as consequências que elas trazem – situações para as quais nada é mais confortável do que uma banda sonora para nos acompanhar. Meraba conta-nos que desistir não é derrota, que o amor-próprio é mais saboroso quando é trabalhado, que as partidas que a vida nos prega são para serem vistas como meros exercícios. E é verdade: ela já perdeu o rapaz, perdeu o contrato discográfico, perdeu a motivação, e perdeu-se a ela mesma; aliás, ela ainda continua perdida.
Mas desta vez, este sentimento tem uma direcção, ainda incerta, pessoal. Mereba sabe o caminho para fora dos seus pesadelos, mas em vez de se agarrar facilmente à solução, pretende analisar o que a deixou assim em primeiro lugar: talvez para que não se repita no futuro, talvez para aprender devidamente algo quando este tormento terminar. De qualquer maneira, ela não será a mesma pessoa. Numa entrevista à Schön! Magazine, conta-nos como o foco narrativo da sua vida é pontuado por uma indexação contínua, deixando para trás ao mesmo tempo traços de vidas passadas e personalidade obsoletas: “Tenho grandes expectativas para mim mesma e para as coisas que quero alcançar”. A mesma revista descreve-a como uma pessoa cheia de determinação e firmeza, nomeadamente quando fala sobre o seu passado sem qualquer nível de arrogância, presunção ou condescendência: “Se eu passei por tudo aquilo, então tu também consegues”. Mereba está perdida na selva, mas deixem-na estar; depois de tudo aquilo que passou, ela sabe exactamente o que fazer.