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Publicado a: 19/11/2018

Batida: “O papel do DJ não é ensinar ninguém, mas tem de ser o de passar informação”

Publicado a: 19/11/2018

[TEXTO] Vera Brito [FOTOS] Inês Ventura

The Almost Perfect DJ, a performance artística que Pedro Coquenão, mais conhecido como Batida, tem apresentado mundo fora de há dois anos para cá, desde a estreia no Iminente, está agora também perpetuada no primeiro volume da compilação que assina com o mesmo nome, já com garantia de um volume dois a caminho, bem como uma peça de vídeo-documental que poderemos ver ainda este ano.

Fomos até ao Village Underground, a sua residência artística, com uma mão cheia de perguntas no bolso e rapidamente percebemos que mais do que uma entrevista normal iríamos ter uma conversa, quando começou por nos apresentar o espaço: o contentor onde trabalha, o seu candongueiro, veículo companheiro de muitas aventuras pelo qual não se coíbe de expressar um amor inestimável, com muitas histórias que dariam para várias outras peças.

Falámos de Lisboa, de Luanda, de música que é arte, de tocar lá fora, de pistas de dança, de “cenas”, de injustiças, de problemas sociais, de coisas que irritam, coisas boas e coisas más, mas sobretudo de partilha, de amizade e de como todos podemos fazer de tudo isto uma cena de amor.

 



The Almost Perfect DJ é um projecto algo diferente dentro daquilo que é o universo Batida. Se não estou em erro o primeiro concerto aconteceu na estreia do Iminente, a convite do Vhils, em 2016. Como é que te surgiu esta ideia?

Houve um convite do Vhils para participar no Iminente e onde, como em todos os festivais mais independentes, não havia dinheiro suficiente para eu conseguir apresentar a minha performance inteira — esta é a história verdadeira. Mas ele queria que eu participasse de alguma maneira, então falámos de 20 ideias diferentes por telefone e no final chegámos à conclusão de que não íamos ter tempo para concretizar nenhuma. Então disse-lhe “se não te importas vou fazer o que me apetecer e será qualquer coisa derivada de um DJ set”, porque no fundo o que ele queria era ter-me por perto e naquele cartaz e eu fui sensível a isso. Só que fazer uma rotina de DJ set, ainda por cima no mesmo palco do DJ Ride que, para além da técnica incrível, tem uma rotina de entreter um público como poucos, deixou-me a pensar no que é que eu poderia fazer que fosse acrescentar qualquer coisa de diferente. Não compito. Então pensei em apresentar algo que colocasse em questão a importância que é dada ao DJ. Antes da entrevista começar estivemos a falar de hip hop, onde o DJ é essencial. Se quisermos falar do início do hip hop, o Kool Herc é o nome em que normalmente começa a conversa, algures no Bronx, um DJ a cruzar breaks. A figura do DJ tem sido super importante, mas nos dias que correm transformou-se noutra coisa, que já não tem tanto a ver com o que ele escolhe ou passa — parece que já não há uma narrativa, tempo para comunicar, para sentir a pista, para nada. E a única forma que me ocorreu para me motivar o sair de casa e ir participar num festival, foi esta.

E depois o Vhils, ao referir que o Iminente era um festival de “artes e música”, provocou-me o suficiente para pensar “artes e música? Não percebo a necessidade. Para mim tudo é tudo. Então vou fazer uma coisa que não vai ser só musical”. E assim aconteceu, eu tinha carta branca e aquilo foi a minha tentativa de ser “artes e música” no palco do Vhils, de uma maneira que o provocasse a ele, provocasse o público, o Ride e todas as pessoas que lá estavam, mas de uma maneira amorosa, que é como acho que os amigos devem provocar os amigos, a cultura, a renovação. Pondo-nos em causa. A nós.

Eles já sabiam o que ias fazer ou só perceberam no momento?

Ninguém sabia de nada, levei o meu candongueiro, montei tudo ao lado e começaram as perguntas: “Mas não vais estar no palco? E a mesa? Mas precisas de colunas? Mas quem é que vai para o palco?” Então aquilo foi-se desenrolando e foram todos muito queridos na produção, deram-me tudo o que precisei, deixaram o palco limpo, com a cabine incrível do Ride já montada e eu limitei-me basicamente a ensaiar muito rapidamente a performance com a colaboração de um mais novo com quem já fiz outras coisas. Uma coreografia simples, em que as pessoas esperavam pela entrada do DJ, só que o DJ não era bem o que elas estavam à espera, mas ia assegurar o essencial: passar música para elas dançarem, sempre de braço no ar até ao final, que é algo que o Ride não consegue fazer, porque ele precisa dos braços para fazer scratches e mil outras coisas, e que o David Guetta também não consegue porque tem braços fracos. Não há nenhum outro DJ que consiga uma hora de braço no ar, o The Almost Perfect DJ consegue porque não é humano. Foi isso que quis evidenciar.

E foi bom porque o público do Iminente também não é um público generalista, é mais mais virado para a “música e artes” se preferires e senti que, no mínimo, iria ser tolerante a qualquer coisa que fosse mais invulgar. Foi um público que me facilitou a vida. Durante os primeiros minutos ficaram meio perdidos…

Mas ele não vai aparecer?

Sim e podiam ter assobiado ou vaiado, mas isso não aconteceu, ficaram só a tentar perceber o que se estava a passar e que depois deram o melhores feedback do mundo. Foi essencial para mim receber um abraço sentido do Vhils que veio vir ter comigo ao meu candongueiro a meio da actuação. Depois do respeito da equipa de palco que quando se apercebeu do que ia acontecer, terem alinhado naquilo tudo — senti muito amor da produção de palco e isto é muito importante porque ninguém faz nada sozinho. Sou muito sensível ao backstage e, no público, houve pessoal que percebeu logo ao início e adorou, como também houve quem só a cinco minutos do final é que percebeu que o DJ era um boneco de gesso. Então as reacções foram todas fixes. Quase perfeitas. Não foi só mais um espectáculo que foi bom, do Pedro ou de Batida, foi algo que acabou provocar reacções diferentes, tanto que no ano seguinte eu estive lá com este contentor e o manequim, e muita gente veio falar comigo, apontavam para o boneco e diziam “então foi ele que no ano passado fechou isto, não foi?” Ou seja, as pessoas conheciam mais o boneco do que a minha própria pessoa, gostei dessa ideia do herói ser um bocado de gesso e não necessariamente o meu corpo.

Então a ideia do The Almost Perfect DJ foi uma reacção ao desafio do Vhils para o festival de “artes e música” e de como estar com o DJ Ride sem ser redundante ou “baza pistas”. Ao mesmo tempo quis valorizar muito o papel do DJ, mostrando o quão ele por vezes é quase nada e pode ser tanto mais do que um gajo em cima de um palco com o braço no ar. E depois há ali uma metáfora escondida, para quem quiser descodificar, que é de que na realidade quem tem de mandar nisto tudo, somos nós, o dancefloor é quem valida o DJ. Se um DJ for mau, tu tens a escolha de te ir embora e não sustentares aquele exercício, e isto tu podes transpor para tudo: para a tua casa, a tua relação, para o sistema político do teu país, para o que tu quiseres. Mas na prática foi apenas a resposta a um desafio artístico de um amigo, fazer cócegas no corpo e cabeça e tentar divertir-me a fazê-lo.

E desde então isto correu tão bem que passados dois anos continuas a levar o The Almost Perfect DJ a outros palcos, sobretudo lá fora. Por cá apresentaste há poucas semanas no CCB: com têm corrido esses espectáculos?

Cá apresentei no CCB, num TEDx e também na Web Summit, no ano passado, porque me pediram um DJ set e como não queria ir apenas meter música para pessoas que estão a beber copos e a fazer networking — já há por aí muita gente que pode fazer isso — quis levar qualquer coisa que fosse também capaz de mexer com quem ali estava. O percurso desta performance tem sido altamente errático, tenho ido a sítios muitos diferentes. Levei-a ao Iminente em Londres, num daqueles clubes feios e sujos, mas onde as pessoas têm uma proximidade com a cultura da música de dança única. Fui também à Universidade de Nova Iorque em Abu Dhabi, que é aquele sítio em que tu pensas, “mas quem é que vai gostar disto? As pessoas de Abu Dhabi, claro”, onde actuei num auditório incrível lotado e em que toda a gente extravasou para lá do habitual. Na Bélgica, apresentei no museu Bozar, um sítio muito formal, mas que agora tem o Les Nuits Sonores, que é um festival muito esquisito e criterioso, e que saiu integrado um artigo na Trax, em que o jornalista fala de um grupo de artistas está a criar um novo raciocínio, que nasce da necessidade da música electrónica não ser só abstracta, estéril ou sexy, quando pode ser tudo o que quiser. Ele diz que o futuro passa por ali. Eu passei o artigo aos meus agentes e à minha mãe. Pode ser performativa se o quiser, pode ser discursiva e não tem de ser só uma coisa que deixa em aberto tantas outras. Pode ser como qualquer outro movimento artístico e deixou de o ser ao longo do tempo porque as artes foram sendo separadas, talvez porque apareceram indústrias que as trabalharam separadamente, mas nós como humanos não temos necessidade nenhuma de estabelecer essas separações na arte. Tudo é tudo. E as coisas estão todas interligadas se nós não as viciarmos a bem do lucro ou da preguiça mental. A indústria não quer porque não dá jeito, porque é uma confusão para vender. Todos alinhamos.

E o que tem acontecido com este espectáculo do The Almost Perfect DJ é: dificuldade enorme em vender e explicar, facilidade enorme em fazer o espectáculo e as pessoas reagirem bem. Estejam 100 ou 1000 pessoas a assistir é indiferente, depois de começar todas acabam por se relacionar, porque o espectáculo é feito a pensar nelas, não é feito a pensar no DJ. É feito a pensar no dancefloor e em dar-lhe o que ele quer, ou até coisas que as pessoas nem sabiam que queriam, mas que se calhar vão começar a querer, ou pelo menos vão para casa a considerar. O papel do DJ não é ensinar ninguém, mas tem de ser o de passar informação. E isto tem sido muito difícil de vender porque há uma ideia muito fechada do que é o DJ, do que é que é a banda, o clube, o museu, a arte moderna, do que é que é experimental ou mainstream. Tudo tem de ter um nome. Multi-disciplinar? Isso somos todos.

 



Falaste na Web Submmit e na tua actuação por lá no ano passado, nesta edição houve um dia com um palco dedicado à música com várias talks que abordaram impacto da tecnologia na música. E, porque estamos a falar muito sobre a importância e o papel do DJ, nesta Web Summit falou-se sobretudo em Inteligência Artificial, nas mais diversas áreas, incluindo na música e em todas as possibilidades que a I.A. está a criar na descoberta de música, como por exemplo playlists inteligentes, talhadas para o perfil de cada pessoa com base na sua pegada digital, algo que alguns defendem que irá em breve tornar o DJ obsoleto. Como é que tu, que descobres música que se calhar mais ninguém conhece, vês isto?

Eu acho que estamos ciclicamente a procurar medo. O ser humano parece que não sabe viver sem medo e, quando não temos medo, inventamos. Agora o “algoritmo” é o novo diabo, há uns anos atrás era o MP3, antes era a cassete e antes disso o disco – parece que há sempre qualquer coisa que aparece e que põe em perigo as coisas. O mundo está sempre a renovar-se, a reinventar-se, não está sempre necessariamente a melhorar, mas está claramente sempre em mudança e há coisas que são apenas estranhas até as entranharmos. Andamos sempre com medo, da mesma forma que o músico se sentiu ameaçado quando o disco apareceu, no entanto agora todos sabemos que a gravação não substituiu o músico — a gravação perpetua o músico. Estamos sempre a inventar Adamastores. Ciclicamente há coisas que nós achamos que vão acabar com as anteriores e que nos digam que a vida vai mudar e acredita que vai mudar várias vezes e tu tens duas hipóteses: ou acompanhas e tentas fazer parte e levar o teu amor com isso, ou então vais juntar-te aos velhos do Restelo [SAD].

Acho que o algoritmo não é uma ameaça, nada substitui ninguém, todas as pessoas são especiais, únicas e elas é que interessam. Se o Spotify te oferece uma playlist o que interessa é a forma como a ouves. A mesma selecção feita para várias pessoas pode ter efeitos completamente diferentes, uma pode emocionar-se, outra pode dançar, outra adormecer, podem acontecer mil coisas. O algoritmo por si só não é nada, é apenas uma fórmula. E a mim parece-me que tudo o que sejam ferramentas para facilitar o acesso à cultura, são sempre boas, depois o que vem a seguir é que é sempre mau. Tens o músico que muitas vezes não recebe o retorno ou o reconhecimento merecidos. Tens a música a ser utilizada apenas como entretenimento. Mas nada me parece mau por princípio, parece-me mau dependendo de como olhas para as coisas e a utilização que fazes delas. Se eu chegar a um sítio e colocar uma playlist random do Spotify a tocar pode significar muitas coisas diferentes: eu a ser preguiçoso, a provocar, humor, uma experiência artística, falta de respeito ou nada disso, posso ser apenas eu a querer fazer render um negócio porque não tenho amor, nem apreço pela música para perceber que a forma como a sequencio é que faz a diferença.

O algoritmo em si é só mais uma ferramenta para descobrir música e quem tem medo dele são DJs medíocres, que não se esforçam o suficiente. Mas se o DJ for medíocre, então por favor coloquem playlists de algoritmos a tocar. Se o DJ for um gajo romântico, que até trouxe coisas feitas em casa para experimentá-las ao vivo, como se fazia antigamente, ou se trouxe um músico ou alguém para cantar com ele, ou se tem algo para dizer ao público que não seja apenas “façam barulho”, então não há playlist que substitua isto. O tom da voz, a presença física, tudo o que é a complexidade de uma pessoa não será substituída por uma máquina. Fazia um B2B na boa, com um DJ I.A.

É como quando surgiu a televisão ou o telemóvel, as pessoas achavam que não iriam mais falar umas com as outras. Isso pode acontecer mas não é por culpa da tecnologia, é por opção própria porque as pessoas não têm amor suficiente para dar ou partilhar. E acho que temos muito a ganhar cada vez que nos damos um bocadinho uns aos outros e conversamos. É como esta entrevista, nós temos que nos dar a isso, senão não estamos cá a fazer nada, senão metia um algoritmo aqui com respostas incríveis, porque eu já fiz entrevistas suficientes para saber como fazer uma incrível e ficava o assunto arrumado.

Nem precisavas estar aqui à minha frente…

Não, enviavas-me um email e assunto resolvido. Até porque não vou dar muitas mais entrevistas, não o costumo fazer nos meus outros projectos, mas com o The Almost Perfect DJ optei por o fazer porque não é só o meu espaço que está em causa, é o espaço dos artistas que estão na banda sonora e o statement que a performance tem em si e que merece uma discussão. E eu gosto de ser questionado porque aprendo com isso, e acima de tudo porque também o quero divulgar, mas também não quero fazê-lo a todo o custo. Então tens de te dar a isso, não pode ser um algoritmo ou um press release a fazê-lo por ti.

Regressando à compilação do The Almost Perfect DJ, que lançaste recentemente, surgiu como consequência do espectáculo ao vivo ou era algo que irias fazer de qualquer maneira?

Nunca pensei nessa questão. O The Almost Perfect DJ, tal como o nome Batida, são coisas que vão acontecendo. Como o foram a “Fazuma”, o “Copa Reggae”, o “É Dreda Ser Angolano”, e o Almost Perfect DJ, que foi uma reacção, quando comecei perceber que as pessoas gostavam do projecto nas minhas actuações, então tentei fazê-lo um pouco melhor. Enquanto houver interesse e um impacto vou sempre tentando tornar as coisas mais completas. E o DJ set do The Almost Perfect DJ parece que é uma coisa secundária, dada a performance em si, onde a conversa gira em torno do DJ ser um manequim e do discurso, e muitas vezes as pessoas esquecem-se de mencionar uma coisa importante: uma boa parte do set é quase sempre feita com artistas portugueses e angolanos que me são próximos, queridos, admirados.

Já me perguntaram numa entrevista para a Trax o porquê ser tão ultra localista no set. Se um espanhol for pôr música, a maior parte vai ser espanhola, se for um inglês então muita será inglesa e ninguém irá questionar isso. Essa pergunta faz-nos perceber que nós não temos mesmo grande importância no mundo da música fora daqui. Passar música de um país chamado Portugal e de outro chamado Angola (estamos a falar de milhões de pessoas) parece que é ser ultra local, isto quer dizer o quê? Passares só coisas de Lisboa e Luanda é pouco?! Claro que não deves ser nacionalista e não deves ser geográfico ao fazer a tua escolha, mas também podes sê-lo por uma questão que é justificada por essa mesma pergunta. Porque não? Porquê ir mais longe? Descobrir o que já lá estava?

E o que eu quero dizer é o seguinte: é sustentável ter uma hora de pista com músicas, muitas delas desconhecidas, de artistas que não estão todos na mesma cena, porque a cena de Lisboa tem muito de Luanda e de muitas outras coisas, mas nós raramente as vemos juntas. Separamos-nos por editoras e por noites e por temas. Eu acho que as pessoas ainda não perceberam que apesar de ser uma performance artística, uma parte essencial daquilo é a música que eu toco, em que muita dela não foi sequer editada — é “unshazamable”. E faço-o para despertar essa curiosidade. Se quiseres saber que música é vais ter com o DJ, perguntas e arriscas-te a duas coisas: não te vou dizer porque sou competitivo ou então respondo ainda bem que vens perguntar, fui eu que a fiz, ou então é de um amigo meu incrível que tu tens de conhecer. Já me aconteceu estar em Londres e o Norman Jay, que é um senhor com uma cultura musical invejável, vir-me perguntar o que é estava a tocar, na altura acho que eram os Spaceboys, entre outras coisas, tudo cenas ultra locais e ele não me pareceu nada preocupado com isso.

Então isto acaba por ser um statement não tanto para o português, mas para quem nos ouve lá fora, de que não temos de chegar a um sítio e fazer um set que tem de ter aquele gajo que vai rebentar com a pista, podes fazer um set inteiro de música de Lisboa e de Luanda e só vais ver gente a dançar. E a compilação em vez de ser só eu, são 11 músicas feitas ali naquela zona de amor entre Lisboa e Luanda. A compilação perpetua a performance e existindo em disco pode ser ouvida a qualquer momento, e uma pessoa chegue a ela vai questionar-se sobre muitas coisas: “Que ligação é esta entre Lisboa e Luanda? Porque é que este gajo pensou nisto? Quem é este Celeste Mariposa? Eu pensava que a música dele era mais afro baile, que música é esta tão melancólica?” Então há uma série de preconceitos que o disco pode esbater, um deles é a qualidade internacional de pessoas que não são sempre as mesmas e onde me incluo.

Há aqui obviamente muitas coisas minhas, mas há essencialmente interacções, por exemplo, eu nunca tinha feito nada com o Branko, o que é estranho, e achei que aquela música dos dois ficou fixe, não por ser uma bomba, mas porque acho bonito estarmos os dois juntos numa música, é uma cena romântica minha. Assim como acho bonito estar com o Satelite, ou como acho bonito pegar em músicas do Wilson que ninguém conhece e passá-las em Lyon e ver toda a gente a dançar. Esse orgulho que às vezes me chateia, outras vezes também me chateia a falta dele.

E nesta compilação está representada uma certa africanidade, como também está representada uma certa portugalidade, e está representado, acima de tudo, o meu gosto e o meu amor. Não estou a representar ninguém em particular, estou representar o meu amor e a chamar a atenção para algumas coisas que são óbvias para mim, como para outras que não são nada óbvias para ninguém. O Nazar é um exemplo óptimo: zero atenção por cá e agora passou de não ter nenhum disco editado para assinar um contrato com a Hyperdub. Isto é um atestado de incompetência a todos os que tiveram contacto com ele mas não prestaram atenção, e é um atestado de competência a ele porque insistiu no seu sonho e conseguiu. Então esta compilação é mais uma tentativa de valorizar a unicidade, a resiliência e a integridade. E não estou a exagerar, o tema do Nazar é brutal. Bazuka 2.0.

Ia também perguntar-te quais as tuas faixas favoritas desta compilação mas se calhar já tenho aqui a resposta…

É horrível estar a dizer “favoritas” porque eu sou mesmo super grato a todos terem acedido ao convite à primeira e de terem percebido que ele é essencialmente romântico. Mas se eu tiver de escolher assim sem pensar nada: a música dos Spaceboys, que tem de ser relembrada sempre que possível. Marca um momento. É muito funky e não é afro-angolano ou afro-moçambicano. Tem tanto de Sun Ra como tem de Fela Kuti. Gosto também muito do que fiz com o Satelite, o “Aquecedor”, porque é um tema em que somos apenas nós a levitar durante uma tarde inteira. É uma música para dar conforto e algum tipo de calor. Foi o meu “bem-vindo, Satelite”. A do Celeste Mariposa adoro, sou completamente fã e ouço-a muitas vezes. A do Nazar tem uma cena muito dele e segue um eixo muito diferente, onde entram os Justice e o Woodkid.

 



Volume 1 quer dizer que podemos esperar pelo menos o 2?

Sim, o Vol. 1 é uma piadinha, mas sim é o antecessor ao 2, que já está alinhado, faltam algumas coisas, mas tem muitas músicas especiais, inéditas, subvalorizadas e incríveis. O alinhamento já está feito e vai sair no início do próximo ano, há mais de onde este veio.

Talvez também o Vol 3?

Sim, pode acontecer o Vol 3. Mas para já só o Vol. 2 está garantido, eu não pensei no 3 porque quando faço estas coisas não penso em alambazar-me, a minha ideia é mais provocar. E neste caso o que eu quero mais é que surjam 500 compilações derivadas desta, de outras coisas e que misturem tudo. Deixar a compilação picar pessoas e se calhar a seguir o Moullinex que faça uma e que me convide e eu participo, ou o Branko, ou a Príncipe, não sei, mas que nos façam descobrir coisas novas, porque há muita coisa a acontecer que nós desconhecemos e não devemos controlar ou dominar.

Falámos um pouco do termo Lisbon Scene antes da entrevista começar. E recordo-me de há pouco tempo um amigo meu de Londres ter vindo cá passar uma temporada e pediu-me para lhe aconselhar concertos ou clubes para visitar porque, segundo ele, conhecia e gostava muito da Lisbon Scene. E eu embora tivesse percebido do que ele estava a falar, fiquei sem saber bem o que lhe responder. Achas que esta Lisbon Scene, tão falada lá fora, é algo mais para quem nos observa de fora ou também está presente para as pessoas de cá?

É um flirt, é como a Madona, as pessoas não conseguem dizer que não. Quem comercializa a música, quem é presidente da câmara, quem é DJ, temos todos a ganhar com isto. Existe de facto uma “cena”, agora o que é que representa? A cena, para já não sei quem é que usou pela primeira vez esse termo, mas claramente deve ter sido um jornalista inglês ou americano. O jornalista conhece o gajo da editora, ou o manager, ou não sei quem e decidem criar uma cena. E a pessoa que é objecto da cena, ou que faz parte dela, para ela acontecer, alinha. E alinha nem que seja ficando calado. Acho que podemos ser um bocadinho mais dignos e perguntar “referes-te ao quê exactamente?”. Para a cena ser real têm de existir várias coisas para mim. Eticamente tem que haver referências, créditos a quem e de onde bebeste e comeste as coisas, que ingredientes é que usaste. Eu tenho de creditar o rabo do meu tio, o da minha tia, a comida e a música que punham a tocar, mas também o meu primo por todos os discos de break que mandou vir, e podia ficar aqui a entrevista toda. No final, é a digestão que fizeres disso que nutre o que fazes. Não é uma cena. São bués.

Já tivemos muitas outras “cenas” que nos aconteceram cá, por exemplo o Frágil foi uma cena, o António Variações foi uma cena, os Heróis do Mar a certa altura também me pareceram uma cena, a Kaos foi uma cena, a Nylon também. São cenas que nos têm acontecido e que têm o valor das pessoas que estão nelas envolvidas, portanto eu valorizo muito o trabalho delas. Principalmente porque esta “cena” a que o teu amigo inglês se refere é feita por editoras pequenas, as editoras grandes, com todos os meios, têm de andar a correr atrás desta “cena” porque ninguém vem de Londres, com todo o respeito, para vir ver o que a Sony ou o que a Universal tem para oferecer, porque essas estão a descobrir redundâncias, estão a replicar receitas. São boas para distribuir. Perderam o comboio. Só que são amigas ou donas da fábrica de aço que faz os carris.

Por acaso ele referiu que conhecia a Enchufada.

Enchufada? Ok, então é a Enchufada, tem um nome, são três ou quatro gajos a matarem-se a trabalhar, não é uma “cena”, não é uma tribo sequer, é a Enchufada ou a Príncipe, ou o que seja, não é Lisboa, tem nomes, tem pessoas. E não é só a Príncipe, é o LiloCox, é o Marfox, é o Nigga Fox, etc, são as pessoas que a fazem. No caso da Príncipe há obviamente alguém que trabalhou aquilo tudo muito bem estética e conceptualmente, com o feedback que foi tendo fora, mas são as histórias de cada pessoa que fazem o disco, a curadoria é super importante mas a pessoa e o artista não podem ser secundários, isto não é a Motown ou o Studio One. Aqui as pessoas estão a fazer coisas em casa, coisas que lhes saem do coração às três da manhã sozinhas, se tudo correr bem. Portanto são coisas muito íntimas, muito pessoais. Então como é que essas pessoas estão a surgir aqui? Venham cá conhecê-las.

 



Qual seria um bom termo para ti?

Para mim seria Lisboa ser uma cena de amor, que é algo que podemos ter aqui. Estamos num ponto em que o mundo inteiro está a extremar-se e Portugal é ainda um país bafejado por relativa sorte em muita coisa. É um país muito misturado, no melhor sentido da palavra. Se sobrevivemos até agora e conseguimos passar por isto tudo, com gente a partir para e a chegar de todo o lado e não nos estamos a dar assim tão mal, podemos ser se quisermos, mesmo a sério, o país mais fixe que existe. A verdadeira Lisbon scene para mim devia ser isto: assumir o movimento de amor que nos une, conhecermos-nos um pouco melhor, perceber o que é que há e o que falta para ficarmos mais próximos, juntos. Haverão sempre algumas disparidades, tudo leva o seu tempo, mas tem de haver o mínimo. Temos de desejar a utopia. E fazer. Todas as pessoas que cá estão, independentemente da sua origem, que contribuem com um cartão ou sem ele, que de cá se sentem, merecem ser abraçadas e agraciadas com o amor e com a decência que este país deve oferecer a toda a gente. Esta cidade para ser uma “cena” e para merecer apropriar-se desses amores todos que nos chegam de África ou da América do Sul, etc, tem de corresponder com amor, não pode ser só um flirt. Leis da Nacionalidade sem famílias dividas entre dossiers ou cortadas por mapas desenhados com réguas por quem nunca lá esteve. Temos de limpar isso. Sem qualquer equívoco. Não podemos tolerar a intolerância. O racismo e todas as formas tem de discriminação, não podem ser discriminadas, relativizadas. Falo de leis, de vontades e compromissos políticos e sociais sérios. Sem merdas. Sem meias palavras. Amor.

O que eu espero com este disco é que seja uma cena de amor, do tipo: vejam como nós até conseguimos falar uns com os outros e entendemo-nos, olha como saiu esta compilação. Vamos ficar ricos com isto? Não me parece, mas pelo menos tu já podes indicar ao teu amigo “olha, se quiseres ter uma ideia do que é a Lisbon scene, ouve este disco e vê o que gostas mais”. Para mim a “cena” é mais essa, é criar uma cena de amor entre nós e não nos deixarmos vender como outras “cenas” foram vendidas e depois esgotarmos-nos daqui a uns anos porque a “cena” não era verdadeira, porque não vinha de uma zona inexplicável, intangível. Porque só tinha um fornecedor que entretanto fechou.

E respondendo à tua pergunta depois desta dissertação toda, Lisboa, se quer ser uma “cena”, tem de ser uma cidade que apoia a cultura local e que a aceita como ela é, e que não a tenta forjar, branquear ou condicionar. Lisboa devia ser para o resto do país um exemplo de equidade, de amor, e assumir que todas estas coisas que os estrangeiros tanto adoram, são coisas que são nossas e que amamos. Que Lisboa pode ser uma cena de amor com gente de todo o lado, onde não há imigrantes ilegais, não há pessoas sem documentos, não há burocracias a lixar pessoas, não há qualquer sentimento de racismo, nem ligeiro nem de forma nenhuma. E ela mesma, não se deve sobrepor ao resto do país. Lisboa é também enriquecida por todas as pessoas que chegam de todas as localidades dentro do país. Assumir sotaques. Não forçar exotismos. Aceitar o pagão.

Regressando ao The Almost Perfect DJ, deste ao espectáculo que apresentaste recentemente no CCB o nome de Farewell Tour. No entanto com a compilação que acabaste de lançar parece-me que, em vez de uma despedida, faria mais sentido encontrar-te com este The Almost Perfect DJ em mais uma série de palcos, não?

“Fake” Farewell Tour, porque acho que não há nenhuma despedida que seja para sempre. Normalmente quando se diz farewell tour é o mesmo que dizer “vá, marquem shows agora porque isto vai acabar” e é isso que eu quero. Eu fui parar ao CCB sem saber muito bem como, com a ajuda da minha agente, não me chovem propostas, e eu toco muitas mais vezes fora daqui. Mas não tenho ideia de começar nem de acabar nada, a minha existência como artista cá e a de todos os que estão na compilação depende muito da cena existir e aparentemente ela vive mais dela própria do que dos programadores. A noite da Enchufada existe por ela própria, a noite da Príncipe igual, a Casa Independente igual, há também o ignorar de todos os clubes que passam música africana desde sempre e onde se encontram DJs Sul Africanos que nunca pensei cá ver ou angolanos que não cabem nos cartazes mais “fancy” e depois há agentes fora deste país que felizmente convidam estes artistas para irem tocar fora. Eu cruzei-me mais vezes com todos eles fora daqui do que cá.

Por isso há pouco te perguntava que parece que a cena de Lisboa bate mais lá fora que cá…

É uma cena projectada para fora, era o que eu te dizia. E Lisboa é incrível, porque tem um bocadinho de montes de coisas. As minhas cidades favoritas no mundo são Lisboa, depois desta conversa é importante que eu diga isto, eu adoro Lisboa, adoro Cape Town, Nova Iorque, São Francisco e nunca fui lá, mas tenho uma paixão por essa cidade deste miúdo. As cidades que eu gosto são estas onde todos os que venham por bem, chegam e encontram um sítio em que se encaixam, que podem chamar de casa. Esta coisa bonita que nós sentimos em Lisboa, de poder haver diversidade, eu só gostava mais é que fosse um amor e não tanto uma de cena amante. Gostava que fosse um amor assumido, um compromisso, um amor sério. O amor ser a palavra que prevalece, em vez de “temos uma cena”. Amamo-nos. Ou, pelo menos, estamos apaixonados.

Foi por isso que juntaste tanta gente diferente nesta compilação, para mostrar toda essa diversidade e o amor que as une?

Foi e disse-lhes a eles mesmo, ao Branko, ao Moullinex, a todos. O que me faz lembrar o exemplo do Red Bull Music Culture Clash em que participámos há uns anos. Aquilo foi bonito, eu estive noutros exemplos daquele evento como em Manchester, onde houve violência verbal, agressão, homofobia, sexismo, houve de tudo, tudo mau e a nossa cá foi incrível, o esforço que todos puseram, o que nós conseguimos fazer ali foi bonito. Isto para dizer que quando a malta se junta e se cruza, conseguimos fazer coisas fixes. Sardinhadas e tal. E entre artistas acho que podem haver mais colaborações que sejam naturais, não têm de ser forçadas. A cena tem de ser mais baseada em amor e em partilha, nós somos tão pequeninos, somos mais pequenos que a cidade de Londres inteira e se queremos ter essa força, e podemos tê-la, nós podíamos estar a exportar imensa música. Há um potencial enorme à volta da cidade. A Lisboa de que se fala é, muitas vezes, tudo o que a circunda. Mas voltando aos números, à consequência e viabilidade das coisas: Os ingleses fazem imenso dinheiro com música. Haja vontade política. Haja mais meritocracia.

Acho que falta um bocadinho de amor só para a cena ser mais única e não ser só mais uma cena, porque nós não temos a mínima hipótese com qualquer coisa que os franceses, os ingleses ou os americanos criem, e isto que nós temos é realmente diferente do que acontece nos outros sítios. O Satelite quando chegou cá perguntou-me “Pedro, qual é que é o som de Lisboa?” Disse-lhe: Tens o fado, é o som daqui, como é de escravos também, mas o som urbano dos jovens é uma mistura de muitas coisas, tem um bocadinho de Luanda, do Rio de Janeiro e o que surgem são coisas que em vez de parecerem cópias, tu não consegues bem catalogá-las — esse é o som de Lisboa. E eu lamento que isso não seja mais valorizado e assumido. Mais familiar. Menos cenas. Compromisso.

E a compilação é uma declaração de amor aos DJs, às pessoas que dançam sem pensar em nada e é sempre uma tentativa de iluminar coisas menos óbvias. E no caso desta, o objectivo não é fazer um best off e ir buscar o melhor de toda a gente, é sim mostrar inéditos, coisas mais obscuras e depois, há sempre ali uma dose de auto-promoção que é assumida. O DJ promove-se sempre. Portanto há esse lado também, mas é um bocado uma vaidade e orgulho meus em poder dizer “reparem como até consegue nos damos bem a fazer música e a dançarmos juntos. Acho que ficamos bem na fotografia juntos. Até parece que somos um granda cena”. Pode ser que a seguir as coisas aconteçam.

 


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