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Fotografia: Joana Magalhães
Publicado a: 23/05/2022

Uma rapper e produtora do Porto com o co-sign de Allen Halloween.

AZIA: “A mentira e a injustiça são assuntos que mexem comigo. Tenho imenso para dizer sobre isso”

Fotografia: Joana Magalhães
Publicado a: 23/05/2022

Fruto do acaso e de experiências solitárias nasceu AZIA — e consigo foi erguido um mundo peculiar para onde somos transportados quando mergulhamos na sua obra. Foi em Março de 2020, através do canal de YouTube da Paga-lhe o Quarto, que tivemos o primeiro impacto consigo a propósito do tema “APAGA A LUZ!”, interpretado, escrito, produzido e com videoclipe realizado pela mesma pessoa: ela mesma.

Factótum da sua arte, a artista brindou-nos ainda com “Bedtrip”, “Nada, fish!” e “Foque-o!”, que conta com um verso certeiro de DEL. As restrições que caíram sobre o nosso quotidiano nesta altura deram-lhe espaço para se fechar no seu laboratório musical e continuar a explorar sonoridades. O resultado? Um longa-duração carregado de mensagens disruptivas, pelo menos para os que “lerem além de arestas”. Causa Torpe, o seu álbum de estreia, devaneia sobre aspectos menos luminosos da nossa sociedade, como a mentira, a manipulação ou a injustiça — e é, sem dúvida, um óptimo estímulo para o nosso tálamo. 

Fomos até ao Centro Comercial STOP, local quase tão obscuro como aquele em que nos coloca AZIA – não tivesse sido este uma inspiração essencial para o seu trabalho – conversar e desvendar alguns dos mistérios desta sua viagem.



Antes de chegar à AZIA, como é que é a tua história com a música: tiveste outros projectos? 

Desde pequenina comecei a estudar música. Estudei piano e [tive] formação musical.

Clássico? 

Sim! Estive para aí sete anos a estudar piano e a dada altura fartei-me do piano e estive um ano a estudar percussão. No meio da percussão experimentei a bateria — foi o instrumento a que achei mais graça –, entretanto quando entrei para a faculdade parei, fui estudar outras coisas, e quando acabei a faculdade voltei a estudar bateria. Pronto, quando voltei, como já não era nenhuma miúda, comecei a estudar realmente a sério com o objectivo de entrar para um curso superior de jazz. Então tirei outro curso, anos mais tarde, de bateria jazz em Lisboa. Depois, como baterista, já toquei em vários projetos. O primeiro que me recordo de dar mais concertos, foi com o B Fachada e depois toquei em montes de coisas diferentes, estilos diferentes. Toquei numa banda de kuduro com um dos vocalistas-fundadores dos Throes + The Shine, o Diron Animal. Hmmm, já toquei numa banda de rockabilly, jazz, rock psicadélico, punk rock, pós-Metal, coisas muito diferentes. 

Quando estavas a estudar, clássico ou jazz, já tinhas gosto por esses estilos em que acabaste por trabalhar ou a tua visão era tocar e prosseguir no que estudavas? 

Sabia que queria estudar bateria e, cá em Portugal, a formação mais consistente que há para estudar bateria é na vertente jazz e foi por isso que me decidi por aí. E como os exames de admissão são bastante rigorosos, eu sabia exactamente o que é que tinha que estudar para conseguir entrar no curso. A dada altura comecei a ficar um pouco saturada também do jazz e comecei a ter vontade de explorar outras coisas. Aqui no Centro Comercial STOP os músicos conhecem-se todos, vão convivendo, uma coisa puxa à outra e fui acabando por ser chamada para projectos diferentes. Há coisas que eu só comecei a gostar depois de me envolver nelas. 

E, enquanto ouvinte, antes de pensares em fazer música, também eras assim ecléctica? Ou tinhas um estilo principal? 

Não, ouvi sempre de tudo, bastantes coisas diferentes. Às vezes era só: gosto daquela música, daquela banda, gosto daquelas duas músicas daquela banda. Assim os projectos que me marcaram mais enquanto adolescente, e na pré-adolescência também, as coisas que ouvi, mais foram para aí os Beatles, Nirvana… Se calhar foi o que ouvi mais… 

Se calhar eu também [risos], talvez AC/DC também, não? 

Não ouvi muito, mas dou aulas de bateria — mais a miúdos — e ensino-lhes muitas coisas deles… São coisas simples e orelhudas, os miúdos gostam… 

Sendo que agora estás a lançar um projecto que descreveria como sendo de hip hop ou de rap psicadélico, como tu lhe chamas. Quando é que começas a ter interesse pela escrita ou pelo MCing… por começares a ser intérprete também? 

Ora bem, eu sempre ouvi hip hop também, mais coisas americanas, como acho que acontece com quase toda a gente, não é? Eu, como ouvinte, não dei grande importância ao início do rap em Portugal, ouvia coisas mais americanas. 

Tens assim algum exemplo que curtisses mesmo? 

São aqueles nomes que toda a gente gosta… 

Wu-Tangs e B.I.G.s? 

Sim! Busta Rhymes acho que foi o primeiro que me prendeu, pela vertente rítmica muito forte e rebeldia. Tribe Called Quest, Mos Def, Nas… Esses todos! A dada altura achei… como baterista eu compunha as minhas partes de bateria, não é? Mas nunca estive a liderar uma banda, ou seja, nunca fui responsável por toda a composição… E a dada altura, se calhar por andar a ouvir mais rap português, achei que era interessante comprar uma MPC e ver o que ia acontecer. E, pronto, andei à procura de uma MPC, comprei uma MPC, fechei-me aqui muito tempo, primeiro a tentar mexer naquilo, depois comecei a fazer experiências, comecei a fazer coisas a que achei mesmo piada e comecei a pensar que tinha que chamar alguém para pôr voz naquilo. Só que passei aqui tantas noites sozinha até às tantas da manhã, que pensei: “ó pá, vou experimentar qualquer coisa, não é?” E foi assim um bocado por acaso. Comecei sozinha a escrever, aqui na sala, a gravar umas coisas. Depois tinha alguns amigos mais próximos que começaram a ouvir, começaram a dar-me algum feedback e, pronto, essa ideia foi crescendo assim aos bocadinhos dentro de mim, não foi uma coisa que eu planeasse. 

Portanto, estás a falar de mais ou menos há sete anos? Na altura daqueles singles

Aqueles vídeos manhosos [risos]? Aqueles áudios manhosos que estão lá [YouTube], que foram as primeiras brincadeiras assim descontraídas… Eu comprei a MPC depois disso. Eu acho que aquilo foi para aí há seis anos, eu devo ter comprado a minha MPC para aí há quatro ou cinco não tenho a certeza. 

Então, aqueles beats não eram produzidos por ti? 

Aquilo foi num IPad, na altura tinha um IPad, tinha o GarageBand lá, estava com uns amigos em minha casa… disse, “olha vamos fazer aqui uma música!” E fizemos o instrumental ali a usar aquelas ferramentas do GarageBand e gravámos. A brincadeira daquilo era: escolher o tema, criar e gravar o refrão… e depois cada um tinha cerca de 15 minutos para escrever qualquer coisa, sem desvendar aos restantes… e gravámos diretamente para o microfone do IPad ao primeiro take. Ficou aquela brincadeira e decidimos pôr no YouTube. Eu na altura criei o nome AZIA, não é? Sem pensar no futuro. Depois, passado para aí um mês, fui a casa de uns amigos meus, estava uma data de gente lá e eu disse: “olha, e se fizéssemos uma música como eu fiz com os outros em minha casa?” E fizemos a mesma brincadeira. 

Que é a “Baleias”? 

A “Baleias”, sim, a mesma lógica… Pronto, isso foi uma brincadeira que ficou, e se calhar isso também espoletou a minha vontade de depois pensar, “vou tentar fazer uns beats fixes e ver no que é que isto vai dar”. Foi assim! 

Costumo observar, pelo menos no hip hop, que o que faz o pessoal progredir, escrever e querer lançar músicas é ter um círculo ou uma comunidade de pessoal que está a tentar crescer na cultura. Tu, sendo talvez de outros mundos, alternativo, B Fachadas, rock… Cá no Porto também estavas incluída na cultura hip hop? 

Não, nada. Não estava, nem estou, acho eu… [risos]



Eu, pessoalmente, comecei a conhecer o trabalho de AZIA, com o tema “APAGA A LUZ!” que saiu pela Paga-lhe o Quarto, como é que aconteceu essa ligação? 

Quando comecei a fazer algumas músicas percebi que precisava de alguém que me misturasse aquilo porque é uma área que eu não domino. Gostava de, se calhar no futuro, dominar, mas não domino. E achei que precisava de alguém que fosse do universo do hip hop para misturar aqueles sons, então falei com o Keso porque sabia que ele fazia esse trabalho. Ele veio cá ao STOP, à minha sala, ouviu os sons e convidou-me! Acabou por não ser ele a misturar, acabei por fazer isso com outra pessoa, mas ele na altura convidou-me, acho que achou graça àquilo e eu aceitei… E foi assim que se deu essa ligação. 

Em termos de sinergia para a construção do teu trabalho, sentes que influenciou de alguma maneira a tua sonoridade, o fazeres parte, o conheceres novas pessoas do hip hop? 

Não, acho que não. Foi sempre um trabalho muito solitário… 

Já falamos de onde é que tu vieste, até da tua formação… Mas em que altura é que decidiste que ias começar a fazer estas músicas e em que inspirações é que te apoiaste para a escrita do álbum? 

Não te sei dizer quando decidi começar a fazer as músicas porque tinha para aí dois ou três beats de que eu gostava… Acho que a vantagem de fazer os próprios beats é essa, eu faço um beat na MPC, aquilo inspira-me um assunto, começo a escrever… depois a escrita obriga-me a ir para outro ambiente, ou seja, o texto começa a correr e leva-me para outro ambiente, eu volto a pegar no beat e altero-o. Ou seja, é um trabalho sempre em paralelo. 

Dirias que a matéria-prima para escrita é o beat

Sim… 

Nunca aconteceu teres um poema e tentares musicá-lo? 

Mais ou menos… Aconteceu ter já uma ideia primeiro e depois construir a partir daí, mas nunca tenho o texto antes do beat, até agora nunca foi possível… É o ambiente sonoro que me vai induzir para um assunto, não consigo pensar ao contrário. 

Percebo, e acho interessante… Esse ambiente sonoro, em termos de samples e matéria-prima, onde é que costumas ir beber mais? Que estilos, que onda, que época? 

É também muito variado… Há coisas que eu já sei que sou obrigada a ir buscar, porque sempre me marcaram desde miúda, não é? Depois há coisas que encontro a navegar na Internet e vou parar a sítios que eu nem sabia que existiam… Mas também tenho muitas coisas que eu gravei com teclados… 

Ou seja, não acontece tudo na MPC? 

Não, gravo para lá instrumentos também. Cheguei a gravar teclados, guitarras, baixo, até trompete! Tenho um amigo meu que gravou trompete numa música-

É o Otávio, não é? 

Sim, pedi-lhe o trompete emprestado, apesar de não saber tocar trompete… Aproveito assim os instrumentos que me vêm parar às mãos, tento sacar alguns sons engraçados e depois manipulá-los na MPC. 

Essa era uma dúvida que eu tinha, por acaso. Eu vi que tinhas guitarra portuguesa, contrabaixo, baixo, o próprio trompete de que falávamos… Estas colaborações acredito que surjam deste ambiente do STOP ou das tuas ligações musicais. Mas costumas já ter uma ideia específica e pedes para alguém compor, tens uma composição que pedes para alguém interpretar ou tiras samples para tocares tu na máquina? 

Quando sou eu, é assim que eu faço. Gravo sons, coisas assim mais vagas que depois posso manipular… Quando chamo alguém para vir cá, já sei mais ou menos o que quero que a pessoa faça, mas dando sempre alguma liberdade. No caso da guitarra portuguesa, aí só disse… aliás, como ele não está cá, vive na Suécia, eu peguei num bouzouki emprestado, porque ele me pediu uma orientação, então pus-me a tocar umas coisas meio absurdas só para lhe explicar mais ou menos o ambiente que eu queria. Ele enviou-me um esboço gravado com o telemóvel, gravado sem metrónomo, sem nada, só para eu ouvir e depois como ficou uma data de tempo sem me dizer nada, acabei por usar a primeira coisa que ele me enviou. [Risos]

Aí partes do que ele enviou ou já envias o esqueleto do beat

Envio sim. Deixa-me pensar como é que no geral costuma ser… Por exemplo, no caso das participações de baixo e contrabaixo, aí tenho a música já toda feita… posso dar indicações rítmicas de onde quero que a nota caia, mas dou espaço para a pessoa ser criativa. Há momentos que, se eu estiver presencialmente com a pessoa, digo, “olha, ali gostava mesmo que fosse assim”, às vezes até canto… Outros momentos em que eu digo, “olha, não sei muito bem, mas acho que é mais ou menos isto, estás à vontade” e a pessoa vai experimentando até eu sentir que encontramos o que faltava. 

Certo! Nessa ideia que referiste há bocado, que sentes que não estás mesmo “inserida” no hip hop, que não é 100% o teu mundo… Mas recebeste um props de uma pessoa que é bastante influente e talvez das mais respeitadas no meio, que é o Halloween, não é? Queres contar-nos essa história? 

Sim… Temos um grande amigo em comum que me foi ver quando fui tocar a Lisboa e ele acabou por aparecer também. Tive o prazer de o conhecer e que ouvisse a minha música. Acho que ele curtiu e acabou por partilhar um vídeo meu. Fiquei contente, sim… 



Tens também a participação do Del, na “Foque-o!”, ele próprio não é do universo HH unicamente…como é que foi teres outro MC numa faixa? Foi a única vez que isso aconteceu, certo? 

Foi e correu bem… Mas eu estava… tinha vontade de ter essa experiência, mas para mim é um assunto mais delicado porque enquanto posso chamar um músico instrumentista aqui e ter uma conversa e dizer mais ou menos como é que quero que as coisas corram e haver uma experiência, eu sabia que se fosse convidar um MC que não o podia andar a massacrar, por exemplo, em relação ao texto. Tenho que dar mais espaço e eu sei que tenho um mundo muito específico, então estava preocupada que chegasse um texto que… sabes? Que eu não sentisse, ou não me identificasse e depois dava-se ali uma situação toda constrangedora e é por isso que eu ainda não falei a mais gente. Como na altura estava com ele de vez em quando, e é um gajo que eu acho que é extremamente inteligente — nota-se, não é? Pela escrita dele. Expliquei-lhe sobre o que era aquela música. Mandei-lhe o beat, aliás, a primeira versão que lhe mandei estava diferente do que acabou por ficar. Ele mandou-me uma gravação por cima daquele beat, eu percebi que tinha que mudar a parte instrumental dele e pedi-lhe só duas ou três pequenas alterações ao texto. Por exemplo, na versão original [risos], havia lá uma rima em que ele falava do Bruno Nogueira, e eu disse, “pá, não quero referências, não quero nomes”, sabes? Não quero-

Mundo real? 

Sim, não quero mundo real… Coisas específicas, quero uma coisa para a posteridade, que uma pessoa possa ouvir… Que fique limpo, sabes? É curioso que no rap, cá em Portugal, há muito isso, não é? Referências a este ou ao outro… 

Acho que isso acontece na procura do artista querer que o público se identifique mais facilmente. Se calhar quando se faz uma referência desse género

O pessoal diz: “Eu conheço!” [risos]. Como aquela música é um universo meio macabro, para mim, assim um nome não faria qualquer sentido. Ele até me disse: ”já estava mesmo a imaginar que me ias falar disso”. Ele alterou e foi fixe, correu bem… Eu gostei bastante! 

Por acaso a parte dele e a estética do tema certamente também te leva para NERVE? 

Sim, das primeiras vezes que ouvi, claro, claro… 

Isso que mencionaste, de não quereres ligar-te a referências, ou à parte mundana da coisa… Relembra-me o mistério que existe em AZIA, é uma coisa propositada, não ligas a redes sociais simplesmente? Fazes questão de separar a artista da pessoa? 

Como isto foi tudo quase um acaso da vida, eu chegar aqui com este projecto. Sempre me vi como baterista, no fundo do palco, escondida. Para mim a ideia de pegar no microfone nunca esteve em cima da mesa. Quando comecei a fazer as primeiras músicas nem sequer me imaginava.. .pensava: “como é que vai ser quando eu for para um palco?” Não me imaginava à frente, imaginava-me quase na escuridão, lá atrás [risos]. Os primeiros vídeos que eu fiz aqui no STOP, muito descontraídamente, não é? Aquilo são vídeos todos lo-fi… Eu não estava nada preparada para dar a cara. Como não foi uma coisa planeada, que foi acontecendo, eu depois ouço a música e penso “era fixe ter umas imagens”, depois aqui no STOP era fixe filmar… Mas também não tinha vontade de me assumir assim, frontalmente, com a câmara. E também acho que visualmente isso combina com a música que eu faço. Como é todo um ambiente assim escuro, eu imagino assim tudo… escuro [risos]… Pouca cara, pouca luz, percebes? 

Sim, completamente. Está de acordo com a estética… 

E o que puxa isso é a música que eu faço… 

Agora que falamos dos vídeos, tu tens mão na realização, às vezes até na operação de câmara. Reparei também, já agora, na referência óbvia ao David Lynch: gostas de cinema, estás na área? 

Gosto… Eu quando parei a música e fui para a faculdade, estava convencida que ia ser realizadora e que ia fazer edição também. Depois quando acabei a faculdade, acho que me apercebi da dimensão, problemática que é estar nessa área… Estar dependente de dezenas de pessoas e de dinheiros… Quando voltei à música pensei que talvez mais tarde pudesse juntar os dois universos e fazer música e fazer os vídeos. E agora tenho oportunidade de fazer essas duas coisas… Aliás, daqui a um tempo vai sair um vídeo da “Em Thalamus”, que vai ser assim o vídeo mais fixe! Pedi a um amigo meu, o Vasco Loja, para fazer o vídeo comigo… ele esteve a operar a câmara e fazer direção de fotografia, eu estive a realizar e a editar. Esse vídeo acho que vai ser o primeiro em que eu considero que junto de facto essas duas valências. 

Nos outros não consideras? 

Considero, mas é uma coisa muito mais descontraída, percebes? A “Nada Fixe”, por exemplo, eu fiz aqui, sentada, apaguei as luzes, liguei só este candeeiro e usei a câmara do computador. Foi sempre tudo muito descontraído. Não sabia onde é que a coisa ia parar. Pus aquele efeito, fiquei ali a curtir um bocado e ficou! 

Esse estudo e essa envolvência na parte cinematográfica influencia a música de AZIA, também? 

Acho que sim, acho que sim… Em algumas músicas sente-se isso, noutras nem tanto. 



Se calhar no “Relato de uma testemunha”? 

Sim, sim… 

Eu à medida que ouvia a música estava… 

A visualizar?

Sim.

E na “Em Thalamus” também me aconteceu a mesma coisa, eu escrevi assim um pouco lentamente e ia sempre visualizando à medida que ia escrevendo e a pensar “devia fazer um vídeo para isto, mas vai ser uma problemática do caraças fazer um vídeo para esta história” mas depois lá me atrevi. 

Estou curioso! Por acaso uma vez num workshop recebi um conselho: em músicas de storytelling não é recomendado fazer o vídeo exactamente como o que é descrito na música, permitir isso… 

Eu percebo essa regra, mas acho que nem sempre se aplica… 

Tens a cabra a receber um mata-leão? [risos] 

Tenho a cabra a receber um mata-leão. Mas não é um animal… é um animal, mas é humano… [risos] 

Por acaso a minha interpretação dessa música acontece num tribunal… 

Engraçado dizeres isso. Por acaso, quando estive a pensar em imagens para a capa, estive a ponderar mesmo pedir aí no Porto para ir fotografar ao tribunal. Porque achei que era uma coisa que fazia sentido, mas depois achei que era um bocado megalómano e desisti da ideia. Apareceu o circo, que acho que também fazia todo o sentido… Mas acaba por ser um julgamento, sim, mas é popular, percebes? Não é institucional… [risos] Fala da injustiça, da mentira, da verdade … que são um assuntos que acabam por estar no disco todo-

Podemos ir ao disco agora… Causa Torpe, eu não sabia, mas é basicamente quando se comete um homicídio com uma motivação perversa, por exemplo querer uma herança ou por preconceito unicamente? 

Sim, um motivo duvidoso ou desonesto que espoleta uma acção eticamente reprovável. Isso foi a minha inspiração para quase todas as músicas… Experiências que eu tive na minha vida com pessoas desonestas. Eu inspirei-me nisso para desabafar. Às vezes metaforicamente, não é? Há pessoas que me conhecem e tentam identificar: “Naquela música estás a falar de X”. E eu “Não estou”. É difícil o pessoal perceber de quem é que estou a falar, mas eu estou sempre inspirada em pessoas que conviveram comigo. 

Ia perguntar se às vezes vais para o abstracto/ficção, mas acabaste de responder… 

A “Em Thalamus” acho que é a única mais abstracta e metafórica que fala genericamente da injustiça, da mentira e da manipulação. Tudo o resto são coisas concretas que eu vivi… 

Thalamus, tem o trocadilho, muito engraçado. Mas é uma parte do cérebro, não é? 

Sim, sim… 



Sentes que essa música estando “Em Thalamus” é por estar dentro da cabeça das pessoas? 

Bem, para além de ser um trocadilho, também é uma metáfora porque o tálamo é responsável pelo processamento de informação sensorial, visual, auditiva… olfactiva não… estará também relacionado com o estado de alerta e de atenção. Depois eu transformo isso numa metáfora, nesse caso, os bois… Eu, estando sozinha “Em Thalamus”, pus-me nesse lugar, da pessoa que está a absorver toda a informação e que é capaz de discernir com clareza. No caso os bois são os elementos que estão a ser manipulados. 

Pois, neste contexto de julgamento, aquela intro, para além de nos introduzir a sonoridade do álbum, pareceu-me o compromisso de honra de uma testemunha, certo? Que áudios são aqueles? 

Ok… [risos]  Eu fui ao Google, sabes quando escreves uma frase e escolhes a língua e o gajo dita-te a frase que tu escreveste? 

Sim, sim… 

Pronto, é engraçado, porque a primeira voz, que é masculina, várias pessoas me perguntam se aquilo é russo. 

Ah, por acaso, notei que era espanhol! 

Pronto, mas quase toda a gente pergunta “aquilo é russo?” e eu “não, está a falar inglês…” [risos] Só que é com sotaque hispânico. 

São três pessoas, então? 

Sim, o texto que eu ponho no início: “Do you swear to tell the truth, the whole truth and nothing but the truth?” E fui distorcendo a frase… À medida que eu ia pondo a frase com outros sotaques… No final já está a dizer “Do you swear to tell gertrudes…” Fui fazendo assim umas brincadeiras. Mas, sim, é uma espécie de introdução ao julgamento, não é? 

Curioso que só o terceiro áudio me soou ao Google a falar. Gostas de explicar o que queres dizer em cada música ou preferes que as interpretações possam ser muito variadas e talvez completamente ao lado? 

Não penso muito nessa questão… Ou seja, se me vierem individualmente falar sobre as músicas, eu falo com todo o gosto e explico. Se calhar, se for demasiado íntimo, chego ali a um ponto e travo, mas acho que a graça da música ou da escrita também é essa, poder ser interpretada por ouvidos diferentes… 

Concordo, eu próprio acho que desvendar demasiado pode tirar a magia… Neste álbum tens alguma música favorita? 

As favoritas vão mudando consoante a época. Quando lancei as primeiras lá na Paga-lhe o Quarto, eu não as tinha todas ainda. Ou seja, fiz umas primeiras músicas, fui misturá-las e não sabia muito bem onde é que ia parar. Não tinha ainda a ideia da concepção do álbum no início. Depois entraram as medidas da pandemia… 



“Mata-zé-li-o”? 

“Mata-ze-li-o…” é engraçado que ninguém sabe ler essa palavra… Isso é uma brincadeira com o pessoal que não saber conjugar direito: eu “púzio” ali, por exemplo [Risos]. Respondendo à pergunta, no início se calhar, gostava muito da “Nada Fixe” e agora se calhar gosto mais da “Em Thalamus” e da “Relato de uma testemunha”, vai mudando… Também é conforme os dias. Mas como são músicas que escrevi mais para o fim, com outro à vontade a escrever, não é? Porque eu basicamente comecei a escrever… Tudo aquilo que eu comecei a escrever está no disco. Não escrevi texto que foi para o lixo e com os beats igual… 

Mas, então, quando é que surge o Causa Torpe, quando é que decidiste que ia ser este o conceito? 

Não sei muito bem, mas talvez já para aí há um ano. Eu no início lancei aquelas músicas e não sabia muito bem onde é que aquilo ia parar… como as primeiras brincadeiras que fiz, completamente descontraída… a primeira música que fizemos, a “odeio bandas de covers”, para aí no dia seguinte já estava na net. Com estas músicas também a dada altura pensei que não fazia sentido tê-las aqui paradas. Queria partilhar. Depois com a quebra que houve com as medidas da pandemia acabei por fazer mais músicas e percebi qual era o assunto que as ligava, achei que fazia sentido juntar tudo numa coisa só. Até dada altura não sabia se ia lançar só três ou quatro sons, se ia lançar um EP, não sabia muito bem… A coisa acabou por acontecer assim. 

Sentes que o feedback ou os concertos que deste foram o que te motivou a continuar? 

Acho que foi o prazer que me dá fazer isto… Ver se consigo fazer diferente do que já fiz, se consigo fazer melhor, tenho sempre essa curiosidade. Depois destes o que é que será que vai acontecer a seguir? Será que vou estar a escrever melhor? Será que os beats vão ser mais malucos? Mais fixes? Tenho essa curiosidade, que é uma descoberta para mim também. 

E achas que para fazeres o próximo tens que viver mais? 

Ainda tenho muitas coisas para dizer e muitas histórias para contar! A cena fixe de escrever, que eu descobrir, é poderes transformar as experiências más na vida em coisas boas como a música. Coisas que me deixaram mesmo triste ou infeliz ou com raiva… depois poder pegar nisso e enfiar-me aqui na sala e desabafar, sabes? É uma sensação muito agradável. 

É uma terapia, não é verdade? 

Sim, mas até já me aconteceu [risos] viver uma experiência má e pensar: “que bom, vou para a sala e vou fazer uma música!” Transformar uma coisa má numa coisa boa e positiva. É uma sensação que eu desconhecia completamente. Antes acontecia uma coisa chata, vinha para aqui tocar bateria não sei quantas horas e desanuviava a cabeça… Mas depois parava e voltava a pensar nas coisas. Agora quase que esfrego as mãos a pensar: “Ai é? Aconteceu-me isto? Então, pronto, vamos lá”. Mas sinto que podia fazer mais 10 álbuns sobre o mesmo assunto, percebes? Acabou por ser este o assunto, a mentira e a injustiça, porque são assuntos que mexem mais comigo. É uma coisa que está tão embutida na nossa sociedade, nas vivências de cada um, que sinto que podia fazer não sei quantos álbuns sobre este assunto… Tenho imenso para dizer sobre isso. 

A AZIA imagina-se noutro registo? 

A AZIA, esse nome, explica-se exactamente por isso… É quase uma azia mental, uma má disposição mental que me obriga a verbalizar coisas… Não me imagino a escrever sobre assuntos positivos, sabes? Ou sobre ir à praia, beber um cocktail e ser muito divertido… Para mim não tem cabimento, fazer música sobre coisas assim, corriqueiras… é um bocado como no cinema, acho mais graça a filmes de suspense, drama, terror, do que estar a ver aquilo que chamo um filme de domingo à tarde, levezinho. Não sinto que haja conteúdo interessante nisso. 

Então, para ti, separas arte de entretenimento? 

Acho que se pode fundir… aliás, o último som que eu tenho, aquele beat

Sim, sim… 

Eu até dada altura achava que aquela música era demasiado bem disposta, a mais bem disposta que eu tenho [risos], tanto que ficou para o fim, porque achei que era fixe depois daquele ambiente todo pesado ter uma coisa que para mim é bem disposta. Já mostrei aquilo a muita gente e o pessoal diz-me “isto não é uma coisa bem disposta”. Eu acho que é! [risos] Aquilo para mim já está quase no limite da leveza. Acho mais interessante os assuntos perturbadores, o ambiente pesado e escuro do que o arco-íris e o algodão doce.

Depois do Causa Torpe, já tens planos de carreira ou vais continuar com a tua terapia e ver até onde isso te leva? 

Acho que é mais essa segunda hipótese. Para mim é uma curiosidade! Estava ansiosa já há algum tempo, já no final do trabalho de mistura — que começa a ser muito massacrante, mesmo não tendo sido eu a fazê-lo, estive a acompanhar sempre presencialmente e, apesar de poder ser um trabalho criativo, não é como compor e escrever. Estou ansiosa que chegue o momento, e já está próximo, para me voltar a fechar aqui e ver o que acontece. Mas para mim própria é um mistério, não faço ideia do que vai acontecer.


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