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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/09/2025

Um grupo sem limites e com a Bahia no coração.

BaianaSystem: “Nós só estamos a embalar as nossa referências”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/09/2025

Movimento. Essa é a definição mais assertiva do que se tornou o BaianaSystem. É uma mistura de carnaval, sound system, rock, reggae e cultura de rua guiada pelas diferentes possibilidades da guitarra baiana. Por isso, dificilmente alguém vai conseguir colocar a música do grupo de Salvador, Bahia, em algum tipo de caixa. Ele cabe em todas e, ao mesmo tempo, em nenhuma. Não existem limitações. E essa característica não está apenas nas músicas.

Os concertos também seguem a mesma premissa, o que faz com que cada apresentação ao vivo seja única. Se ainda têm dúvidas, será possível ter essa experiência em Portugal durante a turnê europeia “Lundu Rock Show”. No dia 12 de setembro, ela desembarca no Hard Club, Porto; dia 13 é no Festival Pé na Terra, em Almancil; e dia 14 no Monsantos Open Air, em Lisboa. É sobre essas apresentações e os conceitos do BaianaSystem que Roberto Barreto (aka Beto), um dos seus idealizadores, ao lado de Russo Passapusso e Felipe Cartaxo, fala via Zoom com o Rimas e Batidas.



Vocês já tocaram em diversas partes do mundo. O público internacional tem o mesmo comportamento dos brasileiros, ou no exterior a maioria das pessoas que vão assistir aos concertos são do Brasil?

Vamos lá. Os eventos fora do Brasil, normalmente, têm muito brasileiro, porque tem brasileiro em tudo que é lugar. A gente não tem feito tantos festivais no exterior, porque nos festivais é onde acaba misturando um pouco mais. São shows próprios em casas de todos os tamanhos. Então, 70% do público é brasileiro, mas que reage um pouco diferente daqueles que estão aqui. Lá fora tem muito dessa reconexão, essa vontade de reconectar com as origens, e para a gente é muito legal nesse sentido, porque como o show do Baiana tem essa coisa de troca explosiva, é de alguma forma com essa relação de festa de rua, de show e tudo mais, que as pessoas usam aquilo como quase como uma celebração. Por isso, tem sempre essa sensação. As pessoas vão com camisa de time e levam as máscaras. Temos visto também um crescimento de pessoas que começaram a entender o Baiana dentro desse circuito europeu. Dessa vez vamos lançar vinil e tem uma assessoria que está fazendo as coisas chegarem em matérias, em revistas e coisas que ajudam as pessoas se conectarem com o Baiana.

Os concertos têm uma pulsação. E o brasileiro entra junto nesse fogo. A grande maioria dos shows que eu vi do Baiana foram em festivais. O único que eu vi numa casa foi na Audio, em São Paulo, alguns anos atrás. Mas mesmo assim foi intenso. Tem alguma diferença entre preparar um show para um festival com milhares de pessoas e um lugar fechado com um número reduzido?

Cara, na verdade, quase que cada show a gente fica pensando como é que aquilo vai acontecer, independente de ser em casa de show ou fora. Isso movimenta muito do que a gente comunica e entende o que é. Agora mesmo no Brasil, estamos fazendo dois shows: o “Nossa Cultura” e o “Lundu Rock Show”. O “Lundu” é mais de festival, que tem até músicas novas do disco O Mundo Dá Voltas. O “Nossa Cultura” é o que se conecta com a cidade em que a gente está. Então, se vamos tocar no interior do Rio de Janeiro, ou tocar em Vila Velha, no Espírito Santo, ou em Bezerros, no Pernambuco, tentamos entender o que tá rolando na cidade, o que é que tem da cultura popular… Em Bezerros mesmo, tinha uma coisa de máscara de carnaval e aquilo mudou o roteiro, porque a gente sabia que ia ser um show na rua, né? No festival, às vezes acaba tendo um formato, porque depende da transmissão (pela TV), aí tem só uma hora, uma hora e dez… e isso já vai mudando. Mas a gente meio que se habituou a fazer com que cada um tenha característica própria. Na Europa voltaremos em algumas casas que a gente tocou no ano passado, então já sabemos como funciona, como se comporta, e assim conseguimos ser explosivos no início, depois tocar outras coisas. Ou abre com o ijexá, porque aquilo vai ser mais uma celebração. Isso é meio que parte do processo do Baiana. Dificilmente o show será engessado ou o repertório vai se repetir. Vamos sempre se adaptando… No caso da Europa, enfim, pela sequência acaba que muitas vezes eles ficam mais parecidos, porém a gente consegue deixar uns mais abertos para brincar e fazer com que cresçam. 

Eu sempre falo que as pessoas têm que ir ao menos a um concerto do Baiana na vida. E, de fato, cada um é diferente do outro. Vicia. Tem uma energia totalmente diferente que vocês conseguem transmitir. Além dos ensaios, obviamente, tem algo que vocês fazem para fazer com que essa energia se conecte com o público? 

Voltando um pouco lá no início para você entender. Originalmente, os primeiros shows do Baiana, quando começámos a fazer as coisas ali no Pelourinho [Bahia]… a gente até brinca, que quando fomos para a China, Japão, o repertório tinha seis, sete músicas. Era coisa de uma hora e pouco, porque justamente as músicas permitiam isso. Era quase uma influência ou referência do jazz. Você tocava um tema, podia ser um tema que começava instrumental. Outro tema que Russo Passapusso rimava, como “Barravenida”, que começa ali com um instrumental, o Russo rima e depois abre para uma base de samba-reggae, e vamos brincando. Aquilo vai abrindo espaço para o improviso e para Russo fazer outras rimas. Foi daí que muitas vezes surgiram coisas. Ele tá cantando “Playsom”, aí começava a brincar de “Saci”, depois virou já virava “Balacobaco”. Aí, às vezes ele tá fazendo um negócio, eu cito uma coisa e ele lembra… todo show gente começa a citar Augustus Pablo porque tá brincando naquilo. Então, isso de ter essa troca com o público, como você está dizendo, que cada show tem uma experiência… Quando a gente tocou no ano passado em Portugal, por exemplo, que teve a participação de Titica. Só a presença de Titica já mudou, porque aí a gente já tocou o “Capim-Guiné” com ela, que participa da faixa e aí abre pra tocar “Calamatraca”, que tem uma base muito próxima de kuduro. Nessa, ela começa a brincar e Russo já quer tocar coisas que a gente nem estava tocando no repertório por conta daquilo e de como o público está reagindo. O Russo tem isso de uma maneira muito rápida e sensitiva. Ele passa o olho no palco e já tem roda, já está acontecendo coisa, vamos ficar mais nessa música, porque está rolando. Sabe… algumas a gente amarra num formato, mas entendemos, vamos dizer, o ponto de escape. Daqui a pouco ele diz: “Segura a base”. E aí, vamos ficar ali e aquilo vai acontecer, entendeu? A reação do público, a forma como aquela música está acontecendo naquele momento, determina muito a condução do show.

Em O Mundo Dá Voltas, vocês trazem alguns artistas de Portugal e de Angola. Mas tem muitos brasileiros também. De que forma acontecem essas conexões? 

Cara, mais uma vez voltando a esse pensamento do início, de como surgem as coisas… Se você reparar, o primeiro disco do Baiana já tem muitas colaborações. Tem Geronimo Santana, já tem Roberto Mendes, já tem o BNegão, tem Lucas Santana, tem Letieres Leite… tudo isso no primeiro álbum, porque a gente já pensava nessa ideia desse sound system e guitarra baiana — a guitarra baiana como a voz. Elas não acontecem muito com aquele pensamento de feat, puro e simplesmente, tipo: “Vamos chamar não sei quem para fazer um feat“. São pessoas que realmente tem conexão. Nunca é uma maneira fria, como: “Manda e a pessoa grava”. Isso aconteceu com o Dino d’Santiago e Kalaf Epalanga, porque tem uma ligação muito grande de Angola com a Bahia. A forma que a gente toca as guitarras, a coisa meio samba, chula, ali do Recôncavo, é muito parecido com as coisas de Angola, da forma que eles cantam. O Buraka Som Sistema é uma influência, uma referência pra gente, e aí Kalaf começou a vir em Salvador, assistiu aos shows, e dentro disso começámos a trocar. Fomos para Itaparica com ele, Dino, com Branko, e eles nos convidaram pra participar em São Paulo de um evento no Museu da Kizomba. Então, a música surge aí, nesse lugar. Outro exemplo: a gente já tinha uma conexão com o Gilberto Gil, porque fizemos muitos shows juntos. Também já fiz trilha de filme, produzi e compus junto com o Mestre Lourimbau… Poxa, Gil não conhecia Lourimbau, e a gente precisava apresentar a obra dele a Gilberto Gil. Fomos e mostramos, e Gil achou incrível e se conectou de uma maneira muito forte com a música dele e aí topou gravar no disco. Pitty é a coisa, a gente já tinha participado do disco dela, Conhecemos ela desde a época de Salvador, antes dela sair. E aí tem uma reconexão. É um disco [Matriz] que ela estava falando da reconexão dela com Salvador. E essa música, “Bicho Solto”, acabou sendo quase um remix que virou “Cobra Criada”. “Bicho solto”, no caso da versão dela, e aí virou “Cobra Criada”. Acho que é uma condução entre as conexões musicais, o que a música pede e essas trocas reais que acontecem, sabe? De artistas para artistas e de colaboradores para colaboradores. 

O som do Baiana é bem diverso com várias referências. Tem alguma definição para o som que vocês fazem? Alguma caixinha para colocar?

Não, tem! Isso é uma coisa também que desde sempre tentam fazer. Primeiro colocavam como: “Ah, vocês estão fazendo um som novo”. Mas não é novo. A gente está tocando samba, a gente está tocando frevo, a gente está tocando reggae, a gente está tocando tudo que já teve aí. As referências, quando fala de Trio Elétrico, quando fala de sound system, são coisas que já acontecem. Só estamos embalando, vamos dizer, e trazendo outras colaborações. Mas não é novo. E aí o cara diz: “Mas é meio rock”. É rock também. “Mas tem uma coisa meio de guitarrada”. Tem também. Tem reggae pra caramba. Então é difícil você pensar como uma banda estruturada dentro de um estilo, porque as coisas que nos movem, né, sei lá… Carnaval é uma coisa muito presente, muito importante no Baiana como referência de festa de rua, de acontecimento social. E o Carnaval é um lugar onde você experimenta de tudo. A coisa de você tocar nos festivais fora do Brasil e ter uma formação diversa, assim, vamos dizer, dos componentes do Baiana, faz com que cada um busque e traga uma referência. Então, Bira, por exemplo, maestro Ubiratan Marques da Orquestra Afro-Sinfônica, tá com a gente há cinco anos fazendo arranjos para o disco e tocando. Junto com isso a gente compôs “Água”, compôs uns ijexás a partir do encontro com o Bira. Aí, de repente, você tá mergulhado nesse universo afro-baiano, afro-percussivo, que é uma camada. Mas também vai ficado mais rock muito pesado por conta da presença de Junix, da forma que as guitarras acabam dialogando ali. Então fica rock, fica ijexá, fica pagodão, fica um pouco de tudo.

É uma valorização da cultura brasileira que tem toda essa diversidade, que junta tudo e não tem como definir. Cada região tem uma coisa diferente. E vocês têm levantado uma bandeira interessante, que reforça esse valor da nossa cultura, seja do Brasil e/ou da América Latina.  

Sim, total. E eu acho que… Eu tinha falado daquela coisa muito sensitiva de Russo ali nos shows, e acho que uma outra grande capacidade dele, que acaba ajudando as pessoas a entender o Baiana e o som, são os quase slogans com que ele vai brincando. “Nossa cultura em primeiro lugar” era um slogan que ele achou e as pessoas conseguem entender aquilo, ou quando ele fala em “Capim Guiné”: “Cara de pau de madeira de lei”. Ele vai achando slogans e coisas que as pessoas começam a entender, tipo: “Brasileiro brasiliano, você nunca foi norte-americano”. E aí que é coisa de brasiliano né… “Sul-americano de Feira de Santana.” Então começa a falar de ser sul-americano. Quando ele acha esse slogan e aponta para um lugar, as pessoas conseguem entender: nós somos latino-americanos. O disco O Futuro Não Demora falou muito dessa latino-america, dessa importância pra gente, de como isso acontece, de que nós somos sul-americanos. No OXEAXEEXU veio o brasilIano, que era já o brasileiro sul-americano, e isso vai fazendo com que as pessoas entendam. Ou quando ele fala “nossa cultura em primeiro lugar”, ou seja, é a valorização de quem somos, valorização da cultura afro-brasileira como matriz de toda a nossa música. Aí tem a coisa indígena que é falada… Eu acho que ele começa, justamente o que você falou antes, a mostrar um pouco de como é a formação brasileira e esses olhares, que a gente muitas vezes está de costas para América Latina. Nessa coisa, a Cláudia Manso acabou vindo cantar com a gente, que é uma cantora chilena que estava morando no Brasil há dez anos e que nos trouxe um olhar muito especial sobre isso. Além do olhar feminino, ela traz outra sensibilidade, esse olhar de como Chile, Argentina, Peru, vêem o Brasil. Poxa, você vê as coisas ali do Peru, da América mais Central quando vai indo pra lá, é muito parecido com Belém, com o Norte do Brasil, com a influência de cúmbia, com o merengue. A gente fala da nossa cultura e da nossa relação com as outras culturas que nos formam.

Falando da Cláudia, eu vi o Baiana antes e depois dela. E ela trouxe essa sensibilidade, mas também essa pimenta e o sabor latino também, que está no sotaque e na forma de interpretar. Como aconteceu esse encontro? 

Cara, foi muito doido isso, porque o Russo começou a falar com ela no meio da pandemia. Ela começou a mandar mensagens para Russo sobre o que estava acontecendo politicamente no Chile. Não tinha uma relação musical necessariamente. A gente estava no meio daquela loucura, estava em pleno governo Bolsonaro. Como a gente sempre postava essas coisas, ela começou a dizer: “Vocês precisam saber o que está acontecendo no Chile”. E o Russo intuitivamente perguntou: “Você canta?” E ela falou que cantava e aí começou a trocar mensagens e mandar coisas. Ela já tinha uma coisa também muito focada na política social e começou a mandar coisas, e a gente estava no meio da pandemia sem saber o que fazer e começámos a produzir o disco OXEAXEEXU dentro dessas provocações de Russo. Eu conheci Cláudia por Zoom num primeiro papo. Ela começou a fazer “Capucha”. Eu também já tinha uma música instrumental com SekoBass, que é “Pachamama”. A gente mostrou pra ela e imaginava que tinha que ter uma fala como se fosse uma reza, como se fosse algo que falasse do nosso momento, e ela escreveu aquela poesia… É uma reza, hoje é uma reza pra gente. A gravação foi feita de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e eu acompanhando aqui no Zoom. Ela gravou quatro músicas, eu mandei as ideias de bandolim, e isso saiu no nosso disco. A gente só foi conhecer ela no Rio de Janeiro, no Circo Voador, quando fizemos o primeiro show depois da pandemia. A partir daí ela começou a fazer alguns shows, não fazia todos — os maiores, os que dava, ela fazia, porque estava morando ainda em BH. Assim, a gente percebeu a importância dessas trocas que acontecem com o Russo. Então foi bem assim, foi louco. Começou na pandemia, virou parceira de composição no disco e depois que a gente se conheceu.  

Falando desse último disco, é um pouco mais… digamos, tem uma sensibilidade maior do que os outros e traz também ali batuquerê com um visual tranquilo, inspiracional. Por que o título  “O Mundo Dá Voltas”? 

Cara, então, deixa eu tentar rememorar, durante um tempo ficou como “Batukerê”. Isso acontece direto com a gente. Com O Futuro Não Demora, ele chegou a ser OXEAXEEXU, que acabou sendo um outro álbum. O Mundo Dá Voltas tinha um outro nome que eu não estou lembrado agora. Esse disco começou como “Batukerê” porque, inclusive, foi um single que saiu primeiro, saiu um ano antes, uma faixa grande que trazia mais uma vez essa conexão com O Futuro Não Demora. E aí começamos a trabalhar nele. Só que, enfim, Russo conduziu muito a produção desse disco especificamente. Aí ele estava viajando. Viajou pra Londres, viajou pra Colômbia, viajou pra vários lugares e ia mandando coisas de museu. E ele dizia: “Eu sinto que isso aqui vai alimentar o disco. Eu sinto que isso tem a ver com o disco”. Ele começou a alimentar, tinha essa coisa dele, circulando muito, e a gente também circulando, fazendo shows, fazendo coisas. E aí, a gente começou a entender e depois ele falou: “Caramba, isso amarra mais o sentido do disco do que o ‘Batukerê'”. Nesse caso, porque o “Batukerê” é um elemento disso que tá ali. A música acabou tendo uma coisa interessante, Adailton, porque se você ver a versão original é inteira junto com o que virou “Ogun Nilê” depois. Separámos porque uma abre, o disco acontece e se encerra. Dá essa ideia de volta, né? Acaba e começa de novo. “Ogun Nilê”, “Batukerê”… É essa ideia de O Mundo Dá Voltas. A gente tinha feito uma turnê no ano passado que também reacendeu essa coisa do Baiana muito desde o início. Como eu falei, primeiro ano do Baiana a gente viajou pra China, depois voltou pra China de novo, foi pro Japão, tudo muito novo ainda, sem consistência — nem de público, nem de nada. Então eu acho que a gente estava completando 15 anos de Baiana, sabe? O Mundo Dá Voltas foi um conceito que quando ele se colocou foi muito mais forte para dar esse sentido, e todas essas participações também, né? Você vê o Seu Jorge, Emicida, Gil, Dino vem de Portugal, então dá essa ideia de circular, né? 



O Baiana virou um movimento muito grande, que vai muito além da banda, e movimenta a massa, principalmente com o Navio Pirata durante o Carnaval. Imaginavam no começo que o Baiana se tornaria esse movimento?

Cara, não, não. Assim, a gente brinca… É engraçado, ano passado, quando a gente começou a perceber que eram 15 anos. Não tínhamos nos dado conta que já estávamos chegando a 15 anos, né? O Carnaval é uma coisa muito forte, uma coisa que traz muito esse movimento, a coisa do Pelourinho, e a gente começou a circular no Brasil. E aí, depois do Duas Cidades, ou mais perto ali, a gente começou a ver que: “Caramba, a gente tá indo em São Paulo e tá tendo um público, tá indo em Belo Horizonte e tá tendo um público”. Começámos a entender isso, só que a gente nunca teve muito tempo, vamos dizer… esse tempo todo de parar pra pensar ou de projetar, porque a gente tá sempre fazendo, né? A gente é muito envolvido, principalmente eu, o Russo, o Filipe Cartaxo. Não só com essa coisa musical, com a parte de tocar ali… São muitas frentes que o Baiana é envolvido. Até esse pensamento mercadológico, de como é que a gente faz o Navio Pirata pela primeira vez em São Paulo, como as pessoas reagem àquilo, os shows e festivais que a gente participa. A gente vai se envolvendo em tudo. Vai fazer uma trilha, tem a parte visual. São muitas frentes. Por isso, não tivemos tempo de perceber. A gente começou muito próximo ali da Orkestra Rumpilezz, que foi outra coisa muito importante que aconteceu nesse período. A Rumpilezz é de 2006, se não me engano. Eu fui para o primeiro show deles, que Letieres Leite me convidou, e depois em 2009, quando o Baiana faz o seu primeiro disco, eu convidei ele para participar no disco, e ele toca caxixi. Não tocou nem sax, nem flauta, nem nada. Ele tocou caxixi numa faixa chamada “Vinheta Baiana”, que é uma música instrumental que eu tinha feito em cima dessa coisa de chula. E aí, naquele momento, foi muito importante o que aconteceu com a Rumpilezz em termos de movimento, de orquestras, da parte de sopro, da identidade que aquilo trouxe, de como as pessoas começaram a perceber aquele universo baiano. E aquilo se expandiu, o Letieres começou a produzir pra muita gente. E o Baiana, junto com isso, começou a crescer também nesse sentido de que muitas pessoas começaram a entender aquele formato, a utilização dos beats com os ritmos daqui, que era uma coisa que a gente já tinha experimentado com Ramiro Musotto, que é um percussionista argentino muito importante que teve aqui, que trabalhou com Letieres. Aí vem essa mistura, como a gente falou de não conseguir definir o que é um estilo, aí tem guitarra, tem uma coisa instrumental, tem a coisa do Trio Elétrico, tem as rimas, tem a forma que isso vem… E o público precisava disso. A gente de alguma forma mexeu com o público, vamos dizer assim, na formação do que a gente fez no Pelourinho, o Carnaval também. A gente sempre quis ocupar esse espaço do Carnaval, só que não ocupava porque tinha um mercado que não deixava e que não acontecia daquela maneira. Mas o Carnaval é muito importante para todo mundo e a gente conseguiu estar no Carnaval de uma maneira que foi se solidificando através do Navio Pirata, como a gente falou. Eu acho que são vários elementos dentro disso, mas a gente não teve tempo de perceber, e a gente consegue perceber depois com pessoas que são referências pra gente traduzindo isso: BNegão, Daniel Ganjaman, Gilberto Gil. As pessoas identificarem isso é algo que tem uma representatividade, vamos dizer, da nossa cultura aqui da Bahia. Então eu acho que foi isso, essa soma.

 O Letieres foi importante nesse direcionamento para vocês?  

Do Baiana que você fala?

Isso, musicalmente falando também, como influência em uma referência baiana…

A gente sempre esteve muito próximo, sempre estava acompanhando. Então, isso era muito importante. Eu e ele convivemos muito. A gente até conversou muito sobre isso, porque eu toquei na Timbalada há muito tempo, eu toquei em 6 anos na Timbalada e Letieres tocou com Ivete. A gente sempre se encontrou, a gente participou, vamos dizer, desse mercado de como as coisas funcionavam, a gente sabia a qualidade e a importância dos músicos que eram envolvidos e que faziam isso acontecer, e entendia como aquilo precisava ser falado de outra maneira, precisava ser questionado, e isso aconteceu muito num momento também que foi uma mudança cultural, quando o Gil foi Ministro da Cultura. Teve mudanças, mais festivais independentes, rádios independentes e a gente podendo viajar com esse som e fazer dessa maneira. A gente começou a ver, a gente fez alguns shows juntos, festival em Brasília, festival em São Paulo, festival no Rio, festival em Minas… e as pessoas começavam a identificar aquilo ali com uma cara de uma nova velha Bahia… É aquela velha história: não é novo porque Letieres estava falando de ritmos tradicionais. Eu estou falando de Ramiro Musotto, estou falando de Trio Elétrico, falando de percussão, de blocos afro. Então não é novo, mas começou a ter essa força. E começou a ter, vamos dizer, esse público. Eu acho o Letieres um gênio, alguém de uma importância gigantesca nos últimos tempos.

Além de se juntarem na banda, cada um de vocês têm trabalhos solos. Como é fazer a parada com a banda e fazer sozinho? Tem alguma diferença? 

Cara, tem, mas eu acho que é necessário, assim, sabe? Eu acho que é fundamental e uma coisa alimenta a outra. Desde o primeiro disco que o Russo fez lá, o Paraíso da Miragem, né? Isso já tem 10 anos, mais de 10 anos, eu acho. O Baiana estava se firmando ainda ali, estava indo entre Duas Cidades e O Futuro Não Demora. Era uma necessidade porque o Russo é extremamente criativo, tem várias coisas e algumas delas começaram a se perceber que não eram do Baiana. Apesar de a gente estar junto, aquilo não cabia no Baiana daquela forma e ele precisava fazer de outras maneiras. E isso também vai alimentando, né? Por exemplo, a parceria dele com o Antônio Carlos e Jocafi chegou em um momento que ele ganhou uma maturidade e isso passou a fazer parte do Baiana. Da mesma forma eu fiz um disco instrumental [Estado de Espírito] com o Manoel Cordeiro com produção de Pupillo. Um disco instrumental que fala justamente dessa ligação ali da guitarra baiana com a guitarrada e tudo mais. E tem uma faixa do nosso disco que está no disco do Baiana novo, porque o Russo ouviu e perguntou: “Rapaz, que faixa é essa?” Eu falei: “É faixa que tá lá pelo caminho”. E a faixa tinha muito a ver e ajudava a compor. O Baiana sempre traz alguma coisa instrumental ali. Como foi um processo muito diferente de produção, como eu falei, o Russo tava puxando muito. Eu não estava tanto no processo de composição e de criação, então não tinha nada que tivesse surgido ali para o Baiana. Mas quando ele ouviu… e eu estava sempre mostrando o que fazia com o Manoel e o Pupillo. Aí quando o Russo e o Cartaxo ouviram essa música: “Rapaz, essa música é incrível, tem que vir pro Baiana”. Eu falei: “Não, essa música tá no disco lá”. No final das contas a música ficou nos dois discos com nomes diferentes, sabe? E pra mim também é muito bom. No Carnaval a gente tocou várias músicas instrumentais que não cabem no show do Baiana, por exemplo, com mais guitarrada, uma meio pisadinha que parece um piseiro que está no disco com o Manoel. O próprio trabalho de Bira na Orquestra Afrosinfônica, enfim, eu acho que são coisas que nos alimentam, até que tiram desse pensamento estático de uma banda que tem que estar ali fazendo só aquilo. Acho que são inspirações que vêm pra dentro. 

Queria que você explicasse qual a diferença de uma guitarra normal para guitarra baiana.

Então, olha só, a guitarra baiana é como se fosse um cavaquinho elétrico, só que ela é afinada como bandolim. Então, a guitarra tem toda essa história. A guitarra baiana foi criada aqui por Dodô, sabe? Que é um cara preto, um cara da cidade baixa, um cara que era técnico de rádio, que tinha uma capacidade inventiva absurda. Ele criou, além da guitarra, alto-falantes, amplificadores, instrumentos na década de 40, quando nem existia guitarra no mundo. Aí tem horas que as pessoas aqui acabam querendo ficar falando quem inventou primeiro a guitarra. Nesse caso não interessa, acho que aconteceram simultaneamente. O fato é que naquela época não se tinha muita comunicação e ele certamente não sabia. Ele teve esse impacto, quando o Grupo Orquestra Vassourinhas veio pra Salvador e tocou no Carnaval, eles ficaram impactados com aquilo na rua, com as pessoas acompanhando e tal. Só que eles tocavam cavaquinho e violão e queriam ver uma maneira de amplificar aquilo. Ele viu um cara aqui, Benedito Chaves, com o captador e tentou reproduzir o captador. E aí viu que tinha a microfonia e criou o que se chama de pau elétrico, que era um de cavaquinho e outro de guitarra, e ele criou as guitarras maciças na década de 40 e eles começaram a tocar no carro essas guitarras. E essa guitarra, que rapidamente Armandinho mudou a afinação para uma afinação de bandolim, porque era mais fácil e tem uma linguagem melhor, passou a se chamar de guitarra baiana. Então, ela tem, vamos dizer, uma estética assim… Ela é como se fosse um bandolim. Se você quiser pensar em termos práticos, é como se fosse um cavaquinho elétrico afinado como um bandolim. Passou um tempo, muitas vezes se chamava cavaquinho elétrico. Os primeiros discos do trio tinham o nome de cavaquinho elétrico, às vezes bandolim elétrico, e depois passou a se chamar guitarra baiana. Essa guitarra toca um frevo de uma maneira diferente e tem uma linguagem própria. E aí depois Armandinho passou a assumir e dizer: “Essa guitarra que eu toco é a guitarra baiana”. 

 A sonoridade dela é inconfundível…

No caso, no Trio Elétrico ela tem até uma coisa mais aguda, vamos dizer assim, com mais distorção. Algumas músicas que eu tinha feito para o primeiro disco do Baiana têm mais essa influência, mas eu acabei indo por um caminho de essas referências que a gente tinha falado, da música africana, da música de Angola, do Congo, da Nigéria, de tocar ela mais limpa, de ter essa relação de tocar de dedo em algumas músicas, uso mais de delay, referência de reggae. Então, foi onde eu consegui desenvolver essa linguagem, vamos dizer.


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