Apesar da frase grave que escolhemos para título — porque é preciso alertar para os perigos que nos rodeiam diariamente —, Arnaldo Antunes faz questão de nos dizer que há igualmente um lado solar, positivo nas canções que lançou neste seu último trabalho. Antunes é um dos mais importantes autores das últimas décadas musicais no Brasil, um incansável renovador que sempre soube dar voltas na língua, no sentido que, quando envoltas nas melodias certas, rendem canções que se agarram aos nossos ouvidos.
O membro dos históricos Titãs trilhou um caminho próprio que o levou a escrever para incontáveis artistas — de Marisa Monte, com quem possui uma cumplicidade especial, a Silva, Cássia Eller, Zélia Duncan, Gal Costa ou, entre tantas outras grandes vozes, Adriana Calcanhoto e uns tais de Caetano e Gil. Agora, prossegue o interessante trabalho autoral em nome próprio iniciado em 1993 com a edição de Nome e lança o sucessor de Lágrimas No Mar (álbum em que dividiu créditos com Vítor Araújo), o já mencionado Novo Mundo, disco ousado, cheio de sombra e luz, dotado de uma visão angular e moderna da MPB, desafiante, como só Arnaldo Antunes sabe fazer.
Esta é a tranquila conversa com um autor consciente do alcance da sua obra.
Obrigado por, depois de um dia de ensaios, reservar este tempo para conversarmos um pouco.
É um prazer.
E muitos parabéns pelo belíssimo disco, que eu tenho estado a ouvir em repeat nos últimos dias.
Que bom. Obrigado.
Eu não lhe vou tomar muito tempo, portanto vou directo ao assunto. A primeira pergunta é um pouco óbvia, mas necessária. Que Novo Mundo é este? Porque os livros de história ensinam-nos que, em tempos, o novo mundo era um lugar carregado de mistérios e promessas, e hoje parece que habitamos um novo mundo ao contrário, carregado de ameaças, de perigos, de falácias.
Pois é. Eu acho inclusive que tem uma surpresa quando a pessoa começa a escutar o disco, porque a música tem um retrato muito ácido e, realmente, verdadeiro daquilo que a gente está vivendo, que é um mundo com uma uma dimensão distópica muito intensa e mediado por essa comunicação digital que, de certa forma, vem alimentando a gente. Quando começou a Internet, é engraçado, porque a gente tinha uma expectativa de que ela ia propiciar um diálogo mais tolerante, uma convivência mais livre com as diferenças. E, na verdade, ela acirrou os guetos, os discursos de ódio, enfim. E os algoritmos impulsionam o ódio e a violência, as guerras estão acontecendo… De certa forma, a gente está vivendo uma crise ambiental sem nenhum precedente. A economia global está, enfim, voraz e perversa. A gente vive um mundo de hiperconectividade onde a distracção acaba sendo o que dá o tom das pessoas se aprofundarem nos assuntos. As pessoas estão cada vez mais volúveis, passando de um assunto para outro, e você parece que tem que saber de tudo, porque a informação toda está o tempo todo no seu bolso. Enfim, é um pouco um retrato disso que a gente está vivendo. E claro, é um retrato sombrio de um mundo hostil. Mas a gente tem que tomar consciência disso, até para saber como resistir, como reagir, como ter algum contraponto a esse mundo. E o disco oferece algumas respostas a isso no seu lado mais solar, mais amoroso, em canções como “Acordarei”, como “É Primeiro de Janeiro”, como “Pra Não Falar Mal”… O disco começa falando um pouco desse mundo digitalizado e violento, tem também o “Tire o Seu Passado da Frente”, que é uma canção muito contundente. Mas tem esse contraponto também das canções mais afectuosas, vamos dizer assim.
Ainda bem. Pode argumentar-se igualmente que há aqui um novo mundo musical a ser explorado e para isso serão importantes os músicos que o rodeiam. Pode-me falar um pouco desta banda que montou para este projecto?
Sim, o Novo Mundo adquire para mim também esse sentido de um novo som, porque são músicos… O único que já vinha trabalhando comigo em outros discos e shows é o Betão Aguiar, nos baixos. Mas eu quis mesmo uma renovação na formação dos instrumentos. Primeiro há o Pupillo como produtor. Ele é um músico e produtor que eu venho admirando de vários trabalhos passados e já tinha feito algumas coisas com ele — participei na Orquestra Frevo do Mundo, que é um projecto dele; cantei em shows do Nação Zumbi, na época em que ele era da banda. Tem ali uma admiração, mas nunca tinha feito nada desta dimensão com ele e ele vem produzindo discos cada vez mais interessantes. Foi um banho, assim, de inovação, de originalidade, de liberdade para transitar entre diferentes géneros, sempre com uma abordagem fresca. E aí, junto com o Pupillo, regimentamos esses músicos. O Vitor Araújo, que me deixa muito contente, porque eu venho de uma turnê de três anos com ele, de um disco que gravamos juntos, o Lágrimas no Mar, e agora continuamos nossa parceria de uma outra forma — ele toca sintetizadores, algumas faixas têm piano… E o Kiko Dinucci, que é um artista absurdo, um talento absurdo. Eu já era fã dele há muitos anos, sigo acompanhando os discos dele em Metá Metá, em Passo Torto, todos os grupos em que ele participou, as trilhas que ele fez… Enfim, eu sempre achei ele genial. E aí eu acho que acabou por se compor uma formação que fez o disco fluir muito bem. Foi fácil de arranjar as músicas. Esses músicos se entenderam muito bem no estúdio, sabe? E eu sinto que não tem muitos instrumentos fazendo levadas de acordes, eu sinto que é mais desenhos melódicos e rítmicos que vão se cruzando e fazendo uma tessitura que resulta no arranjo. E tudo isso foi feito assim, muito livremente no estúdio. Foi um disco que fluiu, que saiu muito naturalmente assim. E eu acho que trouxe um som novo, eu fiquei muito entusiasmado, tanto que convidei o Kiko e o Betão para a banda que a gente está ensaiando agora para levar o disco para os shows.
Muito bem. Em bom português, poderia descrever-se a lista de convidados como “poucos, mas bons.” São quatro excelentes convidados — o David Byrne, a Ana Frango Elétrico, a Marisa Monte e o Vandal. Fale-me um pouco de cada um deles. A Marisa, enfim, tem uma história longa consigo, não é?
Sim, a Marisa é uma parceria antiga, passou por Tribalistas e passou por várias canções que já gravámos juntos — nos meus discos, nos discos dela, enfim. É uma parceira querida. Fizemos essa música recentemente e eu me encantei com a música, em que o sol é o narrador. Ela é cantada na primeira pessoa do sol. Quis gravar e não tinha como não chamar a Marisa para cantar comigo. E na hora que as nossas vozes se juntam, parece que aquilo já tem uma identidade própria, que pertence ao inconsciente colectivo, já é como uma entidade de vida própria. Então é sempre uma alegria ter Marisa. Ela tem uma história que quase faz parte da minha. As outras três participações são inéditas, eu nunca tinha trabalhado nem com Vandal, nem com a Ana e nem com o Byrne. O Byrne eu já tinha conhecido há alguns anos, ele já tinha escrito um prefácio para uma antologia da minha poesia que saiu na Espanha, chamada Doble Duplo, há mais de 20 anos. Eu fiquei muito contente na ocasião, trocámos e-mails e tal, mas sempre que eu me encontrei com ele foram encontros muito rápidos e tal. Eu tenho uma grande admiração por ele desde o tempo dos Talking Heads. Ele é um artista que foi sempre se renovando e até tem mais recentemente esse show maravilhoso do American Utopia. Identifico-me e tenho muita afinidade com o trabalho dele. E ele é muito interessado na música brasileira, trabalhou aqueles discos do Tom Zé e já gravou com Marisa inclusive. Aí eu tomei a coragem de procurar ele para ver se ele topava fazer alguma coisa junto, compor e tal. Ele foi muito aberto e deu muito certo. Na verdade, eu mandei duas ideias para ele escolher uma, e acabámos fazendo as duas — a “Não Dá Para Ficar Parado Aí Na Porta” e a “Body Corpo”. Ficámos compondo e trocando ideias por e-mail. Ele gravou lá em Nova Iorque, eu gravei em São Paulo. Mas eu acho que deu muito certo. Parece que é uma coisa que era para acontecer há mais tempo e que agora finalmente aconteceu [risos]. Faz muito sentido a gente estar perto. Então isso me deixou muito contente. A Ana Frango Elétrico e o Vandal são artistas mais jovens, de uma outra geração, e eu curto muito o trabalho dos dois e acho que ficou muito adequado. A Ana, eu acho que a voz dela é, enfim, das mais charmosas que estão actualmente no cenário musical, e eu adoro os discos dela. Fiz essa música que, na verdade, o final de um verso acaba se sobrepondo ao início do verso seguinte, então chamei ela pra fazer um dueto em que a gente vai alternando os versos. Acho que deu muito certo e fiquei muito contente. O Vandal é, talvez, o cara que eu estou curtindo mais dentro dessa área do rap e do drill. Parece que ele entendeu todo o recado da canção e criou esse texto para dizer ali no meio, na parte instrumental, que é muito adequado. Parece que ele deu a visão dele, reiterando os sentidos da canção sob outro ponto-de-vista. Achei isso incrível. Eu me identifiquei muito com o jeito dele cantar também, parece como eu cantava no começo dos Titãs, um canto meio berrado, meio cuspindo as palavras. Achei muito legal. E aí ficaram essas quatro participações que deram um tempero a mais para o disco.
Acaba por ser interessante, porque a Ana e o Vandal representam esse presente vibrante da música brasileira. Eu não sei se algum dia na incrível história da música do Brasil houve algum momento em que não tivesse tido essa vibração e esse entusiasmo, mas este presente é particularmente excitante para quem se encontra do lado cá do oceano e vai assistindo a todas estas incríveis novas vozes e novos talentos que vão surgindo. Enquanto observador, como é que sente o pulso do Brasil musical no presente?
Ah, é muito difícil dizer. Qualquer generalização acaba sendo muito redutora, porque tem muitas coisas diferentes. A gente mesmo está juntando coisas muito diversas no disco. O Vandal é um tipo de som diferente do da Ana, mas tem bandas novas lançando seus primeiros discos, como a Tietê, como a Sophia Chablau… Enfim, tem muita coisa fresca vindo e isso me encanta muito. Eu já estou aí na estrada há 40 anos, então eu vi surgirem muitos artistas mais novos que eu e me aproximei de alguns deles. Adoro essa geração da Tulipa Ruiz, do Léo Cavalcanti, da Karina Buhr… É muita coisa e é difícil dizer um caminho, porque eu acho que a música brasileira tem, por natureza, uma diversidade muito grande. E tem coisas legais acontecendo, desde o João Gomes até o Vandal, por exemplo. Eles pegam em coisas muito diferentes, mas eu sou fã dos dois, entendeu?
Segundo eu sei, hoje à tarde esteve em ensaio para preparar o novo concerto. E como referiu ainda agora, já são 40 anos na estrada. O que é que continua ainda a entusiasmá-lo, a fazer nascer essa vontade de regressar ao palco uma e outra vez?
Agora, nesse momento, lançando esse trabalho novo, o desejo é fazer um show mais extrovertido, depois de ter ficado três anos fazendo um show só de voz e piano, que foi maravilhoso e realizador. Eu acho que aprendi outra forma de interpretar, com uma liberdade enorme nos tempos, de saborear sílabas junto com o piano do Vitor, que é um luxo. Mas foi dando uma saudade de um som mais pesado, mais dançante, uma performance mais rock and roll no palco, e agora eu estou prestes a voltar pra esse momento. Ao mesmo tempo, não é uma volta, porque eu acho que é uma sonoridade diferente de tudo que eu já tinha feito com banda anteriormente. Então é um sabor, assim, todo intenso. E o que eu gosto de fazer é sempre não me repetir. Então eu estou sempre querendo fazer coisas que não fiz antes. Isso me levou, inclusive, a procurar o Vitor para fazer um show só de voz e piano, que era uma coisa inédita para mim. Foi uma aventura. Agora eu estou me arriscando também com músicos novos na banda. Eu acho que esse desafio de buscar novidade é uma ânsia perene, vamos dizer assim — é o que me move artisticamente.
Há planos para esse espectáculo vir até Portugal?
Planos sempre há. Acho que, geralmente, os últimos discos que eu lancei acabaram por me levar a fazer shows em Portugal, principalmente o Lágrimas no Mar, em que a gente foi duas vezes e fizemos várias cidades. Eu espero poder ir aí em breve, só não tem nada marcado ainda. A gente vai estrear agora em Abril a turnê aqui no Brasil, devemos fazer várias cidades aqui antes de pensar em levar para Portugal. Mas eu espero que em breve a gente chegue aí com o Novo Mundo.