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Fotografia: Beatriz Garrucho
Publicado a: 03/01/2022

Continuar a subverter a norma.

Astrea: “Ver que há pessoas a fazer muito pela música electrónica dá-te vontade de mostrares o que tens para oferecer”

Fotografia: Beatriz Garrucho
Publicado a: 03/01/2022

Astrea é o nome de guerra com que Sofia Seixo Garrucho assume a sua faceta artística. A DJ e produtora oriunda de Mira e residente em Lisboa editou em 2021 a sua mixtape de estreia, Saudade Não Se Sente, Evita-se, que engloba sete instrumentais unidos pelo sampling lusófono, mas cada um deles distintos na sua exploração estilística, resultando num dos registos mais ousados da música electrónica de cariz experimental em território nacional em tempos recentes. Ainda no ano passado, participou também na compilação de Natal da editora viseense ELBEREC com o tema “Hear Me Roar”.

Garrucho lançou o projecto pela sua própria editora, Mãe Solteira Records, no Dia Internacional da Mulher; este selo visa promover e empoderar artistas femininas e LGBTQIA+, juntando-se assim a um florescer de iniciativas que procuram colocar a representatividade de minorias sexuais e de género no mapa cultural da capital portuguesa. 

À conversa com o Rimas e Batidas, Astrea revela-nos um pouco de si enquanto artista e promotora discográfica, ao abordar o sentido aventureiro do seu percurso musical e a justificar a necessidade de assegurar plataformas de subsistência para criadores marginalizades.



De que forma se deu a tua incursão no meio musical, e como é que Astrea entra neste percurso?

Eu sempre consumi muita música, ia muito a um bar de uns amigos dos meus pais, que era um bar de jazz, o Contrabaixo Bar, na praia de Mira, o que me influenciou muito, porque cresci sempre a ver concertos e a ouvir música que saía um bocado do mainstream. Também acabei por ser muito influenciada pelos meus primos: do lado da mãe, ouviam muita electrónica e hip hop e do lado do pai, ouviam mais punk e rock. Aos 10 anos eu decidi aprender a tocar guitarra, mas aos 12 eu mudei-me para Aveiro, e aí deixei de ter aulas de música, então comecei a tocar de forma mais autodidacta; já na altura fazia composições, mas só mostrava ao meu melhor amigo, era uma cena bué no armário. Apesar de ter crescido num meio mais cultural e artístico, para mim sempre me pareceu impossível eu seguir música de forma profissional, ou parecia-me impossível as pessoas poderem ouvir qualquer coisa que eu pudesse vir a fazer, e quando eu vim para Lisboa, para a universidade, percebi que isso poderia facilmente ser possível, que há milhões de possibilidades e que, se trabalhasse para isso, os meus sonhos podiam-se tornar efectivamente realidade. 

A cultura clubbing influenciou-me muito nesse pensamento, porque em Lisboa tu tens muito mais acesso a cultura e tens uma máquina a funcionar com muito mais força do que, por exemplo, em Aveiro, então muito menos em Mira, que é uma vila pequena. Ver que há pessoas a fazer muito pela música electrónica dá-te também vontade de experimentares, de fazeres e de mostrares o que tens para oferecer. Comecei a fazer lives em 2018, se não me engano, a convite do João Melgueira da Alienação, que pedia muito que eu fizesse a cena live porque ele dá bué valor a quem produz; um ano mais tarde, o Veia da Gruta convidou-me para fazer um b2b com ele de DJing no Desterro e a partir daí as pessoas começaram a ouvir o meu nome, começaram-me a convidar para mais cenas e foi assim.

Saudade Não Se Sente, Evita-se conta com samples lusófonos em todos os instrumentais. Como surgiu esta ideia enquanto ponto de afinidade desta mixtape?

A lusofonia foi uma espécie de porto de abrigo para eu não me perder. Eu disperso muito e às vezes preciso dum fio condutor para ter um caminho para andar, e a cena da lusofonia vem também do facto dos meus pais terem muita música lusófona em casa: quando comecei a fazer música, explorava muito o sampling e lembrava-me dos discos que os meus pais tinham em casa, também porque estava a ser influenciada pelos pioneiros do hip hop e do sampling, que iam procurar os vinis que os pais tinham em casa e que samplavam cenas daí.

Este ano convidei a Trafulha e o Ricky Broke para fazerem mixes com beats deles para o meu programa na Rádio Quântica, a Vimana. O Ricky tinha bué beats e na altura estava a lançar o EP Corte & Costura, mas a Trafulha só tinha meia hora de beats que ela queria efectivamente mostrar, então eu decidi preencher a meia hora restante com beats meus (o programa tem duas horas). Eu peguei em beats que já tinha feito de 2016 para cá e juntei uns quantos, precisamente com esse fio condutor da lusofonia para haver algo em comum entre estes, e ainda assim acho que faltavam tipo três ou seis minutos, então fiz dois beats numa semana, completando essa meia hora, e depois pensei: “Bem, eu já tenho aqui material para fazer um EP”. E eu andava com uma ideia na cabeça sobre a Mãe Solteira Records, porque do lado da minha mãe, tanto ela como a minha avó e como a minha bisavó criaram os filhos sozinhas e eu estava nessa cena de “eu estou a fazer tudo sozinha”. Fazia mixes, produção, mistura, masterização, promoção, etc., sozinha, e estava um bocado cansada, mas, ao mesmo tempo, com força e motivação para fazer a cena. Quando eu estava a acabar o EP, estava a falar com a Kássia, que é uma amiga minha, e do nada, estou a dizer, “olha, estou aqui a criar uma label“. Ela, na altura, fazia comunicação numa produtora de cinema e já tinha feito agenciamento a alguns músicos, então perguntei-lhe: “Olha, porque é que não te juntas à label?” 

Criámos a editora no Dia da Mulher de 2021 com esse EP que fiz para aí em duas semanas, e embora já tivesse trabalho de dois ou três anos, foi tudo arranjado assim à última da hora, tanto que nas duas primeiras músicas não tinha os stems, portanto tive que misturar e masterizar bounces das músicas que eu tinha feito quando comecei a produzir, sendo que na altura ainda não tinha conhecimentos para fazer uma boa mistura.

Agora que falamos da Mãe Solteira Records, trata-se de uma label que visa promover e empoderar artistas fora da normatividade masculina, cis e hétero. Num século onde se verifica um nível de sensibilidade crescente em termos de inclusão social, de que forma é que esta editora pode complementar o trabalho feito por projectos lisboetas e nacionais que partam do mesmo ethos?

Eu estava a falar com a Kássia e nenhuma de nós tem um corpo normativo, e tinha esta ideia de Mãe Solteira Records só que não havia aquele clique de “é agora, vou lançar”, porque eu estava bastante sozinha e não tinha amigues que fizessem música e que demonstrassem interesse em criar uma label: ou já tinham/faziam parte de labels ou preferiam manter-se independentes. Então, eu a falar com a Kássia foi do género: “Nós temos aqui bué pano para mangas, bora começar a fazer cenas”. Mas lá está, o que é que nós vimos acrescentar a esses colectivos que já existem? Tens a Troublemaker Records, que se foca na comunidade BIPOC e queer, e só depois de eu já ter lançado a label é que eu descobri que havia a Hystereofônica, de onde fazia parte a Cigarra, que também é grande monster da produção e do DJ’ing, é mesmo uma mulher de garra e uma pessoa cujo trabalho deve ser seguido, porque ela tem aberto muito caminho, mesmo. Eu, de facto, não sabia que já havia tantas labels activas no momento focadas em cenas femininas ou queer… Conhecia a Labareda e a Suspension, conhecia todas essas labels, mas estavam afastadas de mim. Decidi que nunca é demais, ou seja, temos espaço para mais uma label se focar em música queer e fem porque, pá, labels de homens cis brancos é que o não falta; então, decidimos criar mais um espaço, porque poderão surgir novas oportunidades e nova música a ser publicada.

Se “Saudade Não Se Sente…” nos apresenta produções que aparentam oscilar entre o hip hop e a IDM, “Hear Me Roar” é, por outro lado, um instrumental que segue uma toada mais techno. É este sentido de imprevisibilidade que define o universo electrónico de Astrea? Ou talvez este universo abranja mais do que música electrónica?

Eu espero que seja [mais abrangente], mas ainda não é. Para já, ainda estou muito agarrada ao computador, porque foi o computador que me deu a possibilidade de fazer música e de a editar, mas, sim, eu sou muito ecléctica e eu não consigo dizer “o meu estilo de música favorito é jazz” ou “o meu estilo de música favorito é hip hop”, ou “o meu estilo de música favorito é rock”… Não consigo, porque, para mim, se soar bem é bom e, na música, não era aquela pessoa que dizia “ya, vou fazer um álbum de rap e vou ser alta rapper ou alta beatmaker”. Não, eu comecei a produzir música, ponto. E vou explorar tudo o que eu puder explorar. Se gosto, se estiver a sentir, eu vou fazer. Eu consumo muita música e tanto me apanhas num club ou numa free party ou numa rave, como me podes apanhar num CCB a ver um concerto de uma cena qualquer mais erudita, então é normal que a minha música também seja um bocado isso, porque é um conjunto de tudo aquilo que eu consumo e que aprecio. 

O que podemos esperar de Astrea para 2022?

Eu vou remisturar e remasterizar o SNSE e tenho outras coisas preparadas que vou deixar para falar no futuro, quando lançar, porque quero deixar o factor surpresa, mas estou a preparar cenas. 

E da Mãe Solteira?

Nós vamos lançar uma compilação em Janeiro, com 12 músicas de produtoras da cena nacional, que se chama Memory Palace. Essa compilação está incrível, tem um design genial da Sara Abrantes, tem músicas lindíssimas, muito à volta da electrónica; uma das músicas, que é da Cigarra, tem também a Nany a tocar violino que está genial.

Quanto à label, eu não estava nada à espera, mas entretanto já lançámos um single de Marianne, lançámos um EP do Ndr0n, acho que estamos a fazer um trabalho bué fixe e daqui para a frente vão sair cenas bacanas. Um dos objectivos para o futuro é também expandir, sair de Lisboa, porque sentimos que está tudo muito centrado em Lisboa e queremos descentralizar, de certa forma, a cultura, até porque nenhuma de nós é de Lisboa: o Hugo [produtor] é do Brasil, de São Paulo, a Kássia [agente e responsável pela comunicação] é de São João da Madeira e a Mia [produtora, agente e marketer] é do Porto, e nós sentimos falta dos sítios onde crescemos e vivemos, assim como de espaços e de colectivos que empoderem mulheres e pessoas queer BIPOC e que cultivem o gosto pela música electrónica ou pela música e pela produção feitas por mulheres. Então, um dos nossos objectivos passa também por nos expandirmos para o resto do país, nomeadamente com uma talk que é o Queima A Minha Pele (isto é produção da Kássia), que se foca muito na negritude, no feminino e na produção cultural. 


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