O enleio estabelecido entre as músicas do Brasil e dos Estados Unidos já vai longo e vai bem para lá do momento em que Carmen Miranda encantou Hollywood, recuando muito mais, o que faz pleno sentido já que as músicas que nasceram das duras experiências coloniais dessas duas nações foram criadas por pessoas com as mesmas origens e identidades. Ontem, no Musicbox, em Lisboa, perante uma sala esgotada preenchida de gente que sabia muito bem ao que ia, os lendários Azymuth mostraram a extensão dessa já remota relação ligando as cadências do samba às colorações harmónicas da bossa nova e do jazz, aos ritmos do funk e do disco, e criando, nesse energético processo, uma sincrética e universal linguagem que qualquer corpo entende.
Alex Malheiros é agora, depois dos desaparecimentos de Ivan “Mamão” Conti e José Roberto Bertrami, o único membro sobrevivente da formação original do grupo, a garantia, através do vibrante som que retira do seu baixo, de que a fórmula criada há mais de 50 anos continua a garantir fantásticos resultados, como os primeiros avanços do seu próximo disco — a ser lançado daqui a um par de semanas pela londrina Far Out Recordings, Marca Passo — tão bem deixam claro. Ao seu lado encontram-se Renato Massa, incrível baterista que traz para este trio experiência acumulada ao serviço de artistas como Marcos Valle e Ed Motta, e também Kiko Continentino, um não menos espantoso teclista que já coloriu arranjos para bandas de Milton Nascimento ou Djavan — e só essas referências a gigantes da MPB já devem dar uma ideia clara do calibre destes músicos.
Em entrevistas concedidas em tempos recentes, Malheiros explica que estes novos membros entenderam o espírito original da banda que criou com Conti e Bertrami e que por isso têm os recursos técnicos certos para a criação espontânea e o improviso livre. O concerto de ontem foi uma demonstração prática dessa capacidade. Percebeu-se que os temas apresentados são meras sugestões sempre moldáveis consoante o ambiente que encontram. E ontem, bem, ontem o ambiente era propício à viagem, com os presentes a aplaudirem efusivamente cada solo.
Kiko estava especialmente endiabrado, mostrando-se capaz de fazer dos Azymuth um Hammond trio encharcado em ácidos num momento para, logo depois, o transformar num piano trio (Rhodes piano, bem entendido) vindo para aí de Andrómeda. Tanto groove num par de mãos apenas. E Renato é uma cascata de ritmos humana, com samba nos pés e Clyde Stubblefield nas mãos. Em cima disso, Alex diverte-se como se tivesse 20 anos, com luva na mão direita para melhor trabalhar as cordas que, sinceramente, destilam classe naquele baixo, capaz de só por si obrigar ao movimento colectivo.
E se a revisitação de “Partido Alto”, original de 1979 incluído no álbum Light as a Feather, incendeia a pista que ainda reconhece e aplaude a citação via teclados a “Mas Que Nada”, já a balada “Last Summer in Rio “, de Telecommunication de 1982, aproxima os corpos numa “levada” mais sensual. Em ambos os modos, os Azymuth arrasam. E depois há a interacção com o público que se revela, afinal de contas, mais um instrumento ao serviço do trio, como tão bem se percebeu em “Tamborim, Cuíca, Ganzá, Berimbau”, tema de Águia não come mosca, o clássico terceiro álbum do grupo, datado (salvo seja…) de 1977.
Uma festa, portanto, o que os Azymuth ontem, em boa hora, levaram ao Cais do Sodré. Prova de que uma fórmula com meio século continua ultra eficaz.