Cassete / Digital

Bad Bunny

YHLQMDLG

Rimas Entertainment / 2020

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 11/03/2020

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O que é a música pop? É a música que traduz o pulsar de um tempo, sim, mas é, sobretudo, a música que para cada geração de adolescentes e jovens adultos carrega uma marca identitária. O nascimento do “adolescente moderno” está directamente ligado à imposição do rock and roll na América, a potência que inventou a cultura pop e que a exportou para todo o mundo através da TV, do cinema e da música. Com a prosperidade do pós-1945 (a América não ganhou só a guerra, ganhou também todos os contratos de reconstrução das infraestruturas europeias destruídas pelos bombardeamentos…), os adolescentes afirmaram-se graças ao seu poder de compra e dinheiro no bolso significava Elvis, Jerry Lee Lewis e Little Richard nos ouvidos.

Se olharmos para a lista dos discos mais vendidos na América desde a estreia de Elvis chegaremos a conclusões curiosas. Até 1967 os grandes campeões de vendas ainda resultavam de escolhas “adultas” – Harry Belafonte, as canções do musical da Broadway My Fair Lady, a banda sonora de Henry Mancini para Peter Gunn, mais musicais da Broadway como The Sound of Music, Camelot e Hello, Dolly!, outras bandas sonoras de êxitos de Hollywood como West Side Story e Mary Poppins e esse clássico dos subúrbios brancos que certamente há-de ter animado churrascos de vizinhos ou encontros secretos de swingin’ para donas de casa aborrecidas, Whipped Cream & Other Delights de Herb Alpert & The Tijuana Brass. E em 1967, o disco mais vendido não era dos Beatles, dos The Who, Jimi Hendrix, dos Doors, Jefferson Airplane ou sequer dos Byrds ou dos Love, mas dos Monkees, um grupo para adolescentes, sim, mas inventado por adultos produtores de televisão. Só em 1968 é que Jimi Hendrix reclamou o topo da tabela de vendas do ano com Are You Experienced?, iniciando aí um período de mais nítida sintonia entre o mercado pop e as franjas mais juvenis da população. Esses eram os anos da agitada contestação à guerra do Vietname, das marchas pelos Direitos Civis e a banda sonora para esse tempo não poderia, definitivamente, vir de inócuos musicais da Broadway ou ser ditada por Hollywood. Os anos seguintes foram, no topo das tabelas, extremamente brancos, consagrando nomes como Simon & Garfunkel, Neil Young, Fleetwood Mac, Elton John, Peter Frampton, Bee Gees ou Billy Joel. O arranque dos anos 80 pertenceu aos Pink Floyd, REO Speedwagon e Asia e só em 1983 é que Michael Jackson se impôs como o primeiro artista negro a chegar ao topo da lista dos artistas mais vendidos do ano. Até ao final da década de 80 só Whitney Houston e Bobby Brown igualaram essa façanha. Depois, na década de 90, Janet Jackson, Mariah Carey e Whitney Houston, mais uma vez, tiveram que dividir espaço nessa invejável liga de campeões de vendas com Elton John, Alanis Morrissette, Hootie & The Blowfish (para os Nirvana como os Monkees estiveram para os Beatles?) ou Backstreet Boys. Os campeões deste milénio indiciam mudanças na ideia de pop: Linkin Park, Eminem, 50 Cent, Usher, Mariah Carey, Josh Groban, Lil Wayne e Taylor Swift tomaram conta dos “oughts” e Eminem, Adele, Justin Timberlake, Taylor Swift, Drake, Ed Sheeran e Post Malone dominaram as vendas da última década. A pop ficou, sem dúvida, mais diversa, mais “urbana”, com menos espaço para as guitarras, com muito maior expressão da música que triunfa nas plataformas de streaming. Agora, quase sete mil milhões de views de “Despacito” depois, pode dizer-se que habitamos todxs um novo e admirável mundo pop e que quem protesta por J Balvin levar bonecos para o palco do Nos Primavera Sound apenas deixa claro que não cresceu com o Cartoon Network nem foi acalmadx à mesa dos restaurantes domingueiros com clips do YouTube exibidos no iPad. Bad Bunny é, em Março de 2020, uma das mais excitantes figuras da pop contemporânea. Aos 26 anos, este porto-riquenho dos quatro costados soma milhares de milhões de views e plays nas plataformas de streaming que, definitivamente, se renderam ao pulsar da pop latina que é hoje o género campeão das atenções globais no YouTube. E El Conejo Malo é uma das suas principais figuras de proa. Depois de se afirmar em definitivo com o impressionante X 100pre (o álbum de “Mia” com Drake, de “Ni Bien Ni Mal”, de “200 MPH” com Diplo ou desse prodígio pop que é “Solo de Mi”) e de dividir os créditos de topo com J Balvin no colaborativo Oasis, Bad Bunny regressa em 2020 com uma espantosa celebração do poder pop do reggaeton que recebe o título YHLQMDLG ou, traduzindo a frase abrigada nessa sigla, Eu Faço o Que Me Dá Ganas. Porque, como se percebe olhando para os exemplos da história, de Jimi Hendrix a Michael Jackson e daí a Eminem, 50 Cent, Drake ou Post Malone, a pop avança quando há artistas que chegam de “lugares” não dominados pela norma (seja lá isso o que for) e fazem o que lhes dá na real gana quebrando regras instituídas e indo, sem medos, contra as correntes.

Antes de se falar de música é importante perceber que Bad Bunny não é um boneco pop cantante inócuo: com a ajuda de Ricky Martin e de Residente ajudou a derrubar o governador corrupto de Porto Rico, Ricardo Rosselló, em finais de 2019; tem usado os seus vídeos não como simples cápsulas de entretenimento, mas como veículos ideológicos que o afirmam como portador de discursos anti-misóginos e anti tantas outras coisas ligadas à identidade de género ou aos preconceitos com as normas de beleza, o que no conservador panorama da música latina é facto digno de ressalva e, sobretudo, de reflexão. Quando no arranque dos anos 90 figuras como Shabba Ranks se passearam pelos tops, o mundo recebeu um nítido alerta de que a cadência pop poderia ser ditada por latitudes exteriores aos invisíveis eixos que se estendiam entre Los Angeles, Nashville e Nova Iorque e daí até Londres. A verdade é que a TV Cabo, primeiro, a globalização da indústria discográfica, depois, e a Internet, mais tarde, inauguraram muitas outras vias comunicantes impondo pólos criativos de diferentes origens – de Bogotá ao Rio de Janeiro, de San Juan a Santo Domingo e daí a Lagos, Luanda ou Paris. Quando o reggaeton aproveitou o impulso da ideia “Dem Bow” de Shabba Ranks e se afirmou primeiro nos circuitos subterrâneos das marquesinas de San Juan e depois, via fluxo de cassetes de DJs como DJ Laz ou dos Diaz Brothers, o género começou um longo período de subtil disseminação pela população latina dos Estados Unidos que em 2006 conheceu um apogeu quando a toda-poderosa Pepsi Cola escolheu Daddy Yankee, que um par de anos antes tinha lançado o clássico “Gasolina”, para uma grande campanha. Era a América a admitir, ainda que relutantemente, que a sua cultura era plural, que as ruas falavam outras línguas que não apenas o inglês e que ao “white” e ao “black” haveria agora que acrescentar o “brown” para uma mais justa representação de todas as nuances do mural pop. Inteligentemente, Bad Bunny quer com YHLQMDLG sublinhar toda esta história. Depois do híbrido trap latino do seu álbum de estreia, El Conejo poderia ter optado pela via segura do acentuar dessa aproximação ao modelo americano, ter trazido mais estrelas yankees da mesma dimensão de Drake para a sua beira recorrendo aos produtores que, entre Atlanta e LA ou NY, ditam a norma, mas ao invés disso o novo álbum celebra as raízes e a origem da cultura em que floresceu, uma afirmação de orgulho cultural que descarta imediatamente qualquer diluição da sua postura original preferindo antes, como canta Ozuna no hit que divide com Rosalía, afirmar-se um “cantante” como “los de antes”. E daí as presenças nos créditos do álbum de nomes como os de Daddy Yankee, Yaviah, Nengo Flow ou Jowell y Randy, velhas glórias do género que, percebe-se agora, o mundo que pensa que dita as tendências do gosto se calhar se apressou a descartar. O álbum abre com uma clara declaração de intenções. “Si Veo a Tu Mamá” é outro pedaço de algodão doce pop, construído com o que soa a versão 8-Bit de “Garota de Ipanema” e servido por um clip que, uma vez mais, vê Bad Bunny a subverter qualquer tipo de lógica comercial: enquanto decorre uma animada festa, um tipo tenta suicidar-se por enforcamento apenas para ser interrompido por um miúdo com vestes algo exóticas que lhe diz, “sabes o que faço quando me sinto triste? Ouço Bad Bunny!”; seguem-se imagens da festa que se situa no ano 2000, quando o novo milénio continha todas as promessas do universo, enquanto o tal miúdo usa o walkman para mostrar a luz ao homem suicida. O vídeo seguinte é outra dura crítica: “La Dificil” fala-nos de raparigas que se fazem difíceis em público, mas que revelam o contrário em privado, mas o clip descodifica a letra ao enquadrar a típica figura esbelta feminina tão objectificada em vídeos como uma mãe solteira que apenas tenta educar a filha. Bad Bunny a dizer ao mundo que as mulheres dos vídeos glamourosos não vivem necessariamente vidas equivalentes. As mulheres são, aliás uma preocupação constante de El Conejo Malo, como se percebe praticamente desde o início da sua carreira. Alguma imprensa internacional não deixou de apontar a dificilmente compreensível omissão de um feat para a cantora porto-riquenha Nesi no fantástico “Yo Perreo Sola” (o seu nome não surge nem no vídeo oficial, nem no Spotify, por exemplo), que apenas é mencionada nos créditos das autorias, mas tal facto poderá provavelmente justificar-se por circunstâncias contratuais da própria cantora. O importante é perceber-se que Bunny, que assume múltiplas falhas nas suas letras – no tema que divide com Nengo Flow, Bunny concede “a ti te gustan los bandido/ a mi me gusta lo prohibido” –, não deixa de se auto-criticar como parte responsável nas relações que não resultam, como faz no tema em que colabora com Sech, “Ignorantes”: “No sé si fue la distancia/ O talvez culpa de mi ignorância / No sé si fue por mi inmadurez/ Que mi nena no quiere volver”. Mas é musicalmente que tudo se resolve, com a declinação particular do castelhano porto-riquenho a afigurar-se completamente musical nas interpretações arrebatadas, mas também pontuadas por ironia, de Bad Bunny. Com produções asseguradas sobretudo pelo duo Subelo NEO e por Tainy, é evidente que Bad Bunny procurou sintonizar-se com a memória das festas, as já mencionadas marquesinas, que o formaram como artista, tendo para tal escolhido beats com recorte clássico, inclinação dem bow pronunciada e menos trap do que o material que ofereceu ao mundo em X 100pre (embora haja momentos, como “Está Cabrón Ser Yo”, com Anuel AA, ou a sombria “Puesto Pa Guerrial”, com Myke Towers, em que Conejo regressa à companhia dos hi-hats requebrados). Mas em 2020, esta cadenciada visão da pop soa familiar, tanto aos ouvidos como às ancas, e parece adequar-se na sua económica perfeição aos novos padrões áudio construídos entre as soundbars das novas TVs HD que agora dominam as nossas salas, os auscultadores brancos que nenhum adolescente dispensa e as colunas Bluetooth que passaram a ser acessório imprescindível em qualquer quintal que se preze. Os graves de “Safaera”, tema em que surgem Jowell & Randy e Nengo Flow, parecem especialmente bem desenhados para este tipo de escuta, envolvendo as vozes como um confortável veludo. O tema é uma espécie de tour de force de quase cinco minutos que se assume como uma condensação do espírito agitado das mixtapes originais que ajudaram a impor o reggaeton, quando os DJs pilhavam hits com imaginação: aqui escutam-se ecos de Bob Marley ou Missy Elliott, cita-se o clássico “El Tiburon” de Alexis y Fido feat Baby Ranks, e permite-se que cada MC exiba os seus melhores argumentos de incitamento à festa. Em 2020 a pop é diferente da de 1960, 1970, 1980 ou 1990. O som é diferente, o ritmo é diferente, a língua, o sotaque, o visual e a mensagem são diferentes. O mundo é diferente. Assolados com vírus, separados com muros, com o futuro ameaçado pelo crescimento de velhas intolerâncias que para alguns são novas bandeiras, fazer o que nos dá na real gana pode ser o melhor de todos os antídotos, sobretudo se o fizermos a dançar numa festa em que todos são bem-vindos e em que a língua que se escuta nos é, afinal de contas, tão familiar.

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