Encontros são o tema da 16ª edição do Festival das Artes, que em Coimbra tem promovido a excelência da música, entre outras expressões das artes, indo da clássica ao jazz e uma vez aliado ao QuebraJazz, outro programa de festividades que faz da escadaria do Quebra Costas um palco de noites de Verão. Sob esse tema-título cabem ambiciosas propostas de programação, tantas quantas a vontade as faz acontecer. Umas serão encontros com o há muito consagrado e esplendoroso caso do concerto de Jordi Savall e Hispèrion XXI, programado para dia 24 de Julho; outros são inéditos, fazendo do lugar do desconhecido um convite. Assim, foi feito ao acordeonista e compositor João Barradas uma proposta para apresentar uma nova formação. O dia 16 de Julho ficou marcado pelo encontro musical de quatro geniais músicos, que sob a vontade de Barradas se juntam para tocar música escrita por si. Temas que idealizou e ajustou para os companheiros de palco, que antes de mais são músicos que tanto admira. A colina de Camões na Quinta das Lágrimas é o anfiteatro ao ar livre onde os sons encontram um idílico e sereno anoitecer.
João Barradas, genial instrumentista no grande fole portátil, há muito que vai fazendo surgir em igual medida a arte da composição e improvisação. Da composição em tempo real atentem-se aos dois registos individuais, Solo I (Live At Centro Cultural de Belém) editado pela Nischo Records em 2020, e a Solo II (Live At Festival D’Aix-en-Provence) lançado pela Clean Feed em 2023. Mas junto ao seu trio habitual com André Rosinha no contrabaixo e Bruno Pedroso na bateria presta-se a lançar Aperture. Um disco no prelo e que contêm composições que fomos escutando nas vindas a palco mais recentes. Foi assim no recente Funchal Jazz, mas trazendo ao trio um convidado especial, Jonathan Kreisberg, em guitarra eléctrica.
Barradas tem esse fascínio por fazer encontrar a sua música com diversos instrumentistas, procurando outras versões dentro das suas composições. O primeiro encontro musical entre Barradas e a genialidade do trompete de Peter Evans deu-se em 2020, quando Evans orientou um ciclo de trabalhos e concertos com músicos na Galeria Zé dos Bois em Lisboa. Na quinta apresentação desse “Som Crescente” foram apresentados temas tanto de Evans como de Barradas e houve mais músicos no palco aquário — Angela Balthazar no violino, Bernardo Tinoco no saxofone soprano, Duarte Ventura no vibrafone, Clara Lacerda no piano, João Lobo no baixo e Diogo Alexandre na bateria. Precisamente Alexandre que tem em Stéphane Galland um dos seus mentores na bateria, no tempo de formação na Bélgica. É esta uma plausível ligação de Evans e Barradas a Galland, por via de Alexandre. Aaron Parks já colaborou com Barradas tal como mencionado no vasto conjunto de músicos que partilharam consigo os campos do jazz e da música improvisada com os quais enalteceu o seu acordeonismo.
Ainda que a quatro, o concerto começa num prelúdio de trompete piccolo de Evans que aplica um estado de êxtase quase imediato — incisivo e melódico. Uma abertura para um primeiro tema de concerto que evidencia uma modernidade muito oportuna numa linguagem que desafia o tempo na música. “Introdução” foi servida no seu devido lugar de alinhamento — a abrir o que se suspeitava ser um encontro com um genial jazz. Uma aproximação ao que se vai inscrevendo até nos campos do cunhado jazznaojazzpt, pleno de ideias criativas. Ao segundo tema, Barradas revela uma das suas raizes na música, a das planícies do Sul do território português. “Encontros”, tão apropriado ao contexto do festival e desse convite feito para estarem ali, é uma composição que traz à colina um primeiro salutar duelo entre o acordeão e a trompete de Evans. Depois, um lugar onde algo acontece de base, como num manancial desta música. “Matriz” traz as parte elementares, os mecanismos de funcionamento à tona, tema pulsado na constante do abre e fecha de fole. Um chamamento aos sussurros e trauteio na trompete, um tema como que pensado para Evans. Mas onde surge um dos momentos de mestria absoluta e redentora no piano cristalino e cintilante de Parks. Tema que servem em coalescência com “Daily Commute”, onde a mesma técnica de fole aumenta a cadência. É o ritmo das rotinas diárias, num crescente de tensão musical e a trompete nesse explorar e enfunar as estruturas ritmicamente complexas. Termina no acordeão MIDI, em que Barradas é já uma peça, desenhando o tempo como um baixo.
Como que a abrir o leque das possibilidades, entre um imaginário e uma herança indisfarçável, apresentam “Fuga em Sol menor”. Uma influência antiga, barroca até, na música de Barradas. Há essa presença aqui como que vinda de uma das partituras de Bach. As mãos livres desenham a bateria de Galland, transpõem-lhe uma sonoridade de música antiga. E a fuga, a melodia repetida em contraponto, é servida entre acordeão e trompete, entre Barradas e Evans, que avançam num “dançar” entrelaçado até terminarem num encontro inesperado, pondo fim à fuga. Em “Canção Portuguesa” há um encontro marcado sem saber com um pianista, que vai incorporando de forma mais ou menos consciente uma certa melancolia fatalista no ser-se português. Parks serve na perfeição o pendor da melodia até ser auxiliado na condução por uma entrada sucessivamente energética da bateria esposada que o acordeão e o trompete piccolo vêm abrir na estrutura melódica.
Um dos temas a esperar no novo álbum de Barradas é “Fragment”, uma peça futurista tocada para acordeão e vocoder. A voz humana processada na linguagem de sintetizador numa das muitas possibilidades que o acordeão MIDI permite. Tem sido apresentada em solos, como escutada no alinhamento do Rescaldo’25, ou em trio e guitarra eléctrica como sucedeu no já mencionado Funchal Jazz’25. Mas Barradas é inesgotável nas possibilidades e versões, partilha-as com o seu estreante quarteto — um privilégio de ir acumulando versões e versões deste fragmento como que do futuro, aqui com uma segunda tarola de Galland — ampla — aliada ao trompete, a definirem os limites de existência. A panóplia ainda se abriria mais com uma peça muito ao estilo do bebop, na medida de solos a mostrarem os músicos diante do espelho de água — reflexos da genialidade. Primeiro Evans, depois Barradas, em virtuosismos partilhados. Num segundo momento solo de Galland e depois Parks. No final uma satisfação colectiva, de quem ouve e de quem toca assim. “Escada” é outro dos temas que Barradas vai experimentando em sucessivas versões, em função dos músicos e outras instrumentações, que permite ligações sem fim como na ideia vinda da imagem criada por Escher na litografia “Relativity”. Uma fonte permanente de inspiração na música de Barradas como confessou. Um tema onde o piccolo de Evans encontrou interferências sonoras num dos pistões, mas que do inesperado veio uma ilusão que trouxe outra dimensão. Um solo de acordeão e outro de piano foram esses lances de escadas mais nesse desenho retomado do genial neerlandês artista gráfico. Esta escadaria de Barradas trouxe Evans a um patamar, um cume na forma como termina no trompete.
Teria sido um desfecho perfeito. Mas perante músicos geniais pode-se esperar um mais que perfeito final. Servem um tema extra programa, onde se retoma um dos mais celebrados pianistas portugueses — que inaugurou em 2008 com Mário Laginha este anfiteatro ao ar livre, compondo a propósito “Lágrimas” —, Bernardo Sassetti. Barradas serve um tema com os seu companheiros Evans, Galland e Parks no piano. Com o recrear dos motivos melódicos de um piano que nunca deixará de tocar no lado da melhor memória colectiva, ficou a cintilar um encontro inesperado pela noite fora.