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Fotografia: Lois Gray
Publicado a: 04/11/2024

Passado, presente e futuro confundidos.

Beautify Junkyards: “Estamos à deriva, em direcção a parte incerta”

Fotografia: Lois Gray
Publicado a: 04/11/2024

João Branco Kyron — que responde às questões abaixo colocadas —, Sergue, João Moreira, Tony Watts, Bernard Loopkin e Martinez são, agora, os Beautify Junkayrds, banda que se prepara para apresentar NOVA ao vivo em concerto no Lux Frágil, em Lisboa, dia 7 de Novembro. Neste novíssimo registo que volta a merecer edição da britânica Ghost Box, a banda lisboeta carrega na tecla tónica da electrónica e volta a investir em estudos de um tempo imaginado onde passado, presente e futuro se confundem.

Sobre NOVA, escreveu-se no Expresso:

“Quase ignorados dentro de portas e com raras aparições nos cartazes dos festivais que ditam o perfil do nosso presente, os Beautify Junkyards coleccionam referências elogiosas em imprensa musical de referência internacional, fazem digressões regulares no Reino Unido e em NOVA, o seu mais recente projecto, reúnem convidados de peso como o decano da coolness britânica Paul Weller, que co-assina, toca e canta em ‘Sister Moon’, a lendária vocalista dos psicadélicos United States of America, Dorothy Dorothy Moskowitz, que cobre de sépia ‘Turn The Tide’, ou Jesse Chandler, músico de uns tais Midlake, e Mercury Rev, que toca flauta em ‘Groundstar’.

NOVA refina a particular fórmula dos Beautify Junkyards, que partem da folk psicadélica e citam de forma inteligente um conjunto de referências específicas, como os já mencionados Broadcast e United States of America, mas também White Noise, Bruce Haack ou Boards of Canada, nomes-chave de diferentes períodos da música electrónica mais exploratória. E ao quinto álbum há novidades dignas de nota: uma nova vocalista de voz etérea, Martinez, um subtil reforço da componente electrónica nos arranjos e uma maior cedência aos impulsos experimentais, sobretudo no plano da construção de uma assinatura sónica — as canções soam, muito literalmente, como se tivessem sido gravadas na quinta dimensão”.

Kyron abre-nos agora as portas para o pensamento por trás do novo álbum e levanta o véu sobre a apresentaçao próxima no Lux.



Este é já o quinto álbum dos Beautify Junkyards em 11 anos. Nesta década bem medida houve mudanças no seio do grupo e talvez também uma recalibração da direcção musical. Começa, por favor, por falar no que existe de novo neste NOVA.

Tem havido mudanças ao longo do nosso percurso como banda, mas penso que a essência se tem mantido, que passa por uma constante sensação de aventura e descoberta, explorar territórios de criação menos iluminados, fundir diferentes épocas e linguagens musicais e incutir-lhes o nosso cunho pessoal. Para este álbum contamos com o valioso regresso de um dos membros fundadores da banda, o Bernard Loopkin, que esteve uns anos emigrado. Tínhamos já a ideia de tornar a electrónica mais preponderante neste álbum e o regresso do Bernard foi importante na concretização desse desejo. Destaco também que este é o primeiro álbum em que a nossa vocalista Martinez participou de todo o processo criativo, o que possibilitou uma experiência sensorial mais completa e que se reflecte bem nas vozes que criou e gravou.

Em 2013, quando os Beautify Junkyards surgiram, o mundo era um lugar muito mais pequeno e a verdade é que o universo dos BJ se expandiu: atenção da imprensa estrangeira, concertos regulares Europa fora, edições através da Ghost Box. Quando tantas bandas procuram a fórmula da exportação sem o conseguirem, o que acreditas que fez a diferença no caso deste projecto?

Vários factores contribuiram para isso, sendo talvez o mais importante exactamente o facto de não estarmos obcecados em reproduzir fórmulas, mas sim extravasarmos musicalmente os sentimentos que nos movem como pessoas. O facto de termos alguns melómanos na banda tem-nos permitido ter acesso a diversas correntes musicais, de diferentes geografias e épocas e perceber os seus pontos de ligação, que formam um certo fluxo contínuo de desbravamento, de subversão de normas. Depois é uma questão de sintonizar, interiorizar os elementos que nos fazem mais sentido e passá-los pela nossa forma peculiar de criar. Penso que a atenção cada vez maior da imprensa estrangeira se deve à música em si, que é resultado do que expliquei anteriormente, aliado ao facto de estarmos ligados a uma editora de culto num determinado espectro musical, que tem fãs por todo o mundo e também à nossa proveniência portuguesa, que introduz um factor extra de “exotismo”.

Uma das coisas que mais me fascina no universo sonoro dos BJ é a intrincada rede de referências que vos anima, inspira e guia a criatividade. Que nos podes adiantar sobre o material que vos guiou neste NOVA? Que leituras, visionamentos, audições ou experiências — viagens, reais ou imaginadas, exposições, etc. — foram importantes para chegarem até NOVA?

NOVA começou a ser idealizado durante as tours que fizemos a Itália e Inglaterra. Convivemos todos, como banda, com outros músicos e realidades e houve um senso de afinidade que serviu de elemento catalisador. Por exemplo, estivemos em Coventry num evento organizado pela malta da Deliaphonic, que se dedica a celebrar o trabalho de uma das pioneiras da música electrónica no Reino Unido, a Delia Derbyshire. Também em Londres, participámos de um evento especial da State 51 (distribuidora da Ghost Box), que além dos Beautify Junkyards, recebeu também concertos dos Memorials (que acabam de lançar um álbum brilhante) e do projecto Warrington Run-Corn New Town Development, ligado à importante editora Castle in Space. Posteriormente, já em Lisboa e após o regresso do Bernard, reunimo-nos para conversar sobre o álbum, mas sem abordar caminhos conceptuais, e sim lançarmo-nos o desafio de emergir a faceta mais electrónica e uma visão mais abstracta e citadina e submergir um pouco alguns elementos que tínhamos vindo a explorar em discos anteriores, como as raízes da folk e a ligação à tropicália. Bandas/projectos que adoramos, como White Noise, The United States of America, Fifty Foot Hose e alguns aventureiros da library por territórios do jazz e electrónica, como Piero Umiliani ou Basil Kirchin, foram um centro de gravitação para este álbum. Em termos de letras e componente gráfica, queríamos também que houvesse um recentrar de ideias, que acompanhasse essa aventura musical. Daí vem o uso de cut-up, disseminado pelo Burroughs e Gysin, as ideias de Guy Debord, de deriva e descoberta de realidades paralelas numa mesma cidade, desvios por recantos, encontrar pistas, sinais, plantar novas histórias. Tudo isso foi combustível para o universo lírico do álbum. Também o Julian House (um dos fundadores da Ghost Box e responsável por todo o universo visual/gráfico da editora) fez um grande trabalho de pesquisa pela imprensa underground dos anos 60/70 e pelos escritos e colagens do Guy Debord, resultando numa capa deslumbrante.

Podes falar um pouco sobre o processo de composição, primeiro, e gravação, depois, do material de NOVA? As canções nascem em trabalho colectivo, são fruto de trabalho colectivo em sala de ensaios, ou de aprimoramento de ideias individuais submetidas a essa apreciação colectiva? E como e onde decorreram as gravações?

As bases iniciais surgiram de experiências laboratoriais, breves melodias, texturas dos sintetizadores, samples rítmicos. Depois fomos desenvolvendo ideias em grupo e também sub-grupos, para explorar as possibilidades de cada instrumento em cada música, sessões específicas para bateria e baixo, guitarras e sintetizadores, outras só para trabalhar vozes. As gravações foram sendo feitas em estúdio caseiro ao longo de todo o processo, mas depois, numa fase final, fomos para o estúdio Bela Flor com o Artur David e aí gravamos baterias e o Artur misturou o álbum, com acesso a todos os “fornos” analógicos que o estúdio possuí. Também nessa etapa houve espaço e tempo para muitas experiências sonoras.

Em termos das ferramentas usadas na criação e gravação de NOVA há novidades a apontar? Há para aí algum sintetizador que tenha pertencido a Boards of Canada? Alguma guitarra de Nick Drake? Talvez tenham usado no estúdio algum tapete dos estúdios do Radiophonic Workshop?

Ao longo dos anos vamos colecionando synths, processadores de efeitos e todo o género de gadgets para gerar sons, mas por exemplo, nunca tínhamos tido o privilégio de possuir um Moog, algo que mudou para este álbum e que ajudou a moldar o som em algumas músicas. Também muito explorada foi a nossa Space Echo da Roland, apesar de já algo desgastada (o que lhe traz um certo charme) foi usada em batidas, vozes e instrumentos.

Há importantes colaboradores neste álbum: Paul Weller, Jesse Chandler e Dorothy Moskowitz. Como é que chegaram a cada um deles? Como decorreram os trabalhos de cada um? Aconteceu tudo à distância?

Sim, são colaboradores de peso e sentimo-nos afortunados por contar com eles no álbum. O Paul Weller surge devido à afinidade com a Ghost Box, tendo lançado pela editora um EP de música experimental em 2020. Nos 2 álbuns anteriores recebemos sempre os parabéns directamente dele, e quando foi convidado para editor da revista musical MOJO, pôs-nos em destaque e adicionou uma música nossa ao CD que acompanha a revista. Quando criámos a base do que se tornaria a “Sister Moon” achámos que o ambiente cinematográfico da música encaixaria de forma perfeita com a voz dele, decidimos então lançar o convite, que ele prontamente aceitou. Devo dizer que trabalhar com ele foi uma experiência incrível, apesar de ter sido à distância, estávamos em contacto constante de partilha de ideias e gravações, é um dos bons e uma figura lendária da música britânica.

Com a Dorothy foi uma experiência daquelas imaginada em sonhos. Como referi anteriormente, os The United States of America (banda da qual era vocalista e que lançaram em 1968 um álbum seminal, na fusão do rock avant garde, com a electrónica) são uma das nossas grandes fontes de inspiração. Durante o processo criativo de NOVA, descobri que a Dorohty estava em actividade e havia lançado um álbum com músicos italianos. Achámos que havia uma sincronicidade cósmica no ar e partimos numa jornada de tentar chegar a ela e lançar o convite. A partir de um jornalista da Shindig, conseguimos o contacto e enviámos um instrumental para ela ouvir. Ela adorou a música e as nossas ideias e a partir daí gerou-se uma ponte — passado, presente, futuro, como se de uma dobra temporal se tratasse. Quando ouvimos a gravação e a letra “Turn the Tide” sentimos que seria o fecho ideal para o álbum.

Com o Jesse Chandler, sendo nosso parceiro de editora (assina a solo como Pneumatic Tubes), já existia uma proximidade de amizade e admiração mútua. Já tínhamos conversado sobre uma eventual participação. Achámos que uma música instrumental permitiria explorar a flauta com maior liberdade, e assim foi, um instrumental mais jazzy a cair para o Basil Kirchin, com uns toques de Organisation, em que ele criou camadas de flauta levitantes.

Os Beautify Junkyards tornaram-se um dos nomes mais prolíficos no catálogo da Ghost Box, com três álbuns e dois singles já carimbados pela casa principal da hauntology. Podes elaborar um pouco sobre a dinâmica da vossa relação com a editora? O que dão e o que recebem nesta parceria?

A Ghost Box tem um roster reduzido e trabalha primordialmente com um leque de artistas que são muito próximos e com os quais há uma relação de afinidade e amizade. Os BJ são uma espécie de “irmão” estrangeiro, as nossas ideias povoadas por um imaginário “assombrológico” algo diferente, pré e pós revolução de 74, Espaço 1999, Prof Baltasar, mas em que a essência é muito semelhante, um imaginar de possibilidades de um futuro mais brilhante do que se tem vindo a verificar e a tentativa de suprir esse gap através da criação musical, que induz caminhos alternativos sociais e de vivência. Temos transportado para a Ghost Box esta nossa forma peculiar de estar e de produzir música e temos recebido todo o apoio, sem qualquer tipo de restrições criativas. Obviamente que parte da nossa projecção internacional nestes circuitos de música electrónica se deve ao facto de estarmos associados à Ghost Box, que é a casa matriz, e que tem sabido renovar-se.

E por falar em “assombralogia”: como é que se relacionam hoje com esse género? As ideias dos espectros que povoam as memórias, das marcas impressas no nosso inconsciente pelas horas que passámos em frente à TV numa era muito diferente da actual, continuam a ser importantes no vosso processo criativo? Sentem que já avançaram para lá desse terreno?

Na minha opinião, o termo sempre representou algo abrangente, que passa pelas nossas memórias pessoais, pelas memórias colectivas e também sobre o idealizar de rumos diferentes para o futuro, mesmo que não se venham a realizar, há esse anseio sempre latente. No fundo, há um constante jogo entre os desejos e as percepções que a realidade nos incute. A sociedade actual tem vindo cada vez mais a perfilar-se nos moldes diagnosticados por pensadores como o Mark Fisher, sem alternativas, assombrado por possibilidades exploradas sem sucesso, com o populismo crescente a alimentar-se das consequências do capitalismo selvagem praticado pelos financiadores desses mesmos movimentos, espalhando discursos de ódio e despertando a pior faceta de muitas pessoas — o racismo, a xenofobia, a intolerância com a diferença. Tudo isto para dizer que esse terreno criativo continua a fazer parte da nossa aventura musical, mas em constante mutação. Gostamos e identificamo-nos com a música de muitos artistas contemporâneos, não estamos presos com âncoras ao passado, estamos à deriva, em direcção a parte incerta.

Vão agora subir ao palco do Lux para a apresentação de NOVA. Tenho sempre a sensação de que este tipo de música, que se faz de muitos detalhes e de uma minúcia quase laboratorial, perde um pouco na transição para os palcos, mas devo dizer também que penso que os BJ sempre se defenderam muito bem nesse departamento. Como é que resolvem o novo repertório em palco? Há novos arranjos para peças passadas também?

Sim, no próximo dia 7 Novembro (quinta-feira) vamos apresentar o álbum no Lux e estamos ansiosos para o fazer. Dos discos anteriores vamos tocar apenas algumas músicas, com novos arranjos, e a primazia vai ser dada às músicas do NOVA. É, talvez, o nosso álbum que melhor se adapta a ser tocado ao vivo. Há uma dinâmica e arranjos que permitem estender as músicas, até mesmo por territórios do improviso. Vamos também levar um arsenal de sintetizadores e samplers para ajudar à festa.

Em que outras aventuras estão, colectiva e individualmente, empenhados nos próximos tempos? A família BJ vai ter novos rebentos em 2025?

Estamos agora a planear concertos fora de Portugal. Em Fevereiro andaremos por Espanha, depois Itália em Março, e em Junho queremos regressar ao Reino Unido. Em paralelo, andaremos em fase de criação de um novo álbum de Hidden Horse (já em formato trio), além de trabalhos solo do Bernard Loopkin e de Kyron.


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