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Fotografia: Sara Mercier/João Alkmim
Publicado a: 01/04/2022

Reconhecer, resgatar e reinterpetar.

Bandua: “Esta fusão que estamos a fazer traz uma vontade muito grande de despertar esse lado xamânico”

Fotografia: Sara Mercier/João Alkmim
Publicado a: 01/04/2022

Não nos cansamos deles…

Depois de dissecarmos o álbum de estreia, agora é tempo de uma troca de palavras com os Bandua. Tudo porque o concerto na ZDB, em Lisboa, esta já aí (acontece esta noite) e é urgente conhecer melhor este projecto. 

Formado por Bernardo D’Addario (que é como quem diz Tempura), músico que já no ano passado tinha chamado muito a atenção por aqui, e por Edgar Valente, nome presente nos muito elogiados e relevantes Criatura, este é um grupo que combina o melhor de cada um dos seus elementos, mas sobretudo realça aquilo que há de comum nos dois. Com ligações familiares à Beira Baixa, a inspiração que esta região forneceu aos músicos foi tema central, mas falámos ainda de electrónica feita na América do Sul, de paganismo e até da ditadura. Fomos ao passado e acabámos no futuro, explorando aquilo que podemos esperar ver em palco nos muito aguardados espetáculos que aí vêm.



Se calhar é impossível distanciar uma coisa da outra, mas eu gostava de iniciar esta entrevista com algo que me fui questionando enquanto ouvia o disco. Vocês diriam que acabaram por fazer este álbum a pensar na Beira ou foi a Beira que vos fez criar este álbum? 

[Bernardo D’Addario] Isso é uma bela questão! Pessoalmente, se calhar, vou na segunda opção. A Beira forneceu a inspiração, foi um ponto de partida, até por sermos os dois provenientes de lá. Foi um acto consciente porque procuramos usar apenas letras de músicas populares da Beira Baixa, muito por causa da cultura do adufe, que é por si também pagã. Acabou por nos dar todo o suporte do álbum. 

[Edgar Valente] Acaba por ser uma troca. É um território que nos inspira, mas que também temos a vontade de o reconhecer, porque a Beira merece visibilidade a todos os níveis. Estamos a falar do interior, que por vezes é completamente esquecido, onde há tantos problemas, onde há tanto desequilíbrio. Quando fazemos um trabalho cultural não devemos só olhar para a beleza presente, e é gratificante perceber que este local que tantos nos inspirou agora também está um pouco nas bocas do mundo graças a tantos artigos que estão a sair e que dão ênfase a esta zona. É uma troca que acho bonita e justa. Como o Addario disse, é um sítio próximo e que nos dá uma certa legitimidade para nos sentirmos como guardiões, de certa forma. 

[Bernardo D’Addario] Isto, se calhar, sou eu a fazer uma pequena crítica, mas a riqueza que Portugal tem de música popular não é conhecida para quem é de fora, e apercebemo-nos que é importante trazer essa cultura um pouco ao de cima. O que estamos a fazer também é propor uma riqueza nacional que é tão grande como o fado, mas que não chega lá fora. 

[Edgar Valente] Até porque quando partes para outros territórios sentimos que, esteticamente, a música muda um pouco. 

Interessante dizerem isso do peso esquecido da nossa música popular. Sentem que nós próprios, de certa forma, marginalizamos esta cultura? 

[Bernardo D’Addario] Se calhar. Falar sobre cultura, em Portugal, é sempre algo frágil, até porque não somos mais de 1%, se é que me entendes. Não quero impingir esta ideia que a nossa música popular é esquecida, mas acho que nos últimos anos tem havido um pouco de mishandling na forma como ela é entregue à nossa população. As pessoas levam a ideia de música popular para o pimba e a raiz da música popular é tão mais profunda e antiga do que simplesmente o pimba. Essa parte, sim, é esquecida. Ela vive na aldeia e não sai dali, mas também não existe esse trabalho de a levar até a metrópole. 

[Edgar Valente] Eu não sei se as pessoas realmente marginalizam como falaste, mas acho que o problema é bem mais profundo. Estamos a fazer este contraste entre a música de raiz e a música mais electrónica para criar pontes nesse processo maior de re-identificar e enraizar esta cultura nas pessoas. Já me aconteceu com Criatura, pessoas saírem da Alemanha para virem viver em Portugal, para ficarem com o avô e ajudarem nas terras, porque ouviram uma música com uma raiz tão forte. Ela acabou por mudar a vida dessas pessoas, e isso é das cenas mais bonitas. Mostra a força que a música pode ter. 

Porque é que as pessoas, à partida, estranham ouvir algo mais de raiz? Isso acontece porque nós tendemos a estar cada vez mais desenraizado e, tal como qualquer planta, se perdes as tuas raízes ficas débil. Esta era a música do povo, que tinha uma força, quase alquímica, de aproximar as pessoas, de enaltecer o espírito da comunidade. Era vital e eu não duvido que esta música continua a transportar esta nossa necessidade, cada vez maior, de estar em comunidade. 

E depois, é preciso lembrar que vivemos uma ditadura que tentou tornar homogéneo aquilo que era o folclore e a tradição por todo o país. Houve uma imposição de criar uma tradição, músicas como a “Laurindinha” foram criadas pelo Estado Novo, contratavam compositores para criarem uma música que fosse de todo Portugal. Fomos um país muito traumatizado por esse processo e é natural que certas gerações acabassem por se afastar. Daí também querermos trabalhar uma região especifica, não queremos que todas as zonas sejam iguais.

Interessante falares da ditadura nesses termos. Um pensamento que tenho é que Portugal ainda anda à procura de um som moderno que se defina imediatamente como algo português, e que muita dessa procura advém da ditadura. Aliás, é interessante que uma vez falei disso com uma outra pessoa do Rimas e Batidas e a resposta que ele me deu foi uma frase de uma entrevista dos Criatura — sobre estarmos à procura de um D. Sebastião da música popular. 

[Bernardo D’Addario] Eu sou da opinião que essa questão do que é a nova música popular está em constante metamorfose, porque os próprios músicos nascem e morrem, assim como os projectos. Mas diria que sim, estamos à procura. Projectos como o nosso, mas também como o do Stereossauro e o próprio Mike El Nite, trazem uma nova luz sobre essa questão porque, apesar de serem outro tipo de música, têm uma portugalidade inerente que, mesmo não sendo folclore, faz deles também música popular portuguesa. Por isso diria que estamos a caminhar para a descoberta de vários D. Sebastiões e Sebastionas.

[Edgar Valente] O Bem Bonda faz exactamente isso, aquilo é um disco de monda e o que é mondar? É o processo de tirar raízes e coisas que só ocupam espaço na terra e que não te fazem falta nenhuma, por vezes só prejudicam. Se não fizeres essa monda acabas por não ter espaço para colocar novas raízes ou para deixar outras crescerem. Aquele disco mais do que definir uma nova identidade é um disco de ruptura e que quer levantar questões, porque acho que esta é uma fase na música nacional onde é preciso questionar quem é o povo, para que serve a canção, quem é a comunidade, qual é o sentido de comunidade no presente, o que é agora tradição. O ritual, hoje em dia, está muito presente, por exemplo, no dancefloor. Isto são tudo questões e elementos mágicos que estamos de alguma forma a tentar trabalhar. 

Falando do dancefloor, Addario já experimentaste os temas de Bandua nos teus sets?

[Bernardo D’Addario] Já coloquei até para ver as reações aos temas e não vou mentir que foram sempre de surpresa e de curiosidade sobre o que estavam a ouvir. Mais do que dançar, houve esse questionamento. Mas eu também sei que as nossas músicas, em geral, vivem num BPM abaixo daquele que ouves num clubbing às três da manhã. A natureza delas vive num sítio diferente.  

O Edgar deu o exemplo, atrás, da pessoa da Alemanha que regressou a Portugal depois de ouvir Criatura. Sentem que isso, de certa forma, também aconteceu convosco? Aproximaram-se da Beira Baixa graças a este álbum? 

[Bernardo D’Addario] No meu caso, sim. Eu sinto que foi um processo de crescimento constante dentro da minha pessoa e da minha musicalidade, mas também um crescimento próprio enquanto ser humano. Partilhando aqui algo contigo, uma das coisas que me fez fazer este álbum foi um pouco o fascínio que eu tinha com a terra do meu avô, que é Tinalhas, uma aldeiazinha de Castelo Branco. Um fascínio pelo misticismo, pelas histórias contadas, como se me conseguisse transportar no tempo. Foi isso também que nos fez abrir o álbum daquela maneira. Acho que era necessária essa contextualização para o ouvinte. Antigamente as coisas eram assim, mas agora fazemos de outra forma. 

[Edgar Valente] Quando fazes um trabalho destes, ainda por cima quando estás a evocar uma entidade como é Bandua, que tem esta função de atar os nós, isso faz-te vincular ainda mais. Nesta altura estou praticamente decidido em mudar-me para a região. 

O Addario falou desta questão de inspirar-se nas memórias do avô. Houve um trabalho de pesquisa a nível visual e sonoro?

[Edgar Valente] Na realidade, eu já faço essa pesquisa há pelo menos uns 10 anos. Inclusive, também, em outras zonas do país. Como é óbvio, depois houve uma procura de determinadas coisas, mas deixei-me ser guiado pelo Addario e pelas suas pesquisas, porque sinto que este trabalho também foi como um chamado para ele.

[Bernardo D’Addario] Tudo isto começou com a “Cinco Sentidos”. Eu queria criar uma música electrónica com selo português, do interior e que não fosse fado. E para encontrar essas letras eu, literalmente, procurei no Google por “música popular portuguesa” [risos]. Fui até à página 20 e acabei por encontrar as letras daquela música. Isso levou-me a perguntar onde é que podia encontrar mais conteúdo lírico deste tipo e percebi que, na verdade, nós não temos uma grande colheita de musicologia neste sentido. Há o trabalho feito pelo Giacometti, nos anos 60, que gravou a Catarina Chitas e que fez um trabalho mais profundo-

[Edgar Valente] -mas existem mais e é importante dizer. O Ernesto Veiga de Oliveira, o José Alberto Sardinha… existem mais, mas estes dois são incontornáveis. 

[Bernardo D’Addario] Procurei pautas antigas, um ou outro livro de etnografia específicos da Beira, fui procurando a pouco e pouco as letras, neste caso. Mais tarde, fizemos uma residência na Penha Garcia e aí recebemos um livro incrível de músicas de lá.

[Edgar Valente] Acabou por ser muito interessante, porque ele tinha as letras reunidas num PDF e pediu-me para escolher qual queria cantar, não havia uma ideia específica de encaixar determinada música em determinado instrumental que o Addario já tinha produzido, e de alguma maneira, a união dessas letras, com a música, aparecia logo mesmo rápido. Lembro-me que a “Encandeia”, mal eu li a letra, surgiu-me logo a melodia na cabeça e a coisa ficou logo feita. “A Borboleta Branca” saiu logo o take todo, quase enquanto lia pela primeira vez. Depois ainda adicionamos um pouco de letra e retiramos alguns elementos mais católicos dos temas, porque também houve essa parte. Também foi um reinterpretar. 

Interessante. Eu imaginei que houvesse um estudo e um aproximar das melodias vocais, mas afinal não. 

[Edgar Valente] Depende das músicas. Há três que eu diria que têm um reconhecimento original. “A Ceifa” foi feita sabendo o original. “A Lua” é igual, e foi uma coincidência incrível, porque tem o mesmo tom e a mesma harmonia, mas só a encontrei enquanto estava à procura de outra música. Foi um momento mesmo wow! Curiosamente, agora se a procurar no Google já não a encontro, foi mesmo só naquele dia. E depois há a “Macelada” que eu já conhecia, e que é cantada de uma forma mais rápida originalmente. Mas, para o que estávamos a fazer, achámos que fazia mais sentido um registo mesmo downtempo, até porque a macela tem uma cena tipo camomila que te faz relaxar. 

[Bernardo D’Addario] Eu fiz a escolha consciente de não ouvir como esses temas eram cantados, não queria sofrer qualquer tipo de influência na altura da produção, queria construir algo que fosse totalmente novo. 

[Edgar Valente] E isso foi interessante. Por exemplo, aconteceu uma coisa que acho que é lindo e que mostra muito a magia da cena: o original do “Encandeia” não tem esse nome. Chama-se “Encadeia” e é uma música quase de crianças, para dançar com os braços encadeados. Curiosamente, enquanto fazia a pesquisa aparecia como encandeia, e a verdade é que se tivesse o nome original, a música que fizemos não ia fazer sentido, porque esta ideia de ter algo que se ilumina teve muita força na minha interpretação. Quando percebemos o que tinha acontecido, acabámos por deixar ficar porque, para nós, fazia sentido assim. Agora existe o “Encadeia” e o “Encandeia”. 

[Bernardo D’Addario] Eu também convidei o Edgar para o projecto por saber da sua proximidade com a Beira e com a interpretação popular da música portuguesa. Ele teria essa capacidade de esticar ou encurtar certas interpretações vocais e melódicas. Eu dei sempre espaço ao Edgar para poder improvisar e interpretar as músicas como ele quisesse. Nunca houve regras, a não ser usar material desta zona e eliminar material que fosse ligado à Igreja Católica ou cristã, para tentar trazer a componente mais pagã, mais de raiz. 

Podem-me explicar essa ligação ao paganismo e a força dele na Beira?

[Edgar Valente] Assim de uma forma muito resumida, o que o paganismo tem de interessante e que não existe noutras religiões é a não existência de uma entidade, de uma igreja, de uma coisa que formate. O paganismo tem uma coisa que é estar em todo mundo, mas ser visto em cada local à sua maneira, porque ele deriva da relação que a comunidade tem com a sua forma de acreditar e, por isso, muito mais relacionado com a terra, com o céu, com os ciclos naturais desse mesmo sítio, então as entidades acabam por nascer muito pela natureza que cada região. Tem uma força muito maior na autenticidade da ligação das pessoas com a natureza e daí o enraizar ser fundamental. Muito mais do que haver uma entidade qualquer com uma porrada de histórias místicas à sua volta. É mais por aí. E, no caso da Beira, durante muito tempo foi habitada pelos povos bereberes [Norte de África], e eles tinham um culto pagão. Há a teoria que o adufe tem ligação aos bereberes e que representa a fertilidade. Ele tem essa coisa de ser muito usado nesses cultos a fertilidade. E há também a coisa muito interessante de ser matriarcal, e isso também é muito pagão. Na Beira estava presente uma comunidade muito matriarcal. O catolicismo tentou depois fazer esquecer um pouco isso. A terra é muito representada pela mulher, então há estas várias relações. Há coisas muito curiosas em relação aos rituais, têm uma profundidade quase alquímica. Tudo isso interessa-me muito. Perceber como eram feitos, porque aconteciam daquela forma. Toda esta ligação é pensada muito mais no conceito de natureza local, do que das pessoas para as pessoas, ou das pessoas para um Deus. Daí nós também mencionarmos muito o paganismo, a própria mulher.

Diriam que Bandua é uma banda que vive na dualidade? São modernos, mas há tradição, electrónicos, mas populares, falam de Berlim como falam da Beira Baixa, há um lado físico, mas também muito espiritual, os temas tanto apresentam uma dimensão feminina, como também masculina…

[Bernardo D’Addario] Essa é uma excelente questão que tenho de pensar para responder, mas diria que existe essa dualidade, não vou mentir. No entanto, essas dualidades estão sempre constantemente ligadas uma à outra. Há uma ligação “5G” entre esses dois pólos porque sabemos que Bandua é uma junção dessas dualidades. 

[Edgar Valente] Há essa consciência, da sua dualidade própria e do mundo, mas também a de que existe um meio entre essas dualidades. O facto de convocarmos este nome que é Bandua – uma entidade antiga, invisível, espiritual é uma consciência disso. Como se a resposta para aquilo que procuramos estivesse no invisível, no meio. Lembro-me que já falámos disto quando pensámos em como levar isto para o vivo. Recordo-me do momento em que tivemos a clareza de que, se fossemos só os dois, tinha de haver algo no palco, ao vivo, que fosse maior do que nós, que fosse o foco das pessoas.

Queria terminar a entrevista a falar do vosso lado visual que é muito interessante. O paganismo acabou por ser uma influência maior naquelas roupas?

[Bernardo D’Addario] No que toca ao nosso aspeto visual, pelo menos falo por mim, nunca foi uma intenção nossa exteriorizar uma dimensão pagã. Subconscientemente e por acréscimo, fomos, se calhar, expondo e criando o nosso visual de forma muito mais mística e ligada à raiz. Para mim, a questão do paganismo está mais ligada à questão da não existência de um Deus central e de haver várias entidades para várias coisas. E quando quisemos representar Bandua – que é uma entidade que tanto é um homem como uma mulher – para nós foi importante criar uma imagem que também fosse capaz de transpor isso, mas que também possibilitasse às pessoas interpretar aquilo que veem, o que para elas faz sentido. Acabou por nunca ter sido algo pensado como querendo ser pagão, mas apenas algo que reflectisse a Beira, o atar dos homens, o andrógino, o céu e a terra. Por acaso é algo que acho que nunca tinha pensado assim mais a fundo.

[Edgar Valente] O visual é realmente algo que temos apostado assim mais a fundo. Até vamos ter uma pessoa a vestir-nos para os espectáculos ao vivo.

O que sinto é que o paganismo tem uma forma de estar que contempla a união, e nem estou a dizer que sou pagão, mas sinto que estamos à procura de uma certa redefinição da espiritualidade, sobretudo na nossa geração, afastada do catolicismo. Como é que isto de alguma forma se passa para o nosso visual? Tem a ver com a nossa busca para a espiritualidade, para a sua realidade, para a sua necessidade, e existe na nossa dimensão enquanto seres. Nós vamos buscar muito à electrónica da América do Sul, como foi falado, porque ela é muito xamânica. Esta fusão que estamos a fazer traz uma vontade muito grande de despertar esse lado. Essa essência do espírito está muito presente no processo criativo, nem que seja pela forma como, às vezes, sentimos que fomos guiados. Sentes que ainda dá para acreditar na magia e, sem darmos por isso, estamos a fazer coisas um bocado maiores do que nós. 


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