A noite de Solstício (20 de Junho) — a mais curta do ano de 2025 — trouxe a Braga uma constelação de estrelas para fazer aproximar uma outra fonte de luz — a música de Ryuichi Sakamoto. Ainda nessa tarde de Primavera, numa esplanada da cidade alguém comenta de forma entusiasmada que tinha um par de entradas para o Sakamoto. Sim, era como se o malogrado compositor japonês tivesse voltado ao mundo dos vivos. A música deixada pelos geniais mestres tem essa força, permite essa expressão na linguagem sem exagero algum. Iria ouvir-se no esplendoroso teatro da cidade o legado da música de Sakamoto, para o efeito às mãos do ensemble nova-iorquino que dá pelo nome de Bang on a Can All-Stars.
Contraponto é, para o Theatro Circo, o ciclo que acomoda o programa anual de música contemporânea, seja ela performada pelos próprios compositores ou através de interpretes, trazendo um ímpeto de novidade e arrojo. Contraponto é a figura estilística em música para combinar duas melodias que se cruzam e progridem em resultado harmónico. Como dois olhares que se cruzam e fazem sentido numa nova via. A certa, e muito boa altura, escuta-se programa adiante “1919” — tema contido em 1996 — onde de facto é um contraponto o que se escuta. Nesse tema, Sakamoto inscreve a sua música na senda de minimalistas como Philip Glass ou Steve Reich. Dois discursos progridem, um vindo do piano de Vicky Chow, o outro quase de mão dada, pelas cerdas nas cordas do violoncelo de Arlen Hlusko e do contrabaixo de Lizze Burns. Na versão original de Sakamoto contrapõe-se um discurso de Lenin — clamando à data a revolução dos trabalhadores face ao capitalismo burguês. Aqui esse tal discurso imagina-se no vigor das cordas. Estava revisitado um dos melhores momentos do disco e inscrito o apogeu do programa da noite. Contrapontos (destes) não há argumentos — dir-se-ia melhor perante o escutado.
Ken Thomson é o porta voz do ensemble em palco, mas também a ele se devem os arranjos para Bang on a Can All-stars desta música de Sakamoto. Uma combinação que passa de quinteto a sexteto em efeito surpresa: Lizze Burns surge no contrabaixo, trazendo um instrumento aditivado ao conjunto e no número de cordas, com uma mais do que as habituais 4, num efeito de extensão nas cravelhas e no som ainda mais grave. Os Bang on a Can All-Stars perderam o seu contrabaixista em 2023, um dos seus membros fundadores Robert Black. Mas Burns, assim como Taylor Levine na guitarra eléctrica — na vez de Mark Stewart —, são duas novidades da All-Stars. Thomson, em entrevista concedida ao Rimas e Batidas antevendo o concerto, deixou isso por revelar. Na restante formação está Vicky Chow no piano e David Cossin, alternando entre a bateria e o vibrafone, e o próprio Thomson no clarinete e clarinete baixo.
O programa começa pelo tema mais fabuloso em título de 1996 — “A Day a Gorilla Gives a Banana”. Abre o concerto tal como em disco de Sakamoto, dando lugar e essa envolvente musicalidade de câmara. Recorde-se que o álbum é todo ele musicado num trio de piano, violino e violoncelo. As versões de Bang on a Can All-Stars expandem a instrumentação e fogem tantas e diversas vezes dessa aura. Entra a bateria e a entra guitarra eléctrica, que nem sempre se acomoda da maneira mais comedida — mas sem levantar demasiado protagonismo. O clarinete de Thomson faz muito essa voz do violino do trio de Sakamoto e que lhe assenta bem. Seria incontornável não haver lugar para o emblemático “Merry Christmas Mr. Lawrence”. Quase todas as pessoas se atreveriam a assobiar mentalmente o fraseado no piano. Mas apenas se escutam as teclas cristalinas do Steinway aos dedos da mão direita de Vicky Chow — todo um deleite ao romper do tema. Mas no palco há mais músicos e poder-se-ia esperar que um dos mais icónicos temas de Sakamoto não se escutaria como fora desenhado. Thomson, em entrevista ao Rimas e Batidas, dava conta do que esperar: “Transcrevendo meticulosamente as suas harmonias e, muitas vezes, fazendo eco das suas ideias de arranjos em 1996 —, mas também trazer as nossas próprias ideias para a música.” E esse tema tem essas ideias próprias, como num metamorfismo em abundância. Há uma passagem para um lado que extravasa a música de câmara e o jazz, que até ali eram predomínios. Uma guitarra florescida aliada de uma bateria, que pede quase uma noite de festival ao ar livre, mostra como esta música, às mãos de Bang on a Can, pode tornar-se indistinta e comum. Contudo fez devolver da plateia o maior dos aplausos do alinhamento. Prescindiram-se dos tronos de bateria e guitarra noutros momentos, e com isso maiores harmonias sem perda de virtuosismos, como demonstrado em “M.A.Y. in the Backyard”. Todos os temas de 1996 terminam sendo tocados, mas muito nesse sentido que em analogia se pode comparar ao dos processos metamórficos das rochas. Como no ciclos da geologia, sempre que a matéria sólida é submetida à reciclagem tudo sofre alteração sem perda dos constituintes, apenas e só havendo o re-arranjo mineral — musical neste caso.
Também por aqui se anda numa música sem perda de harmonias, em que nos “pormenores preciosos de cada acorde e na transcrição de cada voz interior, podíamos fazer justiça às composições” — como escreveu Thomson em nota de apresentação. Nos processos metamórficos entram em jogo a temperatura e a pressão, além do invariável e incomensurável factor tempo — esse mesmo, que nesta música se revela o ponto chave. Sakamoto era, enquanto interprete da sua própria música, um desafiante do tempo. Bang on a Can All-Stars assumem também isso na revisitação da obra 1996: “Tivemos de aceder a uma parte oculta da nossa própria musicalidade — para empurrar e puxar o tempo da música, e emocionar as suas linhas melódicas deslumbrantes.” Houve ainda tempo para um tema extra programa, “Thousand Knives” — de que assumem gostar muito. Tema-título do primeiro álbum de Sakamoto, de 1978, onde ele próprio remeteu para uma ideia vinda da obra Miserable Miracle do poeta Henri Michaux, envolto no tempo da mescalina e dos efeitos dilecerantes como lâminas.