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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 13/07/2020

A plataforma necessária.

Batida no São Luiz: desconstruir o algoritmo e os seus preconceitos

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 13/07/2020

É estranha a sensação de nos voltarmos a sentar numa plateia após tanto tempo obrigados ao consumo cultural via computador. Entrar num espaço, olhar para o palco e ver como está decorado, apreciar a venue enquanto esperamos sentados pelo começo da actuação e vemos mais pessoas chegar, quem sabe encontrar uma cara conhecida de surpresa, sentir a música que ouvimos de forma mais física graças ao sistema de som que não se limita às colunas que temos em casa, ter uma ligação sem ecrãs pelo meio com os artistas, que também ainda não sabem bem como se comportar nestes tempos, e poder viver finalmente o maravilhoso fenómeno colectivo que é um concerto: tudo isso faz parte da experiência que fora apagada por motivos de força maior.

Mas, à medida que o tempo passa, vamos voltando lentamente a encher (dentro dos possíveis) salas de espectáculos, agora com hábitos diferentes, como os da distância de segurança e da constante utilização de desinfectante, deixando finalmente de parte as já cansadas live streams, que foram usadas sem decoro ao longo dos últimos quatro meses, e voltando ao formato “stream live”, como nos disse a voz-off que nos introduziu ao espectáculo The Algorithm Is Not African!, criado pelo artista luso-angolano Batida, a que pudemos assistir no passado sábado, dia 11 de Julho, no São Luiz, em Lisboa, no âmbito da parceria com do teatro o Musicbox.

Quem já viu Batida ao vivo sabe que não é um DJ comum. Gosta de construir espectáculos detalhados, únicos e dinâmicos, que puxam de um lado performativo que raramente vemos por parte dos artistas que passam discos. Seja tocando dentro de um contentor, seja metendo um manequim no seu lugar durante um set inteiro, seja incluindo bailarinos e performers, Pedro Coquenão gosta de criar experiências especiais para aqueles que se movem para o ver, sem nunca deixar de parte os aspectos políticos da sua arte, o sentido de humor e a música tradicional angolana.

Após várias introduções, umas mais formais, outras mais na brincadeira, o músico ocupou finalmente o palco (na verdade, ainda saiu para ir buscar a máscara, que afirmou usar “como conceito”), sentando-se no confortável sofá que tinha em palco. O ambiente era caseiro, tendo estantes com livros e vinis, um grande tapete, quadros e até mesmo uma televisão no cenário. Após meter o som de grilos gravados nos arredores de Luanda para criar um ambiente ainda mais confortável e tranquilo, explicou-nos que não iríamos assistir a um concerto, apesar de não saber bem o que seria. As projecções que apareceram no fundo do palco eram de uma câmara que o ia gravando em palco, trocando de ângulo a cada música e criando a sensação de estarmos a ver, ao mesmo tempo, o espectáculo e a live stream dele mesmo.

E começámos a ouvir as batidas que nos trouxeram até ali. Iniciando com ritmos de dança pesados, que mataram as saudades que tínhamos de ouvir frequências graves que nos deixam a tremer fisicamente com a sua intensidade, foi inevitável não dançarmos, mesmo que sentados nas cadeiras. Seguiu-se uma versão de “Mona Ki Ngi Xica” de Bonga, na qual cantou por cima uma versão traduzida para português de “Psycho Killer” dos Talking Heads, e ainda outra música do lendário músico angolano. De seguida apresentou-nos o parente angolano do instrumento brasileiro cuíca (conhecido em Angola como pwita), transportando-nos para auras mais tribais e tradicionais, que continuam na faixa seguinte, na qual um performer, neste caso André Cabral, que entrara há algum tempo, mostrou os seus moves de voguing enquanto personificava um gato.

Com a discussão sobre a situação global de pós-colonialismo que continua a existir nos dias de hoje em perspectiva, Batida mostrou um quadro do mapa de África, utilizando as fronteiras, que mais pareciam desenhadas com uma régua, dos países africanos como exemplo do que acabara de falar, tudo isto enquanto ouvíamos a música de David Zé, músico angolano anticolonialista que foi assassinado em 1977. No fim desta parte, vê-se a bandeira angolana ser hasteada pelo performer no centro do palco. Não há caminhos sem saída nos conceitos de Coquenão…

O espectáculo seguiu, então, o tema dos algoritmos. E aí deram-se exemplos de como pesquisas no Google e YouTube apresentam também elas uma hegemonia, dando o exemplo de se pesquisar “Africa music” e o primeiro resultado ser a “Africa” dos Toto. E esta foi a deixa para Nuno Markl, com uma bandeira às costas e uma fita arco-íris na mão, se soltar em palco e dançar freneticamente ao som da música, causando um dos principais momentos humorísticos da noite. Sempre com um encadeamento narrativo que não se enrola em si mesmo, o autor de Dois abordou a diáspora africana, mostrando que, ao pesquisar-se “Out of Africa”, o primeiro resultado é o título desse mesmo filme protagonizado por Meryl Streep. Mostrou-se uma das frases de abertura do filme, “I had a farm in Africa” (que traduz para “ai que saudades que eu tenho daqueles tempos”), e o foco dirigiu-se para o performer, que se apresentou com a sua técnica clássica de ballet numa coreografia que emocionou.

O espectáculo terminou na semba e no kuduro, a primeira acompanhada por Mary Feliciano, a outra dançarina de serviço, e o segundo pelo bailarino já em palco. A ligação é simples: tal como em muitas culturas em África, estes dois termos representam em simultâneo a dança e a música, acabando, no fundo, por não criar a distinção entre a expressão sonora e a corporal. Na última música, o músico leu um texto que escreveu sobre os momentos que vivemos e as tensões raciais que se têm mostrado cada vez maiores, especialmente com o movimento Black Lives Matter, passando por referências ligeiras a “Pobre e Rico”, tanto na letra como nos sons que utilizou.

Batida enfiou muitas informações diferentes nesta apresentação, desde o roteiro sonoro que fez pela cultura angolana, à introdução que fez ao Visconde de São Luiz de Braga, o empresário oitocentista que deu o nome ao teatro onde estávamos, à passe da sua Internet, que teve a amabilidade de partilhar connosco caso quiséssemos fazer live stream ou estivéssemos entediados, à introdução da “prima” angolana da cuíca, ao questionamento da nossa identidade enquanto Homo Sapiens Sapiens e as nossas raízes, a referências a filmes americanos como Do The Right Thing, à Africa pós-colonial, a sua diáspora e o imperialismo que gere o mundo e transforma o continente mais rico em recursos no mais pobre economicamente: todos estes temas foram, mesmo que de forma breve, abordados em cerca de 1h20m que The Algorithm Is Not African! durou. Pedro Coquenão fez este trabalho, fruto do confinamento que tem feito ao longo dos últimos meses, e isso demonstrou-se-se na estrutura solta do espectáculo, que vai constantemente mudando e tema e de referências, como se estivéssemos a ter uma conversa em sua casa depois de uma jantarada, interagindo imenso connosco (inclusive com a sua mãe) enquanto nos contextualizava com a sua colecção infinita de discos e referências.

É importante — sempre foi, mas nos tempos que correm a urgência parece ainda maior — que as salas de espectáculos sejam ocupadas com discursos que lutam pela igualdade e equidade, com o lema da justiça social bem presente. Num país como Portugal, que tem muitos complexos com lidar com o seu passado colonial, derivado da narrativa luso-tropicalista, cujas ruas e monumentos ainda prestam homenagem a um lado da história que ignora todas as calamidades feitas ao longo de mais de quatro séculos, e enquanto ao mesmo tempo negam a existência de racismo, há uma urgência de desconstruir a ideia de bom colonizador e de que esses tempos fazem parte do passado e não afectam ainda hoje milhões de vidas. A arte ajuda-nos muitas vezes a perceber um outro lado da história, que desconhecemos ou ignoramos para nosso benefício, que não é contado nos livros de História do terceiro ciclo, e é esse um dos trabalhos de Batida: celebrar com alegria a cultura angolana através dos seus sets e oferecer-lhe a sua plataforma (o músico tem a capacidade impressionante de tratar assuntos sérios de forma leve e humorística). A sua “voz” é utilizada para nos mostrar a música que o inspira na esperança de nos inspirar também a nós, não só culturalmente como enquanto pessoas. Lição aprendida e missão cumprida.

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