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Milton Gulli

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A lança que defendeu o povo.

Azagaia (1984-2023)

Para quem não é moçambicano ou que não viva em Moçambique, creio que pode ser difícil compreender o real impacto que Edson da Luz, aka Azagaia, tem naquele país. Apesar de não ser um artista pioneiro na crítica social — e aqui podemos referir nomes importantíssimos como Pedro Langa, Zeca Alage, Salvador Maurício, Simeão Mazuze ou Salimo Mohamed —, Azagaia, através do rap e do uso da língua portuguesa, conseguiu ser transversal, unindo gerações, independentemente de “estratos sociais” ou cor da pele. Nunca antes tinha aparecido, em Moçambique, um artista que estivesse tão em sintonia com a alma do seu povo e da sua nação, qual um Bob Marley ou um Fela Kuti, que carregasse nas costas toda a frustração de uma geração pós-colonial e que retratasse de forma certeira os anseios, desilusões e sonhos do povo moçambicano.

Edson da Luz nasceu a 6 de Maio de 1984, na Namaacha, mesmo ao lado da fronteira com Eswatini (antiga Suazilândia). Filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana, mudou-se com a mãe aos 10 anos para a cidade de Maputo, depois da separação dos seus pais. Concluiu o ensino médio e ingressou na faculdade, no curso de Geologia, tendo ainda passado pelo Desportivo de Maputo, na equipa de basquetebol. Aos 13 anos junta-se ao MC Escudo e criam o grupo Dinastia Bantu. É aqui que nasce o nome: Azagaia (lança curta). O Escudo e a Azagaia eram as armas dos guerreiros usadas pelos exércitos de Shaka Zulu e também em Moçambique, pelos guerreiros de Gungunhana. Em 2005, os Dinastia Bantu lançam o seu disco Siavuma

É em 2007 que edita o seu primeiro álbum a solo: Babalaze (ressaca na língua changana), pela editora Cotonete Records, que atinge um recorde de vendas no dia do lançamento. O primeiro single, “As Mentiras da Verdade”, põe Azagaia no mapa pela forte crítica política e representa um marco na história da música de intervenção e na defesa da liberdade de expressão em Moçambique. Pela primeira vez, surge um artista que fala aquilo que toda a gente pensa, mas ninguém tem coragem de verbalizar.

Abordando vários temas “tabu”, Azagaia fala sobre a morte de Samora Machel, do assassínio do jornalista Carlos Cardoso, do economista Siba Siba Macuacua ou do músico Pedro Langa. Fala de relações promíscuas entre a banca, a TV e o governo. Fala sobre a corrupção entranhada em vários sectores da sociedade. Destacam-se os temas “A Marcha”, “As Verdades” e “Eu Não Paro”. Imediatamente é-lhe atribuído um estatuto de revolucionário e ativista, o homem com “os testículos no lugar”. As rádios e TVs recusam-se a passar as suas músicas e começa a receber ameaças. É convidado para atuar fora de Moçambique, sendo referenciado pela revista Rolling Stone e convidado para participar em conferências sobre Direitos Humanos. 

A 5 de Fevereiro de 2008, no rescaldo da revolta popular desencadeada pelo aumento dos preços dos transportes públicos, lança o singlePovo no Poder”. Azagaia é chamado a prestar declarações na Procuradoria da República, suspeito de atentar contra a segurança do Estado. Nada disto refreou o ímpeto do rapper, que em 2009 lança “Combatentes da Fortuna” e em 2010 “Arriii”, sobre o escândalo do tráfico de drogas, fuga ao fisco e assassinatos políticos. Em 2011 é preso, juntamente com o amigo Miguel “Cherba”, por posse de um cigarro de suruma (canábis sativa), poucas horas antes de se apresentar em concerto no mítico bar Gil Vicente, em Maputo, onde iria apresentar o novo singleMinha Geração”, tendo sido solto pouco tempo depois. 

Em Novembro de 2011 mudei de Lisboa para Maputo e, apesar de já conhecer vários músicos moçambicanos, ainda não tinha tido o privilégio de conhecer o Azagaia, de quem era fã desde o lançamento do primeiro disco. Foi numa tarde em Maputo, em frente ao Cine África, que fui apresentado ao rapper, por intermédio da sua manager Magda Burity da Silva. Em pouco tempo acordámos que eu iria ajudá-lo na produção do seu segundo disco, que já estava em fase de pré-produção. Começámos a trabalhar, quase diariamente, na minha primeira casa em Maputo, na zona do Alto Maé, e pouco depois mudei-me para o complexo das Torres Vermelhas. Foi ali, no 13º andar, que finalizámos o Cubaliwa, ironicamente mesmo ao lado do Palácio da Presidência, num prédio em que o elevador avariava constantemente. É nesta altura que começo a aperceber-me do impacto que ele tinha no povo moçambicano. Era afetuosamente reconhecido na rua por toda a gente: polícias, estudantes universitários, vendedores de rua, senhoras da limpeza, etc. Era respeitado pelos seus pares, a nível artístico, e pela coragem e inteligência. 



Cubaliwa, que significa renascimento na língua sena, é editado em 2013 pela Kongoloti Records, editora criada por mim e pelos cineastas Pipas Forjaz e Mickey Fonseca. Para este disco, Azagaia reuniu alguns dos mais proeminentes beatmakers moçambicanos: Guto, Jay Leopard (Scam), Mr. Dino, Black Snow, Mak Da P, Proofless, entre outros. O álbum conta com as participações de vários cantores e rappers moçambicanos como Guto, Júlia Duarte, Dama do Bling, Bhaka, Stewart Sukuma, Tira-Teimas e ainda com as participações internacionais de Hélio Bentes (Ponto de Equilíbrio), MCK e Valete, companheiros habituais em vários projetos.

O primeiro single foi “ABC do Preconceito”, seguido de “Homem Bomba”, destacando ainda os temas “Maçonaria”, “Calaste” e “Cães de Raça”, que se tornaram autênticos hinos da música de intervenção em Moçambique. Fizeram-se algumas apresentações ao vivo com a sua banda, Os Cortadores de Lenha, por onde eu passei, juntamente com o Nandele, Élton, Texito Langa, Pedro Amaral, Luís Cerqueiro, entre outros. 

Cubaliwa é considerado por muitos o melhor álbum de hip-hop moçambicano de todos os tempos, sendo descrito como um retrato pungente e incisivo sobre o atual estado de Moçambique e do continente africano, debruçando-se também sobre a história do país e do continente, desde o período pré-colonial até aos dias de hoje. 

Em 2014, Azagaia sofre 2 ataques epiléticos muito intensos, que o levam a ser internado. É nesta altura que os mais próximos do rapper começam a sentir algumas alterações ao seu comportamento. Alguma coisa não estava bem com o nosso camarada. Primeiro, a ida a um programa de televisão sensacionalista, em directo, para resolver problemas domésticos. Em Junho, é novamente preso por posse de suruma, que Azagaia justificava como sendo um remédio para os seus ataques epiléticos. No dia seguinte, é solto e volta ao mesmo programa televisivo para explicar os motivos da prisão e onde acaba por enrolar um charro em directo, obrigando à suspensão da emissão do programa. Azagaia anuncia nas redes sociais que, por temor à sua vida, abandonaria a carreira musical e iria passar a viver na sua terra natal, na Namaacha. Nós, os amigos mais próximos e a família, finalmente conseguimos convencê-lo a realizar exames médicos. É-lhe diagnosticado um tumor cerebral, do tamanho de uma bola de golf, que estaria a fazer pressão sobre o cérebro, estimulando os ataques epiléticos e a mudança de comportamento. Teria de ser operado. Havia, naturalmente, algum receio de se realizar o procedimento em Moçambique, pelo que a Kongoloti Records e a Mahla Filmes realizaram uma campanha de angariação de fundos para se fazer a operação na Índia, num hospital especializado neste tipo de procedimentos. Em 5 dias já tínhamos o valor necessário para enviar o Edson para a Índia. A operação foi um sucesso, mas exigiu um longo processo de recuperação e com a indicação de que poderiam haver mais ataques epiléticos no futuro. 

Depois de um ano e meio sem apresentações ao vivo, em 2016, Azagaia e os Cortadores de Lenha apresentam-se num concerto histórico na discoteca Coconuts, para uma casa lotada de ávidos fãs com saudades das rimas afiadas do rapper. No alinhamento faziam parte temas do primeiro e segundo disco, assim como alguns singles que foram lançados. Seguiram-se apresentações em grandes palcos, como o Festival Azgo e o Centro Cultural Franco Moçambicano, em Maputo. Em 2017 reedita o álbum Babalaze e, em 2019, lança o EP Só Dever. Na sequência dos ataques terroristas em Cabo Delgado, no norte do país, lança em 2021 o êxito “Cabo Delgado (Ai de Nós)”. 

Na altura do seu desaparecimento, a 9 de Março, estaria a trabalhar no seu 3º disco, deixando esposa e três filhos. O seu funeral, a 14 de Março, reuniu milhares de pessoas nas ruas de Maputo, desde o velório no Conselho Municipal até ao destino no cemitério de Michafutene, reunindo fãs, amigos, organizações da sociedade civil e alguma da classe artística moçambicana. A música “Povo no Poder” — “Ladrões, fora! Corruptos, fora! Gritem comigo para essa gente ir embora” — foi cantada várias vezes pelos fãs, assim como outros temas emblemáticos do rapper, mesmo em frente ao Conselho Municipal, inscrevendo este momento simbólico na história e na memória de quem o presenciou. 

Azagaia, Mano Azagaia, Azaguiris, Azalam Amílcar, Edson Mandela ou Edson da Luz deixa-nos um legado impressionante no panorama artístico, social e político de Moçambique, dos PALOPS e da Lusofonia. Muitos jovens ganharam força e coragem para se exprimirem, perdendo o medo de um regime autoritário e procurando soluções e melhorias para o seu país, participando politicamente, criticando e exigindo responsabilidade aos governantes.

A música de Azagaia contém a verdade e a inquietação para se querer fazer melhor, mas também um lado pedagógico, educando e apresentando soluções. Muitos intelectuais e artistas defendem o estudo da sua obra nas Universidades e nas escolas. Outros defendem a edificação de uma estátua. O meu desejo é que a matéria tenha sido absorvida para que possamos fazer mais e melhor para o futuro de Moçambique, porque a luta ainda não acabou. A obra está aí para todos nós.

Para mim será sempre o Aza. O Aza das ideias subversivas. O Aza que dava tudo. O Aza que tocava à minha porta já com o plano delineado. O Aza gentil e calmo. O Aza a 200km por hora. O Aza da Namaacha. O Aza pai e filho. O Aza amigo. 

Foi um privilégio viver na mesma era que tu e poder ver-te em ação. 

Rest In Power meu irmão.


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