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RuiMiguelAbreu

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Até no berço o hip hop é vítima de ataques infundados: Ka vs New York Post

Parece não interessar – e centremo-nos apenas nas notícias de hoje – que Eminem ajude miúdos de Flint a comprar material escolar para o novo ano lectivo que está a chegar ou que E-40 tenha idêntico gesto para com crianças de Vallejo na sua Califórnia natal – é que há sectores inteiros dos media mais conservadores que ainda têm um enorme problema em encarar o hip hop como uma força benigna.

 


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O caso de Ka, cujo mais recente trabalho mereceu já atenção aqui no Rimas e Batidas, é sintomático desse tratamento. O tablóide New York Post deu ao rapper muito recentemente “honras” de capa com um artigo inflamatório onde se chama a atenção para o facto de Kaseem Ryan (verdadeiro nome de Ka), capitão de um quartel de bombeiros de Nova Iorque, ter uma vida paralela como rapper e de, supostamente, as suas letras estarem “polvilhadas com a ‘n-word’, drogas, violência, e letras anti-polícia… que descrevem a vida no gueto, um mundo de armas, droga e desespero”.

Na sua conta oficial de Twitter, Ka limitou-se a expressar o óbvio e a explicar que o amor tem sempre um reverso da medalha que é o ódio.

 



Outros MCs, como o muito vocal El-P,manifestaram imediato apoio a Ka: o homem que é metade dos Run The Jewels escreveu mesmo que não voltará a conceder entrevistas ao Post e afirmou não conseguir imaginar que outros rappers sejam capazes de o fazer, assumindo assim que mais do que um ataque a Ka, o artigo do Post é um ataque a toda uma cultura.

Recentemente, o hip hop também serviu de alvo para outras infundadas críticas assinadas por Henrique Raposo do Expresso. Claro que o Expresso não é um tablóide americano, ou sequer português, obviamente, mas o que o colunista Raposo tem em comum com o jornalista do Post é uma atitude de total incompreensão do hip hop.

O disco que Ka acaba de editar assume uma dimensão conceptual ao tomar a cultura tradicional dos samurais japoneses como ponto de vista para abordar o presente. Fala-se de honra, de sacrifício, mas também se procura retratar o que as ruas da América impõem, sobretudo nos jovens negros. Ka já explicou que é a dor que o inspira. Sentir dor e causar dor são coisas muito diferentes.

No tema de abertura de Honor Killed The Samurai, “Conflicted”, Ka rima no refrão “Mommy told me be a good boy / Need you alive, please survive, you my hood joy / Pops told me stay strapped son / You need the shotty, be a body or catch one”. Não compreender o fundo da mensagem deste homem que também é capitão dos bombeiros e à sua maneira luta pela justiça salvando vidas é não compreender – lá está… – o hip hop: Ka sabe bem que toda a gente se depara com duas principais opções na vida, entre o bem e o mal, o certo e o errado, e que cada uma dessas opções vem com o seu próprio fardo. Esse é o centro da sua poesia. Ka pode mencionar armas e a violência que as ruas oferecem, policial ou não, mas falar no que é real não significa que se esteja a abraçar o lado errado da força. Daí a metáfora do samurai, a ideia da honra, a noção de que por vezes é preciso tomar o caminho mais difícil para sobreviver com a alma intacta.

Henrique Raposo tem razão numa coisa: o hip hop não é terreno isento de demónios. Nem o hip hop, nem o rock, nem a literatura ou o cinema ou qualquer outra cultura ou forma de expressão. Demonizar um género inteiro que inspira tantos a elevarem-se e a superarem as dificuldades, que guia tantos nos complexos labirintos da vida e que tantas vezes defende ideias válidas de honra, de vida pacífica, de amor (não é preciso procurar muito, de Chance The Rapper a Halloween, há muitos exemplos válidos) não é resposta. Mas é claro que o hip hop não pode estar acima de críticas. O que pode – e deve – é ser alvo de reflexões mais rigorosas que não caiam na primeira das armadilhas da injustiça: tomar a parte pelo todo.

De volta a Ka e ao New York Post. No tema “$” Ka garante que pode fazer dinheiro, mas não permite que o dinheiro o faça a ele. E rappa: “Watch me blueprint rec centers/I’m trying to inspire.” O contrário, precisamente, do retrato que o tablóide procura pintar: pergunta-se, na peça do Post, como pode afinal de contas um capitão dos bombeiros ser igualmente um rapper, como se fossem duas actividades opostas, incompatíveis. No fundo, o jornalista do Post, como outras vozes conservadoras que um pouco por todo o mundo procuram pintar o hip hop – ou qualquer outra cultura juvenil que possa parecer incompreensível vista do alto da idade adulta imersa em trabalho e responsabilidades – como uma cultura amoral, vê as palavras no discurso poético de Ka mas isenta-se de as analisar e descodificar. E essa é a ideia mais errada de todas. Procurar descrever Ka como um ser amoral, que combate fogos de dia e escreve rimas de incitamento à violência nas folgas, é simplesmente ridículo. Porque Ka é um dos grilos falantes da cultura, uma consciência activa, um rapper que pega no lado mais profundo dos Wu-Tang, de Nas, no lado mais místico de MF Doom, e embala tudo numa aura que não tem propósitos comerciais, que não procura outra coisa que não seja a sua própria iluminação e redenção. Em Ka o hip hop é um remédio, uma forma de cura, uma força benigna, não a doença. Ka rima ao espelho, para si mesmo. Mas tem a inteligência de nos deixar ouvir. Porque pode ser que alguém aprenda. A esperança foi sempre coisa bonita.

“The custom prevailed for young men to practice music in order that this gentle art might alleviate the rigors of that inclement region”, reza o sample no início de “Just”. A frase refere-se a uma passagem do Bushido, o código de conduta dos samurais. Mas podia ser sobre o hip hop. É que podia mesmo.

 


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