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Publicado a: 05/11/2016

As fantasias jazz de Madlib

Publicado a: 05/11/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Tendo em conta o que sucedeu com J Dilla, produtor de hip hop vítima de doença prolongada que no entanto soube preparar o seu futuro a partir de uma cama de hospital onde produziu intensamente música que tem vindo a alimentar postumamente a sua carreira, quase seríamos levados a pensar que algo de semelhante se estaria a passar com Madlib se não lhe reconhecêssemos desde sempre um grau superlativo de actividade. Para 2010, Madlib, Otis Jackson, Jr de seu verdadeiro nome, anunciou uma série de doze edições com que marcará todos os meses do calendário. Mas para lá dessa série – a que deu o título Medicine Show – há ainda a registar um conjunto de outros lançamentos, nalguns casos em regime colaborativo (produziu o álbum dos rappers Strong Arm Steady, por exemplo, que agora tem também edição instrumental) e noutros em rigoroso isolamento exploratório, casos de Miles Away creditado a The Last Electro-Acoustic Space Jazz & Percussion Ensemble ou de Slave Riot que ostenta o nome Young Jazz Rebels na capa. Em ambos os casos trata-se, pois claro, de produtos da mente fantasiosa de Madlib que desde a sua aventura com o Yesterdays New Quintet começou a reunir uma séria e relevante discografia jazz.

 



Uma pergunta se impõe, no entanto, será isto realmente jazz? A resposta está contida em todos os lançamentos enumerados e depende do que cada um possa conceber como jazz.. Para Madlib, todos estes discos são, sobretudo, uma forma de documentar o seu próprio relacionamento com o jazz. No novíssimo Miles Away, por exemplo, os títulos das 10 faixas esclarecem onde se encontra o coração de Madlib: as dedicatórias a gente como Horace Tapscott, Woody Shaw, Phil Ranelin, Larry Young, Roy Ayers e, por exemplo, John Coltrane e Pharoah Sanders transformam estes temas em autênticas cartas de devoção. E a música nelas contida – excelentemente produzida ao ponto de não se perceber o que resulta da acção directa de músicos sobre os seus instrumentos no estúdio de Madlib e o que é resultado de uma apurada imersão no mundo da memória jazz impressa em vinil – pode não resultar do confronto telepático directo de um ensemble numa sala cheia de microfones, mas não deixa de dar espaço à mais pura invenção. Trata-se, muito claramente, de uma fantasia extremada ao ponto de se listarem as competências dos diversos elementos do “combo” e com uma fabulosa tradução gráfica num packaging de luxo que remete directamente para o vinil produzido na época documentada no livro que forneceu o mote para a anterior edição desta coluna – Freedom Rhythm & Sound – Revolutionary Jazz Original Cover Art 1965-83.

E se Miles Away coloca Madlib em território de fusão, com um sub-texto world claro que o leva a explorar poli-ritmos de África e texturas com ecos orientais, já Slave Riot, o álbum que assina como Young Jazz Rebels, transporta-o para território mais free. Uma vez mais, a inspiração resulta da paixão de Madlib pelas experiências libertárias do jazz mais independente e militante que se seguiu às conquistas do Civil Rights Movement. É a partir desse olhar reflexivo que Madlib ergue o seu próprio discurso jazz que se posiciona algures em 1974, como se o sampler fosse, afinal de contas, uma máquina do tempo.

A produzir a este ritmo não é possível a Madlib manter um nível de qualidade constante e elevada. Mas nestes exercícios de pura imaginação que o aproximam da história do jazz, o produtor não está sujeito nem à disciplina metronómica do hip hop, nem à abertura de espaços que suportem a narrativa dos MCs. Miles Away e Slave Riot são nesse aspecto projecções da mais pura liberdade, invenções delirantes de um universo extrapolado a partir de velhas capas de vinil, de amareladas folhas de revista e de ecos distantes das conversas ouvidas em criança, quando músicos do circuito jazz costumavam visitar a casa dos seus pais. A vida, para Madlib, conclui-se, é sempre mais interessante do outro lado do espelho.

 


 

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Texto do arquivo de Rui Miguel Abreu. 

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