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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/05/2021

As conclusões reveladoras de um trio de bateristas.

Bateu Matou: “Lisboa tem uma coisa muito nossa que ninguém sabe bem o que é que é, mas toda a gente sabe de onde é que vem”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 14/05/2021

Se é para medir o pulso a Lisboa, se é para contar o número de batimentos cardíacos por minuto que faz com que esta cidade funcione a um ritmo diferente das do resto do mundo, então escutar o que Bateu Matou faz oferecerá uma boa resposta ao que se procura.

Joaquim Albergaria (PAUS), RIOT (Buraka Som Sistema, Enchufada) e Ivo Costa (por onde começar com este homem que toca com toda a gente, de Sara Tavares a Carminho e mais além?…) criaram um ser híbrido e mutante que se apoia em três baterias e que caminha de forma personalizada sobre uma paisagem que acolhe o semba e o funaná, o samba e o funk carioka, o hip hop, o trap, o kuduro e o que mais nos possa fazer dançar. De um projecto pensado inicialmente para os palcos, com os três bateristas a assumirem as responsabilidades perante a pista que normalmente são atribuídas aos DJs, evoluiu-se para uma criativa visão que tem a ambição de transformar batidas em canções e canções em futuro material para mais pistas e mais palcos.

Para tanto, Ivo, Quim e RIOT chamaram uma série de aliados: Papillon e Scúru Fitchádu, Pité e Toty Sa’med, Héber Marques e Blaya mais Favela Lacroix e ainda Irma assumiram os microfones e colocaram palavras, ideias e sentimentos dentro das batidas. O resultado é Chegou um álbum que representa apenas o início de uma história que o trio garante ter futuro.

Numa chamada Zoom, Ivo Costa, RIOT e Joaquim Albergaria desmontaram processos criativos, revelaram onde estão os lugares de encaixe de cada um neste projecto e ainda discorreram sobre a Lisboa pós-Buraka em que descobriram o seu lugar. E essa Lisboa, asseguram eles, é o melhor sítio do mundo neste momento para se fazer música. E para dançar também, vamos todos voltar a descobrir assim que as pistas possam reabrir. para já, nada impede que se coloquem os auscultadores, se feche os olhos e se faça play em Chegou. E, no próximo dia 28 de Maio, pelas 21 horas, poderemos todos conferir no Lux esse pulso que está vivo e é nosso.



Encontram-se num estúdio, mas em qual?

[Joaquim Albergaria] Este é o Pimenta Preta, onde fizemos maior parte do trabalho do disco. É o estúdio do Ivo com o Gonçalo Pimenta. 

Vamos começar pela parte técnica — estavas a dizer que o disco foi essencialmente gravado aí. Como é que foram essas sessões e em que altura é que decorreram? Este é um disco criado durante a pandemia, certo?

[RIOT] Foi precisamente por estarmos na pandemia que decidimos juntar aqueles áudios todos que já tínhamos feito. A brincar a brincar, Bateu Matou já anda a tocar e a experimentar sonoridades há dois anos. Formatos diferentes e estéticas diferentes, à procura do som. E então pegar nesses snippets de áudio, nessas ideias, nesses loops, nesses sons que não eram canções e trazê-los aqui para o estúdio do Ivo, um local seguro onde estávamos basicamente fechados de manhã à noite, pareceu-nos uma boa ideia. Pegar nessas ideias e transformar esses sons em canções aconteceu aqui. O Quim ia trabalhar e voltava, um dia vinha primeiro o Ivo e ficava a fazer não sei o quê e depois vinha eu. Mas o processo criativo foi quase tudo feito aqui neste estúdio, em Carnide. 

[Joaquim Albergaria] E a dois tempos. Ou seja, o que é que era o beat e o que é que era a ideia de canção e depois trazer vozes. Os temas sofriam obviamente alterações. Se fôssemos ouvir o que era o “Clichê” antes do Papillon, era pista. Era um beat de pista puro e duro. E isto aconteceu para todos. Alguns são mais recentes, alguns têm mais algum tempo, alguns já tiveram várias iterações com outras ideias de voz. Por exemplo, o “Bandido” teve dois vocalistas diferentes e o refrão que está escolhido deve ter para aí 15 variações diferentes. Mas o pressuposto do processo foi esse: primeiro beats e hooks e depois ver como é que as vozes reagiam e sentiam e começar aí o trabalho mais colaborativo. Primeira fase somos três, segunda fase nós os três e a malta das vozes. 

Lembro-me que quando o Quim me descreveu Bateu Matou pela primeira vez disse algo como: “isto é uma coisa para tocar ao vivo”. Normalmente muitos projectos nascem em estúdio e depois têm de resolver um problema: “como é que isto se transforma numa coisa de palco?” Vocês nasceram no palco e tiveram que resolver o problema inverso: “como é que isto agora funciona em estúdio?” É uma leitura correcta?

[Joaquim Albergaria] Completamente. A lógica foi de “bora ocupar o espaço que existe entre um concerto e um DJ set”. Meter a percussão a assumir a responsabilidade nisso. Tanto que as vezes que nós fomos para palco, e já foram algumas, era numa lógica de live set, aquilo que os DJs inventaram em termos de gestão de dinâmica do que é que é uma performance. Essa linguagem toda. Mas agora “bora meter tambores aí ao barulho”. E muitas vezes trouxemos convidados para assumir funções mais de MC, mas a lógica era essa: três percussionistas a pensarem como um(a) DJ. O que nós fomos percebendo é que os mesmos recursos que nós apontávamos para fazer esses live sets davam um vocabulário bué fixe para fazer canções. Aquando da criação do “Lume”, numa sessão que decorreu já há um ano e tal, fizemos o que chamámos na altura um beatcamp: “Bora fazer beats e ver o que é que isto dá”. Estávamos a fazer remisturas, alguns instrumentais nossos para tocar ao vivo e aquilo foi ganhando carácter de identidade. E surgiu o “Lume”, o primeiro single. E alguns princípios de outras coisas que nós utilizámos para o disco. Pensámos, “ok, isto é trap e funaná, portanto bora falar com o Fitchádu”. E depois, de repente, apareceu aquele bicho estranho e o bicho estranho era contagioso e a gente quis fazer mais. Mas Bateu Matou começa mesmo como uma live band.

[RIOT] Basicamente o que ele está a dizer e que eu estou… não é que me tenha apercebido agora, mas ouvir em voz alta faz-me pensar: basicamente percebemos que os recursos que nós estávamos a gastar para fazer um live act de Bateu Matou podiam ser aplicados para fazer canções válidas. E temos as armas para isso: “em vez de estarmos aqui a fazer edits e a misturar acapellas de não sei quem com não sei o quê, temos aqui armas para fazer isto e já percebemos agora que sim”. E o “Lume” foi o primeiro resultado disso, que obviamente deu fome para mais. 

O “Lume” foi bem aceso porque pelos vistos incendiou bastante as ideias e a criatividade. Expliquem-me uma coisa porque às vezes até se torna um jogo de imaginação para quem não acompanhou as sessões: mas quanto do que se ouve é orgânico, é martelado em tempo real e quanto é que é programado e resultado do trabalho com máquinas?

[Ivo Costa] Eu acho que a grande chave desta produção tem a ver exactamente com isso que tu disseste que é: como é que nós conseguimos juntar esses dois mundos que são tão fortes, as nossas géneses e origens de três bateristas totalmente acústicos e orgânicos… bem, se calhar, o RIOT nos últimos tempos um pouco menos, já que se moveu para uma zona mais electrónica. Mas, dizia eu, como é que nós conseguimos fundir isso de uma forma que fosse natural, usando uma expressão que eu uso imenso, que é tentar não colar barro à parede. Ou seja, como é que se juntam esses dois mundos de forma a que possam soar o mais natural possível e o mais orgânico possível, misturando as duas coisas? Passou muito por usarmos a bateria acústica e depois “trigarmos” alguns sons, ou seja, tentarmos manter e preservar o nosso feel humano, que é isso que faz a grande diferença e depois “trigarmos” esses sons, o nosso som, com outros sons mais electrónicos e acho que 90% da nossa fusão começa exactamente aí.

[Joaquim Albergaria] Mas há muito playing. Há mais playing do que programação. Por mais que o resultado depois seja um som super tratado, processado inclusive, que tenha identidade mais de banco — até pode ter –, mas eu diria que todo o trabalho rítmico que está a acontecer aqui é 90% tocado. 

[Ivo Costa] Ou mais. Há muito pouca programação.

[RIOT] A questão é que algumas das ideias que já vinham de alguns dos nossos computadores e que já tinham beats programados, em 90% dos casos fizemos questão de regravarmos aquilo que estava lá. Para já, quando fazes um beat electrónico pensas numa clave que está mais ou menos definida. Aquele beat vai ser assim, ponto final. Tu nunca pensas: “e agora vão três bateristas tocar aqui um pandeiro por cima disto” [risos]. Ninguém pensa nisso. Quando tu começas a tocar por cima e começas a perceber, “epá, isto aqui não faz sentido, agora o que o Quim está a fazer é muito mais interessante, e a clave que o Ivo inventou para o refrão não casa com a programação de x, então vamos só deixar o shaker programado e vamos gravar tudo o resto. Ou vamos deixar uma conguinha de uma 808”. E mesmo assim o meu kit tem um kit 808, por isso às vezes nem sequer isso fica. 99% diria que é tocado. 

[Joaquim Albergaria] Por mais que tenha uma estética e o tratamento que depois parece electrónico. Ou seja, a lógica era essa: ficar numa zona cinzenta, num híbrido. Por mais que em termos de produção haja muito playing, em termos de resultado final/tratamento era fixe que soasse um híbrido. E para tu teres essa questão: “o que é que é tocado e o que é que é programado? O que é que é lançado e o que é que é loop?” E depois ao vivo obviamente o equilíbrio vai ser diferente. Há coisas que vão estar em backtrack. Mas mesmo assim vais ter três macacos a tocar três sets de tambores diferentes. Vai ser uma barragem bué grande de beat

[Ivo Costa] Só a tua pergunta mostra que o nosso objectivo ficou cumprido.

[RIOT] Respondemos a essa dúvida para ti, mas para o resto do pessoal é para ficar na dúvida. 

[Joaquim Albergaria] Ya, nunca mais vamos responder a essa pergunta [risos]. 

Vocês, embora o vosso instrumento na base seja o mesmo, vêm de linguagens e de formas de abordagem ao instrumento, radicalmente diferentes. O Quim com passagens pelo hardcore e pelas bandas mais electrificadas, o RIOT a cena toda do drum’n’bass, tu, Ivo, com um percurso mais de world music, vá lá, o que quer que isso queira dizer em 2021. Como é que se encontra um terreno comum tendo em conta que os pontos de partida foram tão distantes uns dos outros?

[RIOT] Do meu ponto-de-vista é aquela resposta cliché mas é um facto: eu venho do rock’n’roll. Eu comecei a tocar rock. E depois apareceu a electrónica na nossa vida, desenvolveu-se aquele fusion lab, aquela Enchufada e acabou por terminar em Buraka Som Sistema, que ao vivo muitas vezes nós chamávamos de afro-punk porque era tão martelado em certas alturas. Ou seja, as influências de vários géneros estão em todos nós, acho eu. É uma coisa que todos nós… desde Pantera até Run DMC, aqui roda tudo. Por isso é que a resposta tem de ser tripartida aqui, para mim é-me fácil comprometer-me com um projecto com estas duas pessoas e saber o que é que se pode trazer para aqui que não choque e que faça sentido. Há coisas de que eu gosto que não vão fazer sentido em Bateu Matou. Foi muito fácil, não foi nada complicado. É também conhecer o trabalho deles há muitos anos e acho que todos nós já tínhamos tido uma abordagem do “pá, qualquer dia temos que fazer alguma cena”. Isto é uma conversa que tem mais de 10 anos. Mas éramos três bateristas e não sabíamos o que é que poderíamos fazer [risos]. Se calhar era mesmo só isto, era sermos três bateristas e pronto.

[Ivo Costa] De facto existem muitos pontos em comum entre nós. Eu também comecei a tocar rock, apesar de poucos saberem isso e as pessoas associarem-me muito à música africana e se calhar nos últimos tempos até a alguma música tradicional portuguesa por ter acompanhado a Carminho e não só. Mas nós temos de facto muitos pontos em comum. Eu acho é que nesta produção tivemos que encontrar uma sonoridade e um ponto de equilíbrio entre isto tudo e foi muito interessante no meio deste processo e desta produção perceber qual era a mais valia de cada um. Obviamente o RIOT traz-nos a estética electrónica, grande parte desta estética é o RIOT que a traz porque tem mais anos disso e está mais habituado. 

[Joaquim Albergaria] E é a voz dele. Ele naturalmente fala assim.

[Ivo Costa] Mas depois é giro porque o Quim traz uma testosterona, como eu costumo dizer, [risos] que é muito interessante. Uma energia e uma catarse e uma visão sempre muito objectiva daquilo que deve ser a canção e eu depois se calhar trago algum souplesse, alguma informação que se possa acrescentar aqui que vem dessas influências que eu tenho chutado e trabalhado também. E acho que encontrámos aqui um bom ponto de equilíbrio, cada um percebeu o que é que cada um aportava em termos de valor e o facto de serem coisas tão diferentes e de termos uma sensibilidades diferentes uma das outras acho que criou aqui um bom equilíbrio. 

[Joaquim Albergaria] Depois há outra coisa que é transversal a isso tudo, que é uma vontade bué grande de fazer o beat pulsar. Não há beatzinhos. Não há marcar tempo. Não é metrónomo. Não é tipo “deixa o baixo soar”. Não não, o baixo tem que complementar o beat. E essa regra, o facto de teres três bateristas-maestros que percebem a força do que é que é teres três vozes complementares a não pisarem calos um ao outro, e isso é outro exercício bué fixe, que é percebermos os vazios uns dos outros, a ideia de serem mesmo três ritmos a falar, ou um ritmo feito de três vozes, procurar essa sensibilidade e identidade nisso. Sem parecer cacofonia e fazer isso funcionar, fazer isso pulsar, fazer um pump da coisa. É ao mesmo tempo missão e identidade e todos os três temos essa sensibilidade. Muito facilmente a gente diz, “isto não me está a fazer dançar, estamos aqui a chocar, não pode”. É uma sensibilidade muito grande para desenhar isso, que é metade da música ou mais. 

[RIOT] Tivemos que aprender a “destocar”. Há silêncios esquisitos em termos físicos, para nós. “Não, aqui não vou tocar isto”. Às vezes há tempos que eu marco no ar. Se eu não marcar no ar, o meu cérebro falha. Mas se eu tocar vai soar cacofónico com o que eles estão a fazer. 

[Ivo Costa] Acho que acima de tudo é nós não cairmos naquela tentação de “ok, eu sou baterista, eu tenho que mostrar serviço”. Acho que o nosso farol foi: como servir a canção. Vamos servir a canção. Se eu tenho que tocar menos, vou tocar menos. Se eu aqui não toco, não toco. Ou seja, fazer jus ao beat, fazer jus ao nosso instrumento, mas, em última análise, é fazer jus à canção e àquilo que ela precisa ou àquilo que ela não precisa.

[Joaquim Albergaria] Mas não por uma questão de alinhamento de o que é que é está a bater ou numa lógica de “não, os beats minimais onde o sub é meio beat ’tá a bater bué, bora por aí”. Não, a ideia era polirritmo, a ideia era ter pulsar, a ideia é tu sentires que existe uma linha de bateria na canção. E as tradições todas. A lógica do samba, a lógica das arruadas, a lógica dos talking drums de África. Ter esse pressuposto de: o que faz a música é o beat. Se aparece uma melodia, os tambores já estavam a cantá-la antes do sintetizador entrar. Ser esse o coração da canção. A promessa de Bateu Matou é essa: fazer canções (pop ou não) onde a voz e o refrão sejam bem acolhidos, mas a estrutura e a fundação da coisa toda é beat no sentido clássico da coisa de várias vozes, várias claves, a construírem uma coisa maior.

Este som que vocês ergueram é resultado apenas de trabalho conjunto e intuição ou há aí uma dose de “vamos estudar, vamos ouvir as polirritimas africanas, vamos ouvir estes discos”. Houve aí alguma dose de investigação na criação da vossa cena?

[Joaquim Albergaria] Eu acho que foi pelo percurso individual, esse lado de estudo. Cada um de nós tem interesses, e vamos estudando. Alguns por razões profissionais, outros por interesse, outros porque simplesmente encaixam na sequência do seu percurso. E dos desafios que nos vão aparecendo. Por exemplo, eu acredito que tenha chegado em frente à bateria a conclusões a que o RIOT chegou a olhar para a grelha do sequenciador e a programar uma coisa de um projecto de drum’n’bass dele. Noções que o ritmo ensina na tua relação com o teu instrumento e na tua relação com a música de que tu gostas e que queres perceber. E o que é fixe é que entendemos de maneiras diferentes com recursos e ferramentas diferentes a mesma coisa e isso expressa-se musicalmente com três identidades diferentes que somadas dá este beat bué rico. Com bué textura. Portanto, há estudo, mas não há uma lógica de “bora lá nós os três olhar…”. Isso não houve. Ainda estamos naquele momento em que descobrimos a nossa voz pela junção das três. Ainda há surpresa, ainda há paixão. 

[RIOT] É aquela questão de eu saber que o Ivo sabe a diferença entre um semba e um samba; e eu faço música com influência africana electrónica e eu sei de onde é que vêm as bases, mas não te sei dizer a diferença entre um semba do sul de Angola ou do norte de Angola e se calhar o Ivo sabe. A minha questão é que eu vou respeitar esse espaço porque eu nunca chegaria àquelas claves a que ele vai chegar. Ele fez o trabalho dele porque tinha que o fazer, eu fiz o meu e o Quim fez o dele e chegámos a isto. Aqui é uma questão de respeito e de admiração e de ver onde é que aquilo vai. “Deixa-me ver o que é que o Quim vai fazer. Ai, do caraças, jamais na vida iria chegar a esta conclusão”.



Eu ia a dizer que, não sei bem por quem, mas foi-nos vendida uma ideia durante décadas que se Portugal queria dançar tinha sempre que olhar para fora. Era obrigatório olhar para Detroit ou para Londres ou para Chicago. Que a nossa música não era ritmicamente apelativa no sentido de uma pista de dança. E hoje começamos a perceber que afinal vivemos numa cidade onde há funaná, onde há kizomba, onde há kuduro, onde há hip hop, onde há samba, onde há um conjunto incrível de ritmos que afinal sempre estiveram aqui. Nós é que não sabíamos ou não queríamos ver porque estavam demasiado arredados do centro e demasiado encostados a periferias. E estou a falar de periferias não necessariamente geográficas, mas das periferias do que às vezes se considera ser o bom gosto ou o gosto dominante. Mas afinal uma das coisas que se tem vindo a perceber, eu diria na era pós-Buraka, e muito por “culpa” de Buraka, é que afinal esta cidade tem um pulsar que é incrível e que é diferente de todos os outros, não é?

[RIOT] Exacto. E sempre teve lá. Não sei se é não conseguirmos ver, eu acho que era mais não querer ver. Porque querer ver significava aceitar certos e determinados paradigmas que o português não estava preparado para aceitar na altura. Não estava preparado para aceitar que… assim como o reggae explodiu por causa de Inglaterra, que a verdade é que o reggae já era grande, mas worldwide, se não tivessem ido gravar a Inglaterra ou Londres, ainda hoje estávamos a aprender sobre o Peter Tosh, provavelmente. Portugal teve essa hipótese nos anos 70 e 80, mas acho que mentalmente não estava preparado para aceitar que o funaná, a kizomba e semba estavam aqui e faziam parte da diáspora e acho que não estavam prontos para capitalizar sobre isso de nenhuma forma, nem artística nem monetariamente. Estavam mais numa de deixar isso para os cantos e para os subúrbios e para as minorias, mas, entretanto, com o evoluir da mentalidade, vem Buraka. Eu costumo dizer que depois de Buraka as loiras começaram a curtir mais kizomba. De não ter vergonha de curtir kizomba. E isso foi do caraças. Acho que foi uma das coisas que Buraka conseguiu fazer e a partir daí foi abrir a torneira e ninguém ter mão em nada. Soltaram a franga completamente [risos]. Acho que Lisboa soltou a franga a partir daí. 

[Joaquim Albergaria] Definitivamente Buraka foi o catalisador disso. Atenção que estes beats e estas claves que o gosto dos decisores do 70s/80s dizia que “isso é das colónias, nós não podemos tocar nisso porque isso não é nosso, o que é nosso numa perspectiva de branco é a chula, é o vira, é o trabalho do Giacometti, isso é que é tradição, isso é o que está no nosso ADN, o que vem de África é muita fixe mas nós não podemos tocar naquilo porque existe culpa branca e porque existe uma data de merdas”, mais o facto do pós-revolução… o que era fixe era ser branco da Europa, portanto “bora lá fazer rock, bora lá agarrar nas guitarras, bora querer ser os Pearl Jam”. Os 90s ainda estavam a processar essa merda toda. Enquanto na periferia, onde havia essa convergência toda, os putos estavam a ouvir Metallica nos fones mas no polivalente dançavam o Helder Rei do Kuduro, se calhar sabiam as letras de Da Weasel. Era uma misturada bué grande que agora nos 2000s em diante cristalizou tudo porque já não há diferença. Nas pessoas que fazem música e que ouvem e que são isto tudo não há culpa colonial de “ah, foda-se, eu fui lá, fiz parte, agora tenho que decidir a tradição”. Não, as pessoas cresceram a ouvir isso tudo. Isto é um ponto-de-vista social. Do ponto-de-vista artístico, Buraka mostraram “dudes, isto é possível”. O boom criativo que houve a seguir é maravilho e incrível. Obviamente que Bateu Matou vem na consequência disso e já a pensar na coisa fina. É uma reacção do tipo, “pá, não vou para a produção minimal do beatzinho bué gordo que a gente curte é de tambores, então bora pôr bué ritmo”. Já estamos a pensar noutra coisa. Para nós cabe-nos fazer isto. Podemos misturar trap com funaná, podemos fazer tarraxo de outra forma. Já vale tudo. Já sabemos que as pessoas vão entender e vão saber dançar. 

[RIOT] Para mim o paralelismo menos óbvio e mais fixe com Buraka e que me traz um bom feeling é que estas são duas bandas que descobriram o som delas completamente sem querer. O som foi descoberto sem querer. Ou seja, eu sabia que ia tocar com estes gajos, mas não sabia o que é que ia sair. E isto é válido para qualquer banda. Isto é válido para os Capitão Fausto, para os Delfins e para Bateu Matou, mas a questão é: Buraka foi buscar a necessidade de “ok, eu quero passar Helder Rei do Kuduro e Znobia mas estes gajos têm três compassos, e depois dá um discurso de qualquer coisa do género ‘sim senhor, os demónios’ não sei quê, depois entram quatro compassos, pára, entra um synth fora da nota”. E Buraka foi buscar esses beats e disse assim, “não, eu preciso de tocar isto no Lux, e ao tocar isto no Lux preciso de uma estrutura, dá-me uma estrutura de 4/8/16 para eu pedir misturar, please“. Ao fazer esses edits, nós descobrimos que se calhar faltava uma bassline. “Mete-me um daqueles baixos de drum’n’bass aí por baixo”. Foi assim que nasceu Buraka. E aqui, com Bateu Matou, sinto que começámos de maneira parecida, mas de homenagem a um DJ set do ponto-de-vista de pessoas do ritmo que tocam bateria. E vamos fazer sets de 15 minutos sem parar, 20 minutos sem parar, 30 minutos sem parar. E ao fazer isso descobrimos canções pequenas. Passámos para os 4 minutos e meio. Ou seja, nenhum dos projectos estava à espera do resultado final e isso para mim é muito gratificante.

[Ivo Costa] Acho que não existe nenhuma pretensão da nossa parte nem nenhuma bandeira para ser levada porque ela já foi levada. Ou seja, ainda bem que para nós que esse caminho já foi desbravado e muito bem. Nós só queremos fazer jus àquilo que é o nosso instrumento e a nossa visão de uma coisa que já foi descodificada. A nossa interpretação agora em 2021 sobre esta música que felizmente já foi aberta por este senhor que está aqui ao nosso lado.

Vamos agora voltar um bocadinho ao disco. Gostava que me falassem sobre os convidados. Vocês reuniram aqui uma tropa de elite, nomes que são quase um “who’s who” do que é o presente interessante e multifacetado que nos define. Foram nomes que foram chamados porque a música estava a pedir por eles ou foram experiências?

[Joaquim Albergaria] Os instrumentais foram pedindo e as coisas clicavam ou não clicavam. O exemplo do “Bandido”. Tinha um instrumental e nós estávamos a tentar que ele funcionasse e de repente o Gui Salgueiro fez aqui uma sessão e a gente pensou, “espera aí, isto foi aqui para outro sítio, o que era fixe era termos um gajo a rappar”. Estávamos a tentar meter voz cantada em cima daquilo. “Não, bora meter um gajo a rappar”. Mostrámos ao Pité e ele matou aquilo de uma leva só. A canção do Toty era algo que estava cristalizado. Ela já era assim. “Eu oiço o Toty”. Ligámos e ele, “eu oiço-me a cantar aqui”. E ele entrou e produzimos para a voz e para a estética dele. A Blaya era um tema que o Pité tinha já começado a fazer, quando começámos a pensar no disco e o disco de repente ganhou a possibilidade de ser mais do que um EP ou do que uma série de singles e ser um álbum mesmo. O Pité assim, “então bora, trazemos este tema para o contexto Bateu Matou”. E a Blaya já tinha trabalhado nesse tema com a Favela Lacroix e o tema também vem cristalizado dessa forma. Não houve uma estratégia de “temos de bater nestas playlists, temos de representar estes segmentos demográficos”. Temos estrategas na banda, mas não a esse ponto. A música naturalmente foi pedindo e cristalizando-se assim. Houve artistas que não funcionaram.

[Ivo Costa] Isto obviamente dentro do meio de pessoas que nos são relativamente próximas e que nós admiramos também. As canções foram chamando essas pessoas que estavam ao nosso alcance. O caso do Toty foi mesmo assim. “Esta música serve mesmo aquela pessoa”. Em 95% das situações tivemos a sorte de elas caberem mesmo e as pessoas também terem sido super generosas nessa partilha.

[Joaquim Albergaria] E nisso o confinamento também ajudou. Havia mais tempo e disponibilidade.

[RIOT] Ou seja, estamos feitos para o segundo álbum, basicamente.

Ou seja, vamos conseguir ver isto ao vivo com esta gente toda?

[Joaquim Albergaria] A ideia é ser muito próximo disso. Pelo menos na data do Lux tentar ser o mais representativo possível daquilo que o disco registou. Sem grandes promessas, mas o esforço é esse. Depois em tour, em meter isto na estrada, será um compromisso de um ou outro convidado possível, coisas gravadas, coisas de vídeo, algum de nós conseguir aguentar o barco ou então inventarmos outra solução qualquer… hologramas. O que seja.

[RIOT] Se souberes de alguém que trabalhe em hologramas, estamos à procura. 

Há quem diga, e eu concordo totalmente com isso, que não há acto mais político do que dançar. Então quando se dança numa pista com gente muito diferente, isso é intrinsecamente político, mas, para lá do ritmo que pode ter essa dimensão política, há palavras neste disco e algumas também traduzem essa crítica, essa farpa que por vezes é necessário espetar para que os países avancem. Bateu Matou é música de dança de intervenção?

[RIOT] Dessa não estava à espera.

[Joaquim Albergaria] Consciente é. A lógica de sabermos de onde é que esta música vem, quem é que representa, quem é que tem que respeitar e o que é que pode dizer. Ya, nesse sentido sim. Se é uma banda de agenda, de bandeira e ideologia? Teremos as nossas, mas não é isso que define a música. Agora temos opiniões e visões e não temos medo de as dizer. 

[RIOT] Acho que é um pouco mais de intervenção social do que política, sendo que a divisão disso é muito ténue. A política está em tudo. Mas há aqui uma vontade de passar aquilo que nós somos e nós também não somos nenhuns putos de 15 anos a fazer música. Somos pessoas conscientes do que se passa, do que é que não se passa, temos as nossas ideologias e as nossas maneiras de ver a vida. E é como o Quim diz, quando temos uma ideia não temos vergonha de a expressar. Aliás, o “Bandido” tem umas dicas para alguns bandidos que andam aí. 

[Joaquim Albergaria] A lógica é na medida da nossa própria experiência. Acho que qualquer um de nós já recebeu cartas registadas das Finanças e da Segurança Social e já nos vimos a pagar demais e a receber de menos. Depois quando vês as notícias e percebes que há malta que tem dívidas perdoadas de milhões e tu às vezes andas a não conseguir comprar pão… man, obviamente que isso nos enfurece e é a razão suficiente para fazer uma canção. Da mesma forma que somos uma banda feita de pessoas diferentes com experiências diferentes e privilégios diferentes que vem do facto de termos nascido com mais ou menos melanina. Somos todos pais de família e percebemos em primeira mão o que é que uma mulher vive e experiencia e tem acesso de maneira diferente de um homem. Obviamente que isso vai aparecer de uma forma ou de outra na música que fazemos ou nas coisas que a gente diz e nas opiniões que nós temos. Não há um filtro de amaciar aquilo que temos para dizer. Mas muitas das nossas canções são só sobre dançar, sim. 

[RIOT] Acho que a questão é mais, “será que uma banda de música de dança não pode dizer coisas revelantes?” Acho que já pode há muito tempo. Não tem que ser só aquele loopzinho de voz. Eu sei que as pessoas às três da manhã não estão muito viradas para a mensagem, mas se tu fizeres canções que sejam um híbrido de clubbing/iPod/Spotify se calhar aí há não diria uma obrigação mas há que ver um cuidado de “já que tenho este tempo de antena vou-te dizer algo que me está a incomodar”.

[Joaquim Albergaria] Para ser mesmo sintético nisso é: não somos pessoas para ter só dicas por ter. Ou seja, só ter letra para ocupar a sua função na música. Se vais dizer alguma coisa, diz uma cena fixe, que seja verdade para ti e com que as pessoas se possam relacionar. E nesse sentido o que temos no disco eu consigo sentir e empatizar com aquilo tudo. Mesmo que a minha experiência seja diferente da de muitas das pessoas que estão no disco. O que era importante para nós é que aquilo que as pessoas pudessem dizer ali fosse verdade para elas. Não deixar falar merda. Não ter vácuo.

Não faço ideia se já alguma vez tentaram fazer esse exercício ou se têm algum planisfério colado aí na parede do estúdio, mas eu imagino que se fossem somar todas as milhas aéreas que vocês os três já fizeram, e se calhar alguns quilómetros de estrada também, daria para dar umas quantas voltas ao planeta inteiro. Todos vocês, de maneiras diferentes, viajaram pelo mundo com a vossa música e a pergunta é: tendo visto tanto mundo ao longo das vossas respectivas carreiras, diriam que estão neste momento naquela que poderá ser uma das mais interessantes cidades musicais do planeta?

[Em uníssono] Completamente. 

[Ivo Costa] Lisboa é um sítio fantástico para se fazer música neste momento. Respondendo a uma pergunta que fizeste lá mais atrás, eu acho que Lisboa fez as pazes com uma data de coisas acima de tudo culturais e soube abraçar essa miscelânea toda que nós temos se calhar mais em Lisboa do que no resto do país, obviamente. Lisboa tem essa vantagem neste momento para qualquer artista. 

[Joaquim Albergaria] Mesmo a sério. Desde a viragem do milénio que tu sentiste qualquer coisa a mudar. E vou outra vez bater continência a Buraka na lógica de “isto é possível, reparem”. A mim o que mais me orgulha é sentires que não há propriamente um… não dá para dizer “Lisboa é tipo”. Não dá. 

[RIOT] É isso. A minha visão das voltas ao mundo que já dei é a seguinte: aqueles clichés todos do “o mundo é uma bolha, isto é uma aldeia, tudo é pequenino”… ok, não é. Isto é hiper gigante. Mas eu percebo o que é que as pessoas querem dizer com isso. Tu vais a Tóquio e sinceramente se passares três dias a explorar a cidade encontras os três sítios mais importantes de lá e o resto é para viver. E nesse sentido, e Tóquio é um bom exemplo disso porque vive mais da influência ocidental, então qualquer artista de música house faz um furor brutal durante duas semanas. E a seguir vem o trap e é o trap durante duas semanas. O que eu quero dizer com isto é: existem sítios-chave, aqueles pilares, Chicago, Detroit, Londres, Bristol. Na Alemanha não tenho a certeza se é bem Berlim, mas acho que sim, o techno de Berlim, mas depois existe também Estugarda. E o que é que é de Estugarda? Nada. Há muito mais cidades grandes fora de Portugal do que em Portugal. E sendo Portugal um país muito pequenino, a capital é muito importante. Desde 2000 para cá o que eu sinto é: nós não temos o techno de Detroit nem de Berlim, nós temos mesmo o nosso som. Neste momento Lisboa tem uma coisa muito nossa que ninguém sabe bem o que é que é, mas toda a gente sabe de onde é que vem.

[Ivo Costa] Porque ainda não está muito estilizado. E isso é uma vantagem criativa e artística brutal. Muitas cidades estão conotadas exactamente com isso. A cidade do hip hop, a cidade do techno, a cidade do afrohouse. E Lisboa ainda tem esse caminho que tem de ser obviamente desbravado e acho que é um momento fantástico porque a música não está muito estilizada ainda.

[RIOT] Mas ao mesmo tempo já apanhámos as dicas e já conseguimos brincar com elas e subvertê-las. Agora para o próximo álbum ou para os próximos sons já não vamos fazer isso mas vamos fazer assado mas com muito referência tuga. E quando eu digo tuga é Angola, Moçambique, Índia, Brasil, Cacém, Vila Real de Santo António. 

É a segunda vez que mencionas um segundo álbum, ou seja, não há dúvidas nenhumas que a aventura vai continuar. A história começou só agora a ser escrita, é isso?

[Joaquim Albergaria] Ya, ya. 

[RIOT] Sem dúvida. Estamos todos com muita pica, eu acho. Eu quero fazer música nova agora. Quando desligar a chamada…

[Ivo Costa] Nós estamos com pica para isso já. 


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